teologia para leigos

28 de outubro de 2015

QUEM É JESUS DE NAZARÉ? [J.COMBLIN]




A Família

[…] «Ninguém ignorava a procedência de Jesus: era de Nazaré da Galileia, filho de uma família modesta, comum, sem nada que a destacasse das outras. Era como se disséssemos ser filho de um humilde artesão de Catolé da Rocha ou de São José do Egito, lá no fundo do sertão. A ausência total de mistério quanto à origem não chamava a atenção do povo: «Quanto a este sabemos donde vem, enquanto o Cristo, quando vier, ninguém saberá de onde vem» (Jo 7,27). Se ele era descendente de David (de acordo com as genealogias que muito mais tarde os evangelistas acrescentaram à narrativa dos seus actos), se no tempo em que nasceu houve acontecimentos extraordinários, etc. nada disso era do conhecimento do povo. Aos olhos de todos, nada havia nele que parecesse notável ou digno de atenção nesse filho de família pobre do interior.

«Durante trinta anos, Jesus confundiu-se de tal maneira com essa família humilde, com esse contexto insignificante da Nazaré, pareceu tão semelhante aos seus parentes, destacou-se tão pouco no meio dos seus concidadãos que foi uma surpresa total quando um dia ele se separou deles e começou uma carreira que os espantou. Diziam os de Nazaré: «Não é esse o carpinteiro, o filho de Maria, o irmão de Tiago, de José, de Judas e de Simão? E as suas irmãs não estão elas aqui, entre nós?» «E ficavam chocados com ele» (Mc 6,3). A incompreensão foi tal que um dia eles o expulsaram da sinagoga de Nazaré (Lc 4,28ss). Vendo a agitação que Jesus provocava no povo e o sucesso que fazia, os seus familiares ficaram com vergonha diante do povo da cidade – ou com medo. Quando voltou a casa, afluiu de novo a multidão, de modo que nem puderam comer. E, os seus, quando ouviram isto, foram ter com ele para o dominar, pois diziam: «Perdeu o juízo» (Mc 3,20-21). Mais tarde, porém, vendo que o êxito perdurava, começaram a perceber o proveito que poderiam tirar da fama de um parente que tanto prestigiava a família. Diziam-lhe: «Sai daqui e vai para a Judeia, para que vejam também os teus discípulos as obras que fazes; pois ninguém, se pretende colocar-se em evidência, age em segredo. Já que fazes tais coisas, mostra-te ao mundo» (Jo 7,3-4). Os seus familiares falavam como os parentes de um jovem vereador que teve êxito na sua cidadezinha do sertão, convencidos que já está na hora de se projectar na capital, se quiser candidatar-se a deputado.

[…]


Em Espírito e Verdade

[até aqui] «Ainda não encontramos na vida de Jesus a presença de Deus. Porque demoramos tanto? A razão é que na realidade a missão de Jesus gira em torno de duas preocupações ou, se quiser, de dois eixos principais: a mensagem de libertação e a mensagem de fraternidade a fim de refazer a Aliança de Israel, a verdadeira e eterna aliança. Nas memórias evangélicas, Deus permanece muito discreto: não ocupa quase nenhum lugar. Essa constatação, se proferida há bastantes anos atrás, teria provocado estranheza em leitores mais antigos. Na verdade, estes, projetando nos Evangelhos a sua intensa preocupação religiosa e cultural, nem seriam capazes de entender tal facto desconcertante: Jesus não pratica nenhum acto religioso, nem parece preocupar-se lá muito com a prática religiosa dos seus discípulos. Não somente não toma parte no culto do seu povo, como não funda nenhum culto novo. Há, nos Evangelhos, a esse respeito, um silêncio muito significativo. Qual é, então, o lugar que Deus ocupa na vida e na mente de Jesus?

«Em primeiro lugar, dissemos que ele não pratica os actos religiosos do seu povo: parece ser alguém que se emancipou e que quer emancipar os discípulos. Referindo-se ao Templo de Jerusalém, em nenhuma circunstância os evangelistas nos mostram Jesus exercendo um acto de culto: quando ele vai ao Templo, vai para tomar a palavra [pregar a Boa Nova] ou para expulsar os vendedores – não vai para oferecer sacrifícios, participar das cerimónias sagradas ou recitar orações. Usa o Templo como tribuna ou teatro das suas atividades num sentido totalmente secularizado: o Templo é um lugar em que se encontram muitas pessoas reunidas. Para Jesus, o Templo até pode ser destruído (Mc 13,2): o Templo já não cumpre nenhum papel na Aliança Verdadeira. Já «vem a hora em que nem neste monte nem em Jerusalém adorareis o Pai… vem a hora, e já é chegada, em que os verdadeiros adoradores adorarão o Pai em Espírito e em verdade. E são esses os adoradores que o Pai deseja» (Jo 4,21-23).

