teologia para leigos

26 de agosto de 2015

OS MERCADOS NÃO GARANTEM DIREITOS HUMANOS

O AMOR DE DEUS É ECONOMIA POLÍTICA COM JUSTIÇA

«Esse é o caminho que, apesar de antiquíssimo e secular, o Novo Testamento qualifica de mandamento "novo": o velho "amai-vos uns aos outros". Este é o único ponto de referência comum que possuímos no meio da imensa pluralidade que é o nosso mundo. E convoco-o qualificando a sua proposta de «ecumenismo do humano». Esse ecumenismo do humano é o ponto a partir do qual podemos (devemos!) encontrar-nos todos: cristãos de todas as igrejas, religiões de toda a terra, ateus e crentes

«E a partir daqui podemos ir-nos abeirando de Jesus.

«Comecemos por dois textos de seguidores muito próximos de Jesus que transmitem algo que eles experienciaram e viveram com Ele.

«O documento que, precisamente, mais exalta o amor entre os seres humanos, concretiza o tipo de amor de Deus para com os homens a partir duma negação, com a seguinte frase: "Se alguém possuir bens deste mundo e, vendo o seu irmão com necessidade, lhe fechar o seu coração, como é que o amor de Deus pode permanecer nele?" (1 Jo 3,17) Para um seguidor de Jesus, o "ecumenismo do humano" passa, portanto, pela ajuda material, económica.

«E agora, mais radicalmente ainda, sentencia outro texto neotestamentário: «A raiz de todos os males é a paixão pelo dinheiro» (1 Tm 6,10): afasta da fé e causa grandes sofrimentos.

«É por aqui que devemos subir à fonte, a partir destas conclusões tiradas e transmitidas pelos discípulos mais próximos de Jesus.

«Agora, estamos, então, em condições de nos abeirarmos de Jesus.»

José Ignacio González Faus, sj, «El Amor en Tiempos de Cólera… Económica», KHAF & Religión Digital Libros, Madrid 2013, ISBN 978-84-939683-5-9.


«Ora bem, se é verdade que estamos convencidos de que a Eucaristia é o sinal eficaz que expressa e realiza a unidade entre os crentes, então, a conclusão inevitável é que toda e qualquer teologia eucarística que, na prática, legitime ou tolere uma celebração que é compatível com a injustiça é uma teologia insuficiente.

«Trata-se de uma teologia que não vai ao fundo, ou seja, uma teologia que se fica pela periferia e pelo acidental, ao passo que o essencial permanece intocado. Mais: deve dizer-se que tal teologia não só é insuficiente, como é falsa. (…)

«Da mesma maneira que não é possível celebrar a Eucaristia quando não temos pão e vinho, igualmente deveria ser impossível celebrar esse sacramento onde esteja gente que não dê garantias suficientes de que se empenha seriamente na procura de uma sociedade mais justa, e de relações mais fraternas

José Maria Castillo, «Fe y Justicia», 1981.






ECONOMIA POLÍTICA DOS DIREITOS HUMANOS

II PARTE


Pode o mercado garantir direitos humanos?

Uma das conclusões que se podem extrair dos argumentos apresentados nos pontos anteriores é que tanto a água como a segurança social não constituem bens públicos na verdadeira aceção da palavra. Assim sendo, poderiam tecnicamente ser providenciadas pelo mercado. A questão que se levanta, no entanto, é se, enquanto direitos humanos, devem sê-lo. O facto de na primeira declaração da ONU sobre a água enquanto direito humano se afirmar, a dado passo, que as populações devem ter meios para aceder à água, significa, desde logo, que é aceitável que ela possa ter um preço e, portanto, também, que ela possa ser fornecida por uma entidade privada (UN, 2002: 6). No entanto, esta possibilidade de ostentar um preço não faz da água, automaticamente, um bem privado como qualquer outro, daí ser admissível que receba um tratamento particular. Por outro lado, numa discussão que teve lugar em Genebra no seio do Comité sobre os Direitos Económicos, Sociais e Culturais a propósito da segurança social, sublinhou-se que uma grande quantidade de países que vinham assegurando um certo nível de proteção social estava a transferir uma parte das suas responsabilidades nesta matéria para o setor privado (CESCR, 2006). Ao afirmá-lo estava-se a reconhecer, não só a primazia do fornecimento público da segurança social, como também a inquietação que tal transferência desperta junto de inúmeros especialistas em direitos humanos. A questão relativa a quem deve fornecer a água e a segurança social necessária ao gozo de um direito está, pois, no centro do debate sobre a garantia de direitos humanos.

