A crise vista por um escritor
Rosa Lage Bateira_estudo |
A apresentação, no Porto, na Livraria Gato
Vadio, no dia 25 de Março de 2011, do livro Telemóvel. 13 Histórias à moda
antiga foi memorável. Pelo menos, para o autor, Ingo Schulze.
O escritor alemão veio a Portugal propositadamente para nela participar e, este
ano, já recordou publicamente a ocasião pelo menos duas vezes; uma, em Janeiro,
no diário alemão Süddeutsche Zeitung; outra, na quinta-feira passada, no diário
francês Libération.
É precisamente um episódio ocorrido
na sessão portuense que faz arrancar o artigo que ocupa toda a página 16 do Libération, o quarto de uma série de cinco
textos sobre a crise vista por escritores da zona euro:
“Em Março de 2011, fui a Portugal,
convidado para apresentar um dos meus livros. Leitura, discussão, a noite tinha
reunido um público numeroso e atento. Mas um jovem colocou uma questão que, de
um momento para o outro, alterou a atmosfera até aí amigavelmente interessada e
aberta”. A pergunta, que o escritor qualifica como “desagradável”, era simples:
“Não estaríamos nós – e este “nós” também me incluía por ser alemão – em vias
de obter graças ao euro e às exportações o que não tínhamos, antes, conseguido
com os blindados?” Ingo Schulze conta que respondeu à letra: “Ninguém é
obrigado a comprar um Mercedes e os portugueses deveriam ficar felizes por
poderem aceder a créditos menos caros do que os empréstimos bancários
habituais”.
Pouco depois, o escritor reconheceu
que a pergunta e a resposta eram como que o verso e o reverso de um logro.
“Como se pode ser estúpido a ponto
de acreditar que o problema são os alemães e os portugueses e não de quem, em
Portugal e na Alemanha, provocou esta situação, que dela retirou proveito e que
com ela continua a lucrar?”, interroga Ingo Schulze.
O texto do autor de Telemóvel. 13
Histórias à moda antiga, que a editora portuense 7 Nós
publicou no ano passado, está repleto de questões assaz pertinentes. “Não é
verdade que, em Portugal, tal como na Alemanha (e não apenas nestes países), os lucros foram
privatizados e os prejuízos nacionalizados? Não é verdade que, em
Portugal, tal como na Alemanha, todos os sectores da vida se têm vindo, cada
vez mais, a submeter às regras da economia e à procura do lucro, mesmo em
domínios em que tal é absurdo e mesmo perigoso?”
O texto apresenta uma veemente censura de Angela Merkel
por ela defender “uma democracia que respeite o mercado”. Explica o escritor
que “é inútil recorrer à etimologia para compreender que uma democracia que respeita o mercado não é
uma democracia”. No entanto, a expressão da chanceler alemã tem a
vantagem de designar correctamente o momento em que vivemos e torna mais fácil
dizer qual a alternativa que se impõe. E o que é necessário é ter “mercados que respeitem a
democracia”. De facto, como Ingo
Schulze nota, “se quisermos sobreviver economicamente, socialmente,
ecologicamente e eticamente, importa que os mercados respeitem a democracia”.
“Não é monstruoso ouvir dizer, quase todos os dias, que os
governos devem ‘acalmar os mercados’ e ‘recuperar a
confiança dos mercados’?
Por mercados, entende-se as bolsas e
os mercados financeiros, ou seja, aqueles que, no seu próprio interesse ou no
dos seus mandantes, especulam para obter o máximo de lucro. Não são eles quem
tem extorquido à comunidade fortunas inimagináveis? É a confiança deles
que os mais altos representantes do povo se devem esforçar por recuperar?”
Boas perguntas, as de Ingo Schulz. Previsivelmente,
continuarão sem as respostas certas e urgentes, que importa continuar a
reclamar. Como o escritor alemão bem observa, “é a colectividade, somos nós que devemos fixar as regras segundo as
quais os mercados têm direito a funcionar. No fim de contas, somos nós que devemos dizer que tipo de
sociedade queremos”.
Eduardo
Jorge Madureira Lopes
OS
DIAS DA SEMANA
29:VII:2012