«Com isso, Jesus não quis dizer que doravante se poderiam edificar templos em qualquer lugar. Ele quer dizer que, doravante, o verdadeiro culto de Deus não consistiria em construir templos e exercer neles o culto. Consistiria, pelo contrário, em agir sob a moção do Espírito, fazendo a Verdade.

«Jesus não oferece sacrifícios, nem incita os discípulos a manifestar nem que seja um pouco de piedade. Não os leva a tomar parte nas liturgias do Templo. Não frequenta regularmente a Sinagoga. É verdade que ele esteve nas sinagogas várias vezes, porém, as memórias evangélicas mostram que Jesus foi à sinagoga para se revelar a si mesmo e não por devoção ou necessidade de culto. Nesse sentido, nem Jesus nem os apóstolos são muito religiosos.

«Atacando os fariseus, Jesus não poupa nem sequer a piedade deles. «Quando orardes, não sejais como os hipócritas, que gostam de rezar de pé nas sinagogas e nos cantos das ruas, para serem vistos pelos homens. Em verdade vos digo: já receberam a sua recompensa.» (Mt 6,5) «Simulam longas orações» (Mc 12,40).

«É verdade que Jesus esteve algumas vezes em Jerusalém para participar das festas. Contudo, não o vemos exercer nenhum acto de culto. Quando o grupo se aproxima de Jerusalém, no fim da missão de Jesus, para a última ascensão à capital, são os apóstolos que perguntam: «Onde queres que vamos preparar a Ceia pascal?» (Mc 14.12). Jesus responde a uma preocupação deles. A festa dos judeus fornece a Jesus uma ocasião de se encontrar com a multidão: não desperta nele ardores religiosos.

«Mais surpreendente ainda é o facto de Jesus não ter fundado nenhum culto novo. Não organiza uma nova maneira de adorar a Deus, de lhe prestar homenagem e de lhe apresentar dons e súplicas. Institui a Ceia, porém é difícil reconhecer na Ceia um acto de culto. Essa transformação [de ceia em acto de culto] não foi feita por Jesus, e não há nenhum sinal de que ele tenha pensado nessa possibilidade. A Eucaristia virou Missa dentro de um contexto de civilização do mundo mediterrânico, como adaptação cultural. Na instituição da Ceia não há nenhum acto dirigido a Deus. Por outro lado, não contém nenhuma liturgia nova.

«Jesus ora, contudo, sem cerimónia. Para orar, Jesus isola-se. Não fornece aos discípulos nenhum modelo de como fazer essa oração. «De madrugada, muito antes de o raiar do dia, levantou-se, partiu para um lugar deserto e ali ficou a orar» (Mc 1,35). Em outra circunstância, Jesus despediu a multidão e «foi ao monte orar» (Mc 6,46). O que é que ele fez aí? Não o sabemos. Quando os apóstolos se preocupam com o tema da oração apelam para o exemplo de João Baptista. Eles devem ter tido a impressão de que Jesus não se interessa por esse assunto. Disse-lhe um dos discípulos: «Senhor, ensina-nos a orar, como João ensinou os seus discípulos» (Lc 2,1). O interessante é que foi necessário um pedido explícito dos discípulos que estranhavam a sua conduta, para que Jesus pensasse em entregar o formulário que, desde então, se tornou a fórmula clássica por excelência da oração cristã.

«Em matéria de oração, Jesus é e quer ser discreto, muito discreto. Não somente se esquece de falar disso aos seus discípulos, mas, quando fala, insiste sobretudo nos aspectos negativos da oração. «Ao rezardes não multipliqueis as palavras, como fazem os pagãos: acham que à força de muitas palavras é que são atendidos. Não sejais semelhantes a eles» (Mt 6,7-8). «Quando rezares, entra no quarto mais secreto, fecha a porta e reza a teu pai, que está presente num lugar oculto; e teu Pai, que enxerga no escondido, dar-te-á a recompensa» (Mt 6,6). Para Jesus, a ideia de "oração" vai acompanhada da ideia de "lugar oculto". Discrição no modo de fazer, na quantidade, no lugar. Tudo sucede como se Jesus quisesse fazer da Oração um exercício totalmente espontâneo e pessoal, sem condicionamentos sociais, sem constrangimento. Uma oração assim fica totalmente desprovida de aparato, de cerimonial, de exterioridade. Quase que não é culto, antes uma conversa familiar.