A economia da corrente dominante poderá reclamar que a discussão sobre o fornecimento dos bens que configuram um direito humano, como a saúde ou a educação, por exemplo, ficou mais ou menos encerrada com a definição de uma nova categoria de bens que veio acrescentar-se às quatro a que fizemos referência anteriormente. Este novo grupo de bens tem o nome de Bens de Mérito e foi identificado por Richard Musgrave (1959). Estes bens satisfazem necessidades fundamentais, e, embora possam ser fornecidos pelo setor privado, entende-se que devem sê-lo pelo setor público para evitar que a população com baixos níveis de rendimento se veja excluída do seu consumo, ou ainda subsidiados pelo Estado para responder ao risco que, sendo fornecidos de acordo com as regras do mercado, se possa verificar um sub-consumo que afetaria não só o bem-estar dos próprios indivíduos mas também o da sociedade no seu conjunto.[1]

No entanto, apesar do problema da exclusão ser tido em conta na definição destes bens particulares, respondendo assim a uma das exigências da garantia de direitos humanos, o conceito de bens de mérito não as abraça todas, a começar pela exigência de igualdade que faz par com a de inclusão. De facto, o problema da desigualdade não parece poder ser resolvido através da simples preocupação de evitar que haja sub-consumo destes bens. A seguir analisaremos várias outras exigências que os direitos humanos colocam à água e à segurança social e que dificultam ou mesmo impossibilitam que o mercado os possa fornecer. São estas a universalidade, a responsabilidade e a eficiência às quais se deverá acrescentar o facto de que, no caso da água, não existe possibilidade de concorrência.


O mercado não exprime preferências sociais

Quando está em causa a promoção de direitos com caráter universal, é inevitável revelar uma preferência social, isto é, admitir que uma estrutura de cobertura da população é melhor do que outra. Por outras palavras, e nos casos particulares da água e da segurança social, por exemplo, uma situação na qual toda a população está coberta pela rede de distribuição de água, ou de protecção social, é preferível, a uma, outra em que tal não se verifica. Poder-se-ia, inclusive, afirmar que no caso dos direitos económicos e sociais a única situação aceitável é aquela em que efetivamente, ou no mínimo tendencialmente, é proporcionada a universalidade da cobertura, isto é, que o direito esteja garantido para todos. Qualquer outra situação que não a universalidade da cobertura deverá, pois, ser considerada inferior, senão mesmo inaceitável pois poderá configurar uma violação de um direito humano. A existência das cláusulas de progressividade e de disponibilidade de meios, a que já fizemos referência anteriormente, não alteram a essência da finalidade nos direitos económicos, sociais e culturais; quando muito, apenas o ritmo da sua execução.

Ora, deste ponto de vista, o mercado não está numa posição confortável para conduzir este processo pois, este, normalmente não exprime preferências sociais, neste caso, preferências de estrutura. Em função das informações que lhe são transmitidas pelos agentes económicos, o mercado exprime certamente preferências em relação às questões básicas da economia, como por exemplo, o que produzir, como e quando, mas não tem argumentos para afirmar que uma determinada estrutura de distribuição de recursos ou de prestações na perspetiva do beneficiário é melhor do que outra. O que importa, para o mercado, é que os agentes que participem nas trocas fiquem satisfeitos, isto é, que o vendedor tenha podido vender as quantidades desejadas ao preço que vigorou para determinada transação e que o comprador, para o mesmo preço, tenha podido adquirir a quantidade por ele também desejada. Tal desenlace, no entanto, não configura forçosamente uma situação satisfatória do ponto de vista da garantia de um direito. Em primeiro lugar, os agentes que ficaram de fora do mercado, porque a sua restrição orçamental era incompatível com a participação em qualquer transação, por exemplo, não contam para ela. A eventual insatisfação deste agente não é, pois, contabilizada na noção de ineficácia do ponto de vista do mercado. Ora, se tal não é grave quando estamos a falar de um bem ou serviço digamos corrente, ao tratar-se de um direito, qualquer exclusão configura, como já se disse, a possibilidade de uma privação fundamental.