«Os Evangelhos não descrevem nenhuma manifestação mística na vida de Jesus. Isso quer dizer que os apóstolos não assistiram a experiências religiosas e que, até Jesus, não achou conveniente ou útil, sequer, relatar tais experiências, isto no caso de elas terem de facto acontecido. Dessa maneira, Jesus é bem diferente dos místicos cristãos que sobre ele se apoiaram e O invocaram. Além disso, Jesus não oferece nenhum caminho de ascensão mística nem receitas ascéticas para facilitar a vida mística. Os Evangelhos não nos mostram um Jesus «religioso», mas sim um Jesus livre de ritos, de cerimónias, formulários ou horários marcados. Isso não quer dizer que os cristãos não possam recorrer a tais coisas. Simplesmente, não podem é invocar o exemplo de Jesus.

«O único fenómeno religioso a que assistimos é o da Transfiguração. Mesmo assim não foi propriamente um fenómeno religioso no sentido cultual: não houve culto nem louvores. Na Transfiguração não aparece Jesus em estado de Oração ou em êxtase. Os discípulos não recebem instruções quanto ao modo de tratar Deus nessa circunstância.

«As orações de Jesus, que os Evangelhos referem, são as da Paixão. No Jardim da Agonia, Jesus ora. «Chegaram, então, a uma propriedade designada Getsémani, e Jesus disse aos discípulos: "Sentai-vos aqui, enquanto vou rezar". Tomou consigo Pedro, Tiago e João, e começou a sentir pavor e angústia. E disse-lhes: "Minha alma está a morrer de tristeza; ficai aqui e vigiai". Adiantando-se um pouco, caiu por terra e orou para que, se possível, passasse dele aquela hora. E dizia: "Abbá, Pai, tudo te é possível; afasta de mim este cálice! Mas não se faça o que Eu quero, e sim o que Tu queres."». (Mc 14,32-36) Nesta Oração, nenhum elemento de experiência religiosa, nenhum sentimento da presença do Pai: é a Oração do Silêncio de Deus! O leitor aguarda, espera, mas não chega nenhuma resposta da parte de Deus: não vem resposta. Mais tarde, na Cruz, Jesus pronuncia as suas palavras de solidão e de abandono: «Meu Deus, Meu Deus, porque me abandonaste?» (Mc 15,34). Não há oração mais despojada de qualquer experiência mística (os místicos dirão que não há oração mais verdadeiramente mística)

«Essas constatações negativas são muito significativas da «religião» instituída por Jesus. A Igreja, posteriormente, acrescentou-lhe uma Liturgia abundante. Contudo, essa Liturgia não está nas origens. Essa Liturgia não tem valor que se compare ao valor que a própria vida de Jesus tem. Ora, tudo leva a crer que o relacionamento de Jesus com o Pai é excepcionalmente livre de qualquer aparelho litúrgico ou cultual. O único culto que o Pai parece desejar é a própria missão de Jesus, as suas caminhadas, as viagens, as curas de enfermos, a instrução dada às multidões ou aos discípulos, aquilo que S. Pedro[1] chamará "culto realizado em Espírito" (Rm 12,1).


O Nome

«Onde é que se situam, então, as relações entre Jesus e Deus? É o que precisamos de indagar de imediato. Primeiro, qual é o nome que Jesus usa para se referir a Deus? Jesus não propõe nenhum nome novo. Os nomes divinos que Jesus usa vêm da Bíblia. No entanto, os Evangelhos sinópticos praticam uma selecção significa entre todos os nomes divinos. E não se duvida que a selecção feita tenha sido feita por Jesus e imitada pelos primeiros cristãos.

«A tradição evangélica não evita o nome de Deus (o theos grego que traduz o nome hebraico), como fazem os judeus piedosos do seu tempo. A tradição evangélica, portanto, não pratica o maneirismo piedoso e refinado dos fariseus. O único caso em que se substitui o nome de Deus por outro, (por motivos religiosos) é a expressão mateana "Reino dos Céus". (Mt 3,1; 5,3; 7,21). Entretanto, o mais provável era Jesus dizer «Reino de Deus», de acordo com a tradição de Marcos. O nome «o Altíssimo» era excepcional, apesar de ser o mais comum entre os judeus. O nome «Rei» somente surge uma vez (Mt 5,35), num texto que parece referir-se a uma citação. Também o nome «Senhor» somente se encontra em contexto de citações, apesar de ser habitual entre os judeus, ou, então, em textos muito solenes. Visivelmente, esses não foram os nomes usados pelos primeiros cristãos. Jesus falava de outra maneira. O nome de Deus mais usado por Jesus é Pai. Essa apelação não era nova: já existia no Antigo Testamento e era bem conhecida na época de Jesus. Portanto, Jesus não a inventou, mas a insistência nesse título é que constituiu um facto novo.

«No modo de falar de Jesus, o nome «PAI» torna-se o nome próprio de Deus, tão próprio que lhe fica reservado. Na mente de Jesus, o nome «PAI» é reservado de tal modo que ninguém tem o direito de o usar. «E, na terra, a ninguém chameis ‘Pai’, porque um só é o vosso ‘Pai’: aquele que está no Céu.» (Mt 23,9). Além disso, o vocativo «PAI», Abbá-Pai, usado por Jesus, é fenómeno novo. Os judeus não se dirigiam a Deus dessa maneira[2]. Há nessa expressão um tom de familiaridade totalmente novo: uma ausência total de cerimónia. Por isso, não é possível que esse tratamento, tão sem constrangimento, tenha sido inventado pelos cristãos. Só Jesus poderia ter lançado um estilo tão novo.

«Os Evangelhos conhecem vários modos de usar o título "PAI": «o Pai», «meu Pai», «vosso Pai». Certos textos foram composição da tradição, por exemplo: a Oração de Jesus no jardim de Getsémani. Se os discípulos dormiam, não podiam ter ouvido a oração de Jesus. Contudo, não é possível que tenham inventado o título "Pai", se não tivessem guardado a memória do modo habitual de Jesus tratar Deus. A inspiração e a criação são de Jesus.

«Deus é Pai para Jesus e Pai para os discípulos e para os homens em geral. Há dois relacionamentos diferentes: os textos deixam claro que Deus não é pai da mesma maneira em ambos os casos. Contudo, o facto de que o mesmo tratamento seja atribuído a ambos mostra que há contacto entre as duas paternidades. A paternidade de Deus para com Jesus determina a paternidade de Deus para com os homens em geral. Também a atitude filial dos homens em geral deriva da atitude de Jesus.


Conhecer o Pai

«Jesus fala do Pai com muita simplicidade e familiaridade. Permite-o aos homens e sugere-lhes um comportamento semelhante. Todavia, não dá muitas explicações sobre o Pai. Ele não deu aos discípulos nenhuma doutrina sobre Deus, como Ele é, quais são os atributos d’Ele, e assim por diante. Os Evangelhos não expõem a essência de Deus. Ficam muito aquém dos filósofos e das religiões pagãs. O que interessa a Jesus, na sua pregação, não é falar de Deus, mas sim falar dos homens e do porvir dos homens. O Pai está sempre presente, mas sempre de forma discreta. O Pai fica oculto.

«Não é por acaso, ou fortuitamente, que as tradições evangélicas não contêm uma revelação a respeito de Deus: o silêncio é sistemático. Jesus leva o rigor da teologia hebraica ao extremo: Deus fica de tal maneira acima das criaturas que, embora presente em todas as partes, o seu segredo permanece totalmente inviolável. «Jamais alguém viu Deus» (Jo 1,18). É loucura, presunção, irreligiosidade procurar perceber algo de Deus.

«Mais tarde, S. João reflectirá sobre essa inviolabilidade de Deus, conjuntamente com o facto que foi a vida de Jesus. Deus permanece inacessível, tanto depois como antes, inconhecível. Porém, Ele dá-se a conhecer – melhor dito – dá sinal da Sua presença em acontecimentos que ocorrem no meio dos homens. O acontecimento significativo por excelência foi justamente a passagem de Jesus de Nazaré pelos sítios e pelos caminhos da Palestina. Quem vê e contempla com atenção esse Jesus de Nazaré entenderá tudo o que se pode entender acerca de Deus neste mundo. «O Filho único, que está no seio do Pai, ele o deu a conhecer» (Jo 1,18). Disse Filipe: «"Senhor, mostra-nos o Pai, e isso nos basta". "Há tantos anos que convivo convosco – disse-lhe Jesus – e ainda não me conheceis, Filipe? Quem me viu, viu o Pai. Como podes dizer «Mostra-nos o Pai?» Não crês que eu estou no Pai e o Pai em mim?"» (Jo 14,8-10).

«Que esta resposta não nos engane: Jesus não quer dizer que Ele tem aspecto de Deus, que há uma evidente aparência divina n’Ele. N’Ele, a divindade mostra a Sua presença sob a forma de sinais humanos.

«Não há nada, na aparência de Jesus, que não seja puramente humano.

«Em Jesus, Deus não se tornou visível, mas mostrou-nos o único caminho que nos leva seguramente a Deus. A mensagem de Jesus consiste em afirmar que não vale a pena tentar conhecer Deus em si mesmo, directamente. A única maneira de saber algo a respeito de Deus é situar-se na linha de Jesus, pôr-se em relação com Jesus. Quem entra no caminho dos discípulos aprende a conhecê-lo, pois um determinado modo de ser homem e de viver como homem constitui o acesso autêntico a Deus.