É por essa razão que, mesmo admitindo a possibilidade de se pagar um preço pela água, a privatização total da distribuição de água, pode ser contraditória com a afirmação do direito à água. Inúmeros exemplos de privatização das redes de distribuição de água mostram como é difícil conciliar a promoção de um direito humano em simultâneo com o fornecimento de um bem económico privado. Em Manila, a Maynilad Water Services, uma empresa privada controlada pela multinacional Suez-Ondeo, que detém a concessão para a distribuição de água na zona oeste da capital das Filipinas, aumentou a tarifa da água em 400% entre 1997 e 2003. Na zona leste da mesma cidade, e no mesmo período, subiu, ela, os preços em 700% (Netto, 2005[2]). Tendo em consideração o nível médio de vida de um cidadão filipino, e o facto de a taxa de inflação para o mesmo período ter atingido apenas 36,9% no país (WDID, 2008[3]), não parece difícil concluir que esta manifestação da lógica mercantil aplicada à distribuição de água resultou sobretudo na privação de uma grande parte da população de Manila do pleno exercício do seu direito à água. Aliás, ao contrário de Manila Water e em consequência dos protestos populares desencadeados pelo não cumprimento dos objetivos acordados por parte do concessionário no que concerne ao alargamento da cobertura, à fixação de preços, e à qualidade do serviço, a Manylad regressou desde então ao controlo público através da gestão da Manila Metropolitan Water and Sewerage System (Montemayor, 2005[4]).

Em alguns dos bairros mais pobres de La Paz, na Bolívia, a mesma empresa multinacional, mas agora com outra designação, a Suez-Lyonnaise des Eaux, através da sua subsidiária local, Aguas del Illimani, também aumentou as tarifas da água em cerca de 600% em 2004, enquanto a inflação para esse ano havia atingido um valor de apenas 4,9% (WDID, 2008), tendo, por outro lado, o objetivo de ligar 15 000 fogos à rede de distribuição de água sido na prática reduzido a zero (Chavez, 2005: 11[5]). Em resultado da pressão exercida por mais de seiscentas associações de bairro, o governo viria a revogar o contrato de concessão à Aguas del Illimani (Chavez, 2005: 11), tal como havia acontecido, aliás, em Abril de 2000 com a multinacional americana Bechtel em Cochabamba, na sequência de um amplo movimento popular inspirado pelos fortíssimos aumentos das tarifas e pela expropriação de sistemas comunitários de distribuição de água (Gómez e Terhorst, 2005[6]).

A história comparada da distribuição de água também contribui para a formulação de uma tentativa de explicação deste falhanço do mercado em promover o direito à água nos países em vias de desenvolvimento. As empresas privadas de distribuição de água nos países desenvolvidos herdaram uma infra-estrutura pesada paga por investimentos públicos e que assegurava uma cobertura universal a um mercado caracterizado por um elevado rendimento médio. Nos países em vias de desenvolvimento, pelo contrário, infra-estruturas limitadas e frequentemente danificadas, baixos níveis de ligação e elevados níveis de pobreza, acentuaram as tensões entre a rentabilidade privada e o fornecimento a todos de água a um preço justo. Em Buenos Aires, na Argentina, por exemplo, o detentor da concessão de distribuição de água conseguiu expandir as ligações à rede mas a um ritmo inferior ao contratualizado, muito por causa da lentidão do processo verificada nos bairros mais pobres da cidade. Em Jacarta, na Indonésia, três quartos das novas ligações à rede beneficiaram sobretudo famílias com elevados rendimentos e instituições públicas e privadas (UNDP, 2006[7]). Aliás, de acordo com Pedro Arrojo (2006[8]) as multinacionais que obtiveram a maioria das concessões privatizadas no mundo inteiro, poderiam eventualmente estar interessadas na gestão da distribuição de água, mas não no investimento em infra-estruturas.