«Portanto, se quisermos conhecer Deus precisamos de ver como Jesus se relaciona com o Pai e entrar no mesmo processo de relacionamento, já que é Jesus quem mostra o caminho. (…)»





José Comblin, padre e teólogo. Belga de nascimento (1923-2011), trabalhou na América Latina a partir de 1958 como teólogo (Brasil, Chile, Equador), vivendo em comunidades pobres, que o inspiraram a criar um método teológico-catequético que ficou conhecido por "teologia da enxada"[3].

«Jesus de Nazaré – meditações sobre a vida e a acção humana de Jesus», VOZES, Petrópolis-RJ, Brasil, 1976, 4ª edição.






«José Comblin e a Igreja dos Pobres»
NOTA BIOGRÁFICA







[1] «Por isso, vos exorto, irmãos, pela misericórdia de Deus, a que ofereçais os vossos corpos como sacrifício vivo, santo, agradável a Deus. Seja este o vosso verdadeiro culto, o espiritual. Não vos acomodeis a este mundo. Pelo contrário, deixai-vos transformar, adquirindo uma nova mentalidade, para poderdes discernir qual é a vontade de Deus: o que é bom, o que lhe é agradável, o que é perfeito.» (Carta aos Romanos 12, 1-2).

[2] [NdE] Sobre esta questão, cf. a conferência de JOSÉ ARREGI «O Deus de Jesus, mais além, para lá da sua imagem de Deus» (Igreja em Diálogo 2013, «Deus Ainda Tem Futuro?», Ed. Gradiva, Seminário da Boa-Nova, Valadares), onde comentou as conclusões de J. Jeremias exaradas em «Abbá. El mensaje central del Nuevo Testamento» (Sígueme, Salamanca 19934, pp. 18-89; edição de 20056, pp.19-73) confrontando-as – e superando-as – com base noutras conclusões de outros autores, p. ex.: Theissen, G. – Merz, A., «El Jesús histórico», Sígueme, Salamanca 1999, p. 557; Perrot, Ch., «Jésus, Christ et Seigneur des premiers chrétiens», Desclée de Brouwer, Paris 1997, pp. 229-230.

8 de outubro de 2015

O QUE É O HOMEM NOVO? [J.COMBLIN]

RESUMO do LIVRO

O cristianismo contribui, para a Humanidade, com o «Homem Novo», não tanto em forma de doutrina, mas antes sob a forma de realidades concretas, as quais são: as comunidades cristãs, os missionários e a prática da evangelização.

O Homem Novo entra na humanidade velha pelo que a história humana é, antes de tudo, o drama de um parto de uma nova humanidade a partir do seio da humanidade velha, o drama da vida a partir da morte, da justiça a partir do pecado e da liberdade a partir da escravidão.

A caminhada do homem novo começa entre os pobres, eles que são os portadores privilegiados da libertação do homem velho.

Os pobres não podem renovar a humanidade por si sós, ainda que tenham que assumir sempre a condução da libertação para que esta seja autêntica; eles precisam da ajuda de forças históricas disponíveis, entre as quais devem praticar o discernimento.

O conceito de pessoa humana, com a sua dignidade e os seus direitos, formou-se neste século XX, no confronto, quer com os totalitarismos, quer com o individualismo liberal; só nas comunidades é que existem pessoas, verdadeiramente falando; é na realidade concreta que os direitos da pessoa humana adquirem o seu completo significado, através da reivindicação dos direitos dos oprimidos.

O cristianismo rejeita todo o tipo de dualismo no ser humano, quer o dualismo grego antigo, quer o dualismo moderno e burguês; o cristianismo defende a unidade do ser humano, a qual coincide com o seu corpo, no qual o centro é o cérebro; a alma somente pode ser a vida do corpo e não se distingue dele, pois é ela que faz a diferença entre um corpo vivo e um corpo morto.

O corpo real não é o objecto analisado, observado e reconstituído pelas Ciências, mas, sim, o "meu" corpo, o que o torna único e insubstituível.

O corpo é o fundamento da comunidade, pois ele é o ser humano exprimindo-se e comunicando com outros numa comunidade; a própria sexualidade é o primeiro passo da sociabilidade.

O corpo não desaparece completamente com a morte: a vida que há nele, e que formou uma pessoa, não se apaga, mas sobrevive na espera da ressurreição.

O corpo humano somente existe no espaço, sobre a terra, numa geografia que o condiciona, numa pátria, numa cultura rodeada de outras culturas, ligado a um lugar, mas também livre e como habitante estrangeiro do mundo, lançando raízes em cidades ou comunidades menores.