O debate em torno da distribuição pública ou privada da água não pode, no entanto, ser extremado. Em primeiro lugar porque nos países em desenvolvimento uma fatia considerável da população já acede à água através de redes operadas por entidades privadas ou de outros sistemas de distribuição, sejam elas fontes ou autotanques. Por outro lado, a existência de redes públicas, que distribuem cerca de 90% da água nestes países (UNDP, 2006: 10), não constitui uma condição suficiente para proporcionar a todos o acesso à água, nem em quantidade nem em qualidade. Em Dar-es-Salam, na Tanzânia, ou Ouagadougou, no Burkina-Faso, menos de 30% da população está ligada à rede de distribuição de água (UNDP, 2006: 9). Se a água da rede é mais barata, e, na maioria dos casos, de melhor qualidade do que a água obtida por outras vias, porque razão as famílias mais pobres não beneficiam dela? Acontece que a ligação à rede não está ao alcance de todos. Em primeiro lugar, porque esta é cara, podendo representar para as famílias mais pobres 3 meses de salário em Manila ou mesmo 6 meses em cidades do Quénia (UNDP, 2006: 10[9]). Em segundo lugar, porque a ligação à rede exige a apresentação de títulos de propriedade que os mais pobres são muitas vezes incapazes de apresentar para as suas precárias, e frequentemente ilegais, habitações (UNDP, 2006: 10). Não obstante, os factos parecem mostrar que as privatizações na distribuição de água das Filipinas à Bolívia, ou à Argentina não são muito encorajadoras no que respeita à capacidade de cumprir todos os desígnios do direito humano à água.

A provisão de segurança social como direito humano pelo mercado, por seu turno, parece tão limitada quanto a água. Não é fácil ilustrar a incapacidade social já que não existe nenhum país do mundo onde haja apenas "sistemas privados" de protecção social; na maioria dos países onde empresas privadas fornecem esquemas de protecção social, estes complementam, ou são complementados, por esquemas públicos. Os Estados Unidos da América talvez constituam, a este título, a melhor aproximação daquilo que poderia ser um sistema totalmente privado de segurança social, já que a proteção social pública apenas cobre uma parte da população norte-americana, essencialmente os mais velhos e os mais necessitados, beneficiando a outra parte de uma cobertura exclusivamente privada.

No seio da população que não pode beneficiar da proteção social pública a incapacidade para pagar o seguro saúde está frequentemente, como seria de esperar, na origem da privação de tratamento médico que afeta um número considerável de indivíduos, esse facto constituiu, aliás, uma das principais razões avançadas para reclamar uma profunda reforma do sistema de saúde americano em 2009 e 2010. Não apenas uma família de quatro pessoas tinha de pagar na altura um prémio mensal de cerca de 1200 dólares para estar segurada como os preços tinham vindo a subir de forma acentuada; 131% em média desde a viragem do século (Appaix, 2010: 7)[10]. O elevado preço dos seguros de saúde foi considerado responsável por, em 2007, 28% dos adultos norte-americanos, ou seja, uma população estimada em 50 milhões de pessoas, não estarem segurados ou terem experimentado, nos 12 meses anteriores, algum período sem cobertura (Collins e tal., 2008: 3[11]). A esta exclusão de uma parte importante da população do direito humano à segurança social devemos ainda acrescentar a desigualdade, uma vez que entre aqueles cidadãos que podiam pagar um seguro de saúde muitos estavam inadequadamente ou insuficientemente segurados (Collins e tal., 2008: 10).


O mercado não é responsável

Como já referimos no primeiro capítulo, na linguagem dos direitos humanos, aos direitos dos indivíduos correspondem deveres de outros indivíduos ou instituições. Assim, se os direitos dos indivíduos não estiverem garantidos, isso significa que esses outros indivíduos ou instituições falharam no cumprimento do seu dever. Por outro lado, também referimos no mesmo capítulo que a linguagem dos direitos humanos transformava problemas económicos como falta de emprego ou, no caso que mais nos interessa aqui, a fraca cobertura da população pela distribuição de água ou pela segurança social, numa violação de um direito humano, e, portanto, num delito. A responsabilidade, ou seja, a disponibilidade para prestar contas aos destinatários dos bens e serviços providenciados enquanto direitos humanos, é, portanto, um elemento crucial na altura de definir quem deve assegurar direitos humanos em geral, e água e segurança social em particular.