A vida humana é breve, situada num ponto – bem delimitado – duma história enormemente mais longa; a vida humana passa da infância para a velhice, inserida numa cadeia de gerações, em que a cada geração lhe compete uma tarefa limitada e específica.

O ser humano é feito para agir sobre a matéria do universo inteiro, o que só consegue mediante as ciências e as tecnologias; estas, em vez de serem instrumentos das comunidades humanas, podem tornar-se as dominadoras que impõem o seu próprio crescimento como fim último do agir.

O trabalhador é o primeiro fim do trabalho, mas é susceptível de se tornar a primeira alienação, de tal sorte que a libertação dos trabalhadores é o ponto crucial de toda a libertação humana.

A humanidade sofre violência e está subordinada a forças de morte, porque existem seres humanos que oprimem outros seres humanos; a transformação da sociedade humana é obra dos pobres, que são as vítimas da opressão.

A dominação nasce da guerra e da violência; a libertação não pode excluir de antemão algum tipo de recurso à guerra, mas ela faz-se fundamentalmente pela força da palavra, pois na afirmação de si, pela sua palavra, é que a humanidade adquire a condição humana autêntica.

Não há libertação da humanidade sem trabalho de libertação do indivíduo chamado a vencer o medo, a submissão e todas as resistências e pressões, externas e internas; pois somente o indivíduo pode tornar-se livre, e nenhuma estrutura exterior pode dispensar essa responsabilidade pessoal.

A liberdade individual não consiste no isolamento do indivíduo em si próprio, por exemplo, na propriedade privada, mas, sim, no livre serviço aos outros em comunidade; embora, cada um precise de uma protecção para a sua vida privada e dos seus direitos em face da arbitrariedade de todas as autoridades.

Todos os homens vivem na presença de Deus, como que sentindo-se responsáveis por uma missão recebida, e referindo-se ao juízo final desse Deus, qualquer que seja o nome que lhe dê: nesse sentido, o homem é imagem de Deus e não pode viver sem reflectir, em si mesmo, o ser de Deus. Essa relação objectiva do homem inteiro para com Deus há-de ser vivida subjectivamente na oração sem cessar.

O homem novo é Cristo ressuscitado, crucificado, mas também o é na sua vida histórica (pública): nele está todo o valor humano manifestado no decorrer dos tempos.

A missão do Espírito Santo não consiste em elevar os homens acima da humanidade através duma divinização que os afastaria dos limites da sua condição corporal, mas, pelo contrário, o Espírito vivifica o corpo para a vida eterna e move os homens para que todos e cada um alcancem a plenitude do ser humano na maior diversidade e liberdade, de tal sorte que não haja somente um modelo de imitação de Jesus, mas milhões.










O HOMEM NOVO



Introdução

«Todos os caminhos da Igreja conduzem ao homem»[1], dizia o Papa João Paulo II na sua primeira encíclica, Redemptor Hominis. Por conseguinte, todos os caminhos da teologia cristã também conduzem ao homem. A humanidade não é um objecto qualquer da teologia: ela é central. Todos os outros objectos que ela aborda giram ao redor da humanidade e têm, por finalidade, iluminar o destino do homem.

Nesta colecção, o ser humano – objecto do Evangelho e preocupação da Igreja – vai ser o alvo de alguns livros. Contudo, os editores quiseram abrir a série com um volume que oferecesse, digamos, uma visão geral da humanidade e da sua libertação, a partir do ponto de vista cristão. Este volume não é o resumo dos livros que virão a seguir; pelo contrário, é a abordagem genérica dos temas que serão mais pormenorizadamente examinados (nos seus diversos aspectos) nos volumes seguintes.

No tempo em que a teologia assumia o papel de ideologia dominante de uma certa sociedade, ela pretendia apresentar uma visão completa do homem e do seu lugar no mundo. À medida que iam surgindo novas ciências do homem, novos descobrimentos e novos conceitos, a teologia procurava integrá-los na sua síntese. Se ela não tivesse sido capaz de sintetizar todos esses conhecimentos, a teologia teria deixado de ser capaz de orientar a sociedade. Mesmo depois de terem perdido, de facto, o controlo da sociedade ocidental, os teólogos continuaram ainda, durante várias gerações, a idealizar uma visão total do homem que fosse capaz de oferecer pelo menos o equivalente das grandes ideologias, que ambicionavam a conquista intelectual do mundo.