Quando o Estado, por exemplo, falha na sua tarefa de garantir um direito humano, o Estado é responsável juridicamente perante um tribunal ou politicamente perante os eleitores. Se um cidadão entender que o Estado não lhe garante um determinado direito, o Estado pode ser perseguido em justiça pelo dito cidadão. No caso de um direito económico, social e cultural […]


Prof. Manuel Couret Branco, in «ECONOMIA POLÍTICA DOS DIREITOS HUMANOS – os direitos humanos na era dos mercados», Edições SÍLABO, Rua Cidade de Manchester, 2, 1170-100 LISBOA. T.: 218130345. ISBN 978-972-618-661-8.

AUTOR: Economista licenciado por Paris-1 Panthéon-Sorbonne, que se doutorou em Economia na École des Hautes Études en Sciences Sociales, também em Paris. Leciona, no departamento de Economia da Escola de Ciências Sociais da Universidade de Évora, "História do Pensamento Económico", "Economia do Desenvolvimento", "Economia da Política Social" e "Economia dos Direitos Humanos". É autor, de entre outros livros e artigos científicos, dos livros «Economia com Compromisso» e «Economia da Saúde e da Produção Animal» e do artigo «Direitos Económicos: um desafio à Europa Social».




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[2] NETTO, A. (2005), «Private Sector Still Running After Water Rights», Asia Times on-line, March 26:
[3] «World development indicators database: Facts and Statistics», document disponível on-line em: 
[4] MONTEMAYOR, C. A. (2005) «Possibilities for Public Water in Manila», in «Reclaiming Public Water Achievements, Struggles and Visions from Around the World»; Edited by Belén Balanyá, Brid Brennman, Olivier Hoedeman, Satoko Kishimoto and Philip Terhorst, TNI/CEO Press Release.
[5] CHAVEZ, W. (2005) «Effervescence Populaire en Bolivie», Le Monde Diplomatique, Mars.
[6] GÓMEZ, L. S. e P. TERHORST (2005) «Cochabamba, Bolivia: Public-Colective Partnership After the Water War», in Balanyá, B. Brennan, B. Hoedeman, O. Kishimoto, S. e Terhorst, P. (eds) Reclaiming Public Water Achievements, Struggles and Visions from Around the World; TNI/CEO Press Release.
[7] UNDP (2006) «Human Development Report. Beyond Scarcity: Power, poverty and the global water crisis», documento disponível on-line: 
[8] ARROJO, P. (2006) «El Reto Ético da la Nueva Cultura del Água: Funciones, Valores y Derechos en Juego», Barcelona: Ediciones Paidós.
[9] Ibid., UNDP (2006) «Human Development Report. Beyond Scarcity: Power, poverty and the global water crisis»…
[10] Apppaix, O. (2010) «Quand les États-Unis se refont une santé», Le Monde Diplomatique, Mai, p. 7.
[11] COLLINS, S. R., KRISS, J. L., DOTY, M. M. e RUSTGI, S. D. (2008) «Losing Ground: How the Loss of Adequate Health Insurance Is Burdening Working Families: Findings from the Commonwealth Fund Biennial Health Insurance Surveys», 2001-2007, The Commonwealth Fund.


23 de agosto de 2015

ECONOMIA e DIREITOS HUMANOS - contra a actual lavagem ao cérebro

«Há que afirmar sem rodeios que existe um vínculo indissolúvel entre a nossa fé e os pobres.» [EG, n. 48)

«Prefiro uma Igreja acidentada, ferida e enlameada por ter saído pelas estradas, a uma Igreja enferma pelo fechamento e pela comodidade de se agarrar às próprias seguranças. Não quero uma Igreja preocupada em ser o centro.» [EG, n. 49]