A partir do momento em que a teologia faz a opção pelos pobres, fica claro que a teologia abandona o projecto de fornecer, à sociedade, a ideologia que irá orientar a sua classe dominante. Sempre haverá ideologias e visões globais – do mundo e do homem – para orientar as sociedades políticas, as culturas e as civilizações. A teologia cristã desiste desse papel. Na América Latina, a teologia exerceu esse papel durante a época dos Impérios coloniais. Depois da ruína dos Impérios, manteve, durante várias gerações, uma certa nostalgia dessa função. Depois de Medellín e Puebla, ela renunciou a esse papel, pelo menos oficialmente.

A teologia também não quer assumir o papel de ser uma espécie de síntese ou uma enciclopédia das ciências humanas. Esta seria uma tarefa impossível e vã, em que os teólogos perderiam a sua identidade, sem proveito nenhum.

A teologia nem sequer pretende elaborar o equivalente a uma filosofia do homem. Na época contemporânea, a filosofia emancipou-se cada vez mais da teologia e está à procura da sua tarefa própria. No início da sua história, na civilização greco-romana, a filosofia renunciou também ao papel de orientadora da cidade, como Platão lhe havia sugerido.

A teologia nem sequer pode assumir as funções de uma "teoria geral da libertação da humanidade". Em primeiro lugar, tal teoria nunca poderia existir como teoria cristã, na medida em que ela traria dentro de si as sementes de futuras dominações. Em segundo lugar, nem o cristianismo nem a Igreja nem a teologia receberam a missão de planificar a libertação da humanidade. Cristianismo, Igreja e Teologia têm uma missão dentro da libertação da humanidade e ao serviço da humanidade, mas Deus não lhes confiou a missão de planificar, liderar, conduzir como se de um processo único, sintético ou coeso se tratasse. Dizem os críticos que essa, sim, foi a tentação específica em que a Igreja do Ocidente caiu, tentação que motivou os protestos, quer dos orientais, quer dos reformadores do século XVI, quer dos seus precursores medievais, bem como dos seus sucessores modernos.

Então, o que é que, para a libertação da humanidade, o cristianismo oferece?

Em primeiro lugar, não oferece uma doutrina, uma concepção da vida ou um modelo de mundo, mas homens e mulheres concretos reunidos em comunidades. A contribuição do Cristianismo são as comunidades cristãs espalhadas pelo mundo.

Essas comunidades são Jesus Cristo. Se Jesus fosse apenas uma pessoa do passado, ele traria à humanidade alguns exemplos, alguns conceitos, algo semelhante à contribuição dos fundadores das grandes religiões. Ora, Jesus Cristo torna-se presente e multiplica-se pelo mundo inteiro através da presença das comunidades cristãs. Estas trazem algo novo, algo específico que é a sua acção. A actuação das comunidades cristãs no meio do mundo é a contribuição cristã para a libertação. As doutrinas, as ideias, os temas cristãos contribuem para a libertação na medida em que representam, animam e estimulam a praxis das comunidades. As doutrinas cristãs sobre o homem somente podem ajudar à libertação da humanidade na medida em que a praxis das comunidades lhes confira um conteúdo concreto. É por isso que a primeira referência de todos os conceitos antropológicos cristãos é a vida das comunidades cristãs. A própria Bíblia contribui com um conteúdo histórico real apenas e na medida em que a Bíblia reviver (reganhar vida) através da actuação das comunidades cristãs concretas.

A actuação das comunidades chama-se "evangelização": este é o dado antropológico novo que contém, em si, a parte libertadora da humanidade que o cristianismo aporta.

A evangelização oferece aos homens uma verdade sobre si próprios. Como dizia Puebla, é missão das comunidades cristãs oferecer uma verdade sobre o homem. Essa verdade não é uma doutrina, um ensinamento, um conjunto de conceitos. A verdade é uma força que denuncia e destrói a mentira[2], a verdade é o renascer duma realidade nova. Pela sua acção, as comunidades fazem com que possa nascer a realidade da humanidade, uma realidade nova.

O primeiro capítulo olhará este facto fundamental que se denomina "homem novo", a nova humanidade: as comunidades cristãs no decorrer da história e agora.

Ora, a evangelização é uma palavra dirigida e orientada. Ela escolhe os pobres e contempla-os como os encarregados da libertação da humanidade. Tal movimento inclui uma maneira de enxergar a própria humanidade. Mas, quanto a isto, o fazer é anterior ao dizer. Não é por causa duma doutrina que os cristãos fazem a opção pelos pobres, mas, ao contrário, é por que fazem essa opção que eles arquitectam e adquirem uma certa doutrina.

Em quase todas as grandes civilizações, aquilo que se pode denominar "humanismo" foi, ou ainda é, um estilo de vida: o modo de ser das elites privilegiadas ou de certos elementos escolhidos entre as elites. Humanismo foi, e ainda é, quase sempre sinónimo de elitismo. A verdade cristã denuncia esse humanismo e procura outra forma de humanismo a partir dos pobres.