«Ao lermos as Escrituras, fica bem claro que a proposta do Evangelho não consiste só numa relação pessoal com Deus. E a nossa resposta de amor também não deveria ser entendida como uma mera soma de pequenos gestos pessoais a favor de alguns indivíduos necessitados, o que poderia constituir uma «caridade à la carte», uma série de acções destinadas apenas a tranquilizar a própria consciência. A proposta é o Reino de Deus (cf. Lc 4, 43); trata-se de amar a Deus, que reina no mundo. Na medida em que Ele conseguir reinar entre nós, a vida social será um espaço de fraternidade, de justiça, de paz, de dignidade para todos. Por isso, tanto o anúncio como a experiência cristã tendem a provocar consequências sociais. Procuremos o seu Reino: «Procurai primeiro o Reino de Deus e a sua justiça, e tudo o mais se vos dará por acréscimo» (Mt 6, 33) [EG, n. 180].





ECONOMIA POLÍTICA DOS DIREITOS HUMANOS
I PARTE


Introdução


Os direitos humanos constituem uma das ideias mais felizes e férteis do nosso tempo, personificando aos olhos de muitos dos pobres e dos oprimidos do planeta a prodigiosa fórmula que lhes poderá propiciar a justiça e a dignidade indispensáveis ao adorno do seu efémero percurso terreno. Desde as suas origens, e por muito que a alguns eventualmente custe admitir, a ciência económica, no seu sentido mais profundo, ou mais puro, ambicionou sempre alcançar o mesmo fim. Todavia, e apesar desta inegável convergência de propósitos, inúmeros indícios sugerem que a economia cultivaria uma certa antipatia para com os direitos humanos. Fará sentido que os dois conceitos, que terão quiçá mais contribuído para o progresso da humanidade – a economia para libertar da necessidade, e os direitos humanos para libertar do medo – exibam, no mínimo, uma tão pobre afinidade? Para além de partilharem um objetivo comum, nós próprios, a economia e os direitos humanos estão intimamente ligados por outros motivos ainda. Com efeito, existe uma incontornável dimensão económica nos direitos humanos assim como uma inequívoca dimensão de direitos humanos na economia. Por um lado, a promoção dos direitos humanos exige a mobilização de recursos e, portanto, a inevitável consideração de uma restrição de ordem económica. Por outro lado, a eficácia e a eficiência das decisões económicas pressupõem um significativo grau de liberdade do agente, só podendo este mesmo agente escolher a melhor solução possível entre as várias que se lhe oferecem se, de facto, for livre de o fazer. […]



O que caracteriza, então, a corrente dominante da economia?

A corrente dominante da economia, como qualquer outra escola de pensamento económico, carateriza-se pela sua metodologia particular, pela sua racionalidade particular e pelo seu particular arsenal analítico. A corrente dominante é, então, individualista, utilitarista e apontada ao equilíbrio, e, finalmente, obcecada pela formalização matemática. Sendo individualista, a economia dominante define os seus objetivos em termos de prossecução do interesse pessoal de um indivíduo isolado, sendo o bem-estar social medido, nestas circunstâncias, pela soma aritmética dos níveis de bem-estar de cada indivíduo. Sendo utilitarista e apontada ao equilíbrio, a economia dominante está particularmente orientada para a maximização da utilidade individual, ou seja, o rendimento expresso em moeda, e para procurar o equilíbrio social da oferta e da procura, sendo o mercado, com a sua parafernália automática, a instituição ideal para comandar este processo. Finalmente, estando obcecada pela formalização matemática, a economia dominante privilegia a análise quantitativa de causa e efeito, e reduz de modo irrealista a complexidade da sociedade, de modo a descobrir leis científicas semelhantes às que governariam o reino da natureza.

A abordagem crítica que nos propomos fazer à economia também poderia, e porventura deveria, ser levada a cabo em relação aos direitos humanos. Os direitos humanos são, de facto, tão passíveis de discussão como os princípios económicos, não havendo razão superior para que qualquer deles constituía um dado adquirido. No entanto, uma discussão paradigmática sobre direitos humanos é uma tarefa que está muito para além das competências do autor deste trabalho. Assim, limitar-nos-emos ao exame das implicações para a economia - para a ciência económica - da tácita aceitação dos direitos humanos como legislação internacional consuetudinária. Por outro lado, também não abordaremos todos os direitos humanos. A análise da interação entre economia e direitos humanos focará, essencialmente, os direitos económicos, sociais e culturais, não só porque estes estão mais intimamente relacionados com a economia, mas também porque, vistos sobretudo como objetivos louváveis mais do que como legislação vinculativa, estes têm sido claramente negligenciados quando comparados com os direitos civis e políticos. Não obstante esta especial incidência, os direitos civis e políticos não serão totalmente esquecidos, sendo os dois últimos capítulos deste trabalho dedicados às interações da economia com a democracia.

O propósito essencial desta análise das interações da economia com os direitos humanos consiste em identificar as implicações da valorização dos direitos humanos para a definição, não só das políticas económicas, mas também do próprio sistema de condução da economia. Os dois princípios que devemos ter em consideração logo à partida são, em primeiro lugar, que os direitos humanos são indivisíveis, isto é, que em teoria não existem direitos mais importantes do que outros ou, dito de outro modo ainda, que não existem direitos negligenciáveis; e, em segundo lugar, que os direitos humanos podem e devem ser interpretados simultaneamente como instrumentos e finalidades do progresso económico.

A abordagem seguida neste trabalho é a da economia política, conceito originalmente introduzido na ciência económica por Antoine de Montchrestien em 1615 na sua obra Traité d’Économie Politique, e que associa dois conceitos distintos herdados da antiguidade. O termo "economia" provém do grego antigo oikos nomos, a regra da casa, ou, numa linguagem mais atual, a gestão da casa. Ao se lhe acrescentar a política, fabricando, assim, o conceito de economia política, acrescenta-se também uma nova dimensão à definição primeira de economia. Derivando a palavra "política" do grego politikos, que significa a arte de governar a cidade, ou seja, de administrar a coisa pública, a economia política significa, pois, que a dimensão da casa é ampliada para abraçar uma comunidade mais ou menos vasta, extravasando claramente a família em torno da qual se organizava a oikos nomos. Em suma, na sua forma original o conceito de economia política pode ser entendido como objecto de estudo, mas também como método analítico. No primeiro caso, a economia política estudaria a economia nacional, ou ainda a inter-relação entre a esfera pública e a esfera privada, entre o Estado e o mercado. No segundo caso, a economia política seria entendida como a aplicação do método económico à análise dos fenómenos políticos ou, em alternativa, do método da ciência política aos fenómenos económicos.

Em virtude da inexistência de um relativo consenso em torno destes diferentes modos de apreender a economia política, assumiremos aqui a visão heterodoxa do conceito que considera esta mesma economia política sobretudo como um método de análise da sociedade. O ponto de partida desta análise consiste em oferecer uma alternativa ao tratamento tradicional dado pela economia da corrente dominante aos fenómenos sociais. Por exemplo, para o economista político, o mercado não é nem soberano nem natural, omnipotente e caído do céu, mas sim uma instituição social, uma construção humana. A economia política introduz, ainda, na sua análise os conceitos de poder, de conflito e de desigualdade, quer no contexto da luta de classes, característica da visão marxista, quer no contexto menos sulfuroso da concertação e da negociação entre interesses concorrentes.

Uma outra caraterística da economia política consiste na recusa em separar a economia positiva da normativa, e, portanto, na recusa em separar a eficiência da ética. Em contraste, a economia dominante, para além de recorrer a uma definição de economia já de si muito estreita, a de mero estudo da afetação de (…).

Prof. Manuel Couret Branco, Universidade de Évora.
Economista licenciado por Paris-1 Panthéon-Sorbonne, que se doutorou em Economia na École des Hautes Études en Sciences Sociales, também em Paris. Leciona, no departamento de Economia da Escola de Ciências Sociais da Universidade de Évora, "História do Pensamento Económico", "Economia do Desenvolvimento", "Economia da Política Social" e "Economia dos Direitos Humanos". É autor, de entre outros livros e artigos científicos, dos livros «Economia com Compromisso» e «Economia da Saúde e da Produção Animal» e do artigo «Direitos Económicos: um desafio à Europa Social». ISBN 978-972-618-661-8 (Edições SÍLABO, Rua Cidade de Manchester, 2, 1170-100 LISBOA. T.: 218130345)


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