Ora, o humanismo que parte dos pobres inclui uma opção realista contra os idealismos. A história da antropologia teológica quase que se confunde com a história dos debates entre idealismo e realismo. Apesar da defesa dos maiores Doutores da Igreja, nomeadamente, S. Tomás de Aquino, quase sempre o Idealismo triunfou, sobretudo na práxis das igrejas cristãs instaladas e nas Escolas ou nas Academias. Procuraram a perfeição do Homem através da fuga rumo a metas ideais, supostamente «espirituais», e perderam de vista a realidade corporal do homem. Regra geral, o homem privilegiado esquece-se do seu corpo[3]. O corpo recorda, força e impõe a existência quando ele sofre. Quem nunca teve fome não sabe que o homem, em primeiro lugar, é um ser que precisa de comer. Quem nunca esteve doente não sabe o que é a saúde. Para os pobres, a libertação da humanidade é a libertação dos corpos sofridos, esmagados, humilhados.

Nos capítulos 3, 4, 5 e 6 veremos as diversas relações do corpo com tudo aquilo que o faz existir como corpo: o corpo na sua relação com o mundo, com a natureza, com os outros corpos humanos, e, finalmente, o corpo como distante dos outros corpos e da matéria.

O espírito não está fora do corpo. Pelo contrário, está presente em cada uma das suas relações. Contudo, para que a espiritualidade humana fique mais clara, o capítulo 7 fará uma recapitulação dos seus diversos aspectos.

Os cristãos não inventaram o homem. Não constroem a história do homem: eles participam nela como os outros homens. Não sabem prever as etapas ulteriores da libertação. Os cristãos não conhecem a humanidade melhor do que os outros. Porém, o que os diferencia dos outros, não é simplesmente uma ideologia diferente ou um sistema simbólico diferente. A antropologia cristã não é outra maneira de exprimir o que os outros diriam de modo científico. Os modernos sempre se mostraram dispostos a aceitar o cristianismo com a condição de que se limitasse a dizer em forma de símbolos o que eles, os modernos, sabiam dizer de modo científico.

Pelo contrário, as áreas das ciências humanas e da teologia não coincidem. Teologia e Ciências Humanas falam de coisas diferentes embora tendo o mesmo objecto: o homem. É que não há uma ciência da humanidade; mas, por outro lado, as ciências humanas dizem coisas acertadas sempre que se dedicam a aspectos muito circunscritos, muito limitados. A libertação é matéria de um discernimento, e, em matéria de discernimento, o homem cristão acrescenta algo à humanidade.

O que é que os cristãos têm para dizer aos homens de hoje sobre a libertação da humanidade? Nada mais e nada menos do que o que eles são e fazem. Neles está o Cristo, criado de novo, no mundo de hoje pelo Espírito Santo. Por conseguinte, o objecto deste livro é: qual é o tipo de humanidade, de valor humano, de conteúdo com verdadeiro sentido humano, que existe nas nossas comunidades cristãs? Onde e como é que Jesus Cristo – o Homem Novo – está presente e a agir, hoje em dia? Quem é ele? O que é que Ele traz a este nosso mundo concreto? […]



José Comblin, belga de nascimento (1923-2011), trabalhou na América Latina a partir de 1958 como teólogo (Brasil, Chile, Equador), vivendo em comunidades pobres, que o inspiraram a criar um método teológico-catequético que ficou conhecido por "teologia da enxada".[4] Faleceu com 88 anos e deixou uma vasta obra, indispensável, não aos professores europeus de teologia (que vivem afastados das comunidades mais marginalizadas e preferem a teologia espiritualista e especulativa à da libertação), mas, sim, aos leigos preocupados em iluminar suas dúvidas e em fundamentar as suas opções de vida no concreto dos dramas humanos e políticos diários.

«Antropologia Cristã», TOMO I de A Libertação na História (Série III) da colecção «Teologia e Libertação», VOZES, Petrópolis 1985, pp. 15-59.


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Arcebispo Albert Rouet,
«A IGREJA CORRE O RISCO DE SE CONVERTER NUMA SUB-CULTURA»






[1] S. S. João Paulo II, enc. Redemptor hominis, 4 de Março de 1979, n. 14.
[2] «A Verdade é um Encontro» - Homilias em Santa Marta, pelo Papa Francisco, Ed. Paulinas, ISBN 978-989-673-411-4[NdE]
[3] [NdE] Cf. «O que é o Homem?», por Anselmo Borges, in blog "A SALA DE CIMA", 2 Out. 2015: