teologia para leigos

25 de novembro de 2014

«A IGREJA TEM QUE ESTAR JUNTO» [COMBLIN]

DESAFIOS AOS CRISTÃOS DO SÉCULO XXI






INTRODUÇÃO

O discurso da opção pelos pobres e pelos excluídos é rebatido, ainda hoje, com insistência e com certa veemência, mas isso não quer dizer que a Igreja se encontre, de facto, no mundo dos pobres e dos excluídos[1]. Enquanto a Igreja prega e elabora documentos[2] a favor dos pobres e dos excluídos, a classe dominante deita contas aos serviços que oferece em prol da sua inocência e da sua bondade ética, procurando a legitimidade do seu sistema. Portanto, se a Igreja quiser ter alguma eficácia e alguma seriedade na sua opção pelos excluídos terá que fazer muito mais do que apenas denunciar e condenar o sistema neoliberal em vigor, causador das situações reais de dependência, espoliação, pobreza, miséria e, consequentemente, de exclusão. Se o discurso da Igreja se tornou vazio e a opção pelos pobres uma retórica, é urgente que a igreja comece a oferecer, no concreto, alternativas às vítimas. Para isso, a Igreja deverá exigir que o seu clero – educado e formado no mundo dos incluídos – abandone a cultura arcaica e se inculture no mundo dos excluídos. Nada do que for implantado sobreviverá se não estiver bem integrado na cultura dos excluídos. Terá a Igreja visão, ânimo e despojamento para tal?

De facto, este é o grande desafio para a Igreja. Saberá ela e será ela capaz de se fazer presente, de maneira eficaz, no mundo dos excluídos? Não chega oferecer paliativos como até agora fez, palavras de consolo, fazer de conta - através do discurso - que está do lado do pobre. A Igreja tem que estar junto: agir junto, aprender junto, produzir junto, sofrer junto, conquistar junto, erguer-se junto, fazer caminho junto…


A IGREJA E O MUNDO DOS EXCLUÍDOS

O mundo dos excluídos veio para ficar. Ele é produzido pelo sistema económico actual, que vai gerando cada vez mais exclusão. Uma parte da população tem capacidade para entrar no mundo novo da economia, outra parte não. As exigências são cada vez maiores, de modo que a distância cultural aumenta entre os que têm e os que não têm condições de vida digna. Quem nasce no mundo dos excluídos já nasce excluído e nunca poderá recuperar a distância que o separa de quem nasceu numa família incluída. Somente uma ínfima minoria de excluídos[3], ajudada por muita sorte, consegue recuperar – facto que não tem repercussão, nem muda nada, no conjunto do sistema.

O actual sistema económico domina, de modo absoluto, o mundo todo. Reina, praticamente sem contestação, entre todos os que detêm o poder. Está a crescer sem parar, confiante em si mesmo, sem nenhuma dúvida. Os que conduzem o processo não têm dúvida nenhuma. Estão seguros de si mesmos e dispõem de quase todos os recursos que actualmente existem no mundo. Dispõem de praticamente todos os cérebros importantes na sociedade. Tudo e todos trabalham para consolidá-lo. Somente o contestam alguns intelectuais sem poder.

Este modelo de economia está tão firme que está feito para durar pelo menos um século. A famosa «Terceira Via», lançada por Tony Blair, tem vindo a ser aceite hoje por quase todas as esquerdas do mundo, o que significa que a esquerda considera facto irreversível a actual evolução da economia (Cf. Anthony Giddens, «The Third Way. The Renewal of Social Democracy», Polity Press, Cambridge, 1998).

No momento não há outra alternativa com força política. A oposição vai ter de cumprir o seu papel de oposição, mas está impedida de realizar o seu programa de governo. Estamos ainda na fase inicial da exclusão. O que vem por aí tende a ser ainda pior. Isso não depende de um governo, regime político ou constituição de Estado – pois nenhum Estado pode impedir o inevitável que é a pressão de um sistema compacto e dotado de todas as forças materiais e culturais.

Anunciar o fim da exclusão é irresponsabilidade, porque, com isso, deixa-se que as pessoas fiquem à espera, na ilusão, atrasando-se a tomada de decisões. É irresponsabilidade pensar que o problema está a ser resolvido e que algumas boas pregações podem mudar a evolução actual do mundo. Naturalmente, todos os governantes dizem, com as lágrimas nos olhos, que estão preocupados com a exclusão e a pobreza. Falam assim para se enganarem a si mesmos – pensando que têm bom coração – e ao povo. Na hora de agir acabam por reforçar o sistema, fortalecendo-o. Nada farão para mudar o actual sistema. Também não será um governo que há-de vir, no futuro, que irá mudar esse rumo. A intensidade do movimento poderá variar um pouco, mas o movimento em plena expansão não será mudado.

1.   Os excluídos vivem
Os excluídos não desaparecerão por serem excluídos. Conseguem sobreviver, encontrando brechas no sistema e nos meios de subsistência. Recolhem as migalhas que caem da mesa dos poderosos. Como os poderosos são muito ricos, as migalhas podem alimentar muita gente. Os excluídos vão formando um mundo próprio, separado, com a sua cultura própria e relações sociais próprias. Pouco a pouco, constituem um mundo inteiriço, coerente, completo – como na favela da Rocinha, no Rio de Janeiro.

Vivem de uma economia informal ou, às vezes, conseguem emprego aleatório em empresa de construção ou em serviço precário. Recolhem o que a sociedade lhes concede, sobretudo, a televisão, que abre para o resto do mundo, porém, sem criar comunicação com esse mundo. Criam uma cultura, um estilo de vida em casa, uma maneira de comer e beber, de festejar, de se relacionar com os vizinhos. Seu mundo é um mundo pequeno, mas que permite viver. Nesse mundo há tempos de alegria e de tristeza, tempos de medo e de ilusão.

A cultura do mundo dos excluídos não é muito conhecida, porque não consegue interessar aos sociólogos. Estes ainda estão muito dependentes das teorias do passado. Uns são marxistas e olham tudo em função da luta de classes, como nos tempos da sociedade industrial, sem ver que na actualidade somente uma minoria participa do mundo industrial – os operários das indústrias já pertencem ao mundo dos incluídos, embora numa posição modesta. Outros dependem da sociologia norte-americana, e enxergam tudo com base no sistema positivista da passagem da cultura pré-moderna para a cultura moderna – não descobriram que há duas culturas modernas: a dos incluídos e a dos excluídos.

A cultura dos excluídos está presente nas cidades. É feita de fragmentos da cultura rural desintegrada e de fragmentos da cultura dominante mais ou menos assimilados, porque o mundo dos excluídos não está totalmente isolado – vive ao lado do outro, ainda que com uma intercomunicação muito superficial. Os novos pobres reinterpretam, na sua cultura, a exibição da cultura dominante.

No primeiro mundo, os excluídos constituem 1/3 da população e no terceiro mundo 2/3. Claro que estes números são aproximados. Em cada país a situação é particular, podendo a fronteira entre excluídos e incluídos não estar tão clara, assim. Há uma parte da população que está entre os excluídos e os incluídos, participando parcialmente das duas categorias. No entanto, globalmente, existe uma separação radical entre os dois pólos e essas duas partes da população.

2.   A Igreja continua a repetir o discurso da opção pelos pobres e excluídos

Continua a fazer-se o discurso da opção pelos pobres e excluídos, mas, no entanto, esse discurso está cada vez mais longe da realidade. Caso nos demos ao trabalho de examinar o comportamento real, nota-se com toda a evidência que a Igreja está a fazer a opção pelos incluídos, perdendo o contacto com os excluídos. Elaborando sempre o mesmo discurso, a Igreja nem se apercebe que se está a distanciar cada vez mais dos excluídos. O discurso serve para esconder a realidade e tranquilizar a consciência.

Com efeito, hoje em dia [2011] a força da Igreja está concentrada à volta de dois pólos: os «movimentos» e as paróquias.

O primeiro pólo é constituído pelos «movimentos». Os «movimentos» estão a crescer cada vez mais, e constituem actualmente o sector mais vivo, mais dinâmico e florescente na Igreja. Tomando a dianteira, está o movimento Renovação Carismática[4], vindo depois o ECC[5], os Focolare[6], os Neocatecumenais[7], Schönstatt[8] e outros menos numerosos.

Os «movimentos» estão implantados no mundo dos incluídos. Todo o seu modo de ser revela a sua perfeita adaptação à cultura dos incluídos. Estão bem inculturados e, por isso, fazem sucesso e crescem sem cessar. Apesar de não estarem integrados nas estruturas oficiais da Igreja, a sua influência vai crescendo. Não têm o poder na Igreja, mas têm o conhecimento do mundo, a ciência das comunicações e tudo o que o clero não tem. Por isso, de facto, a sua influência é maior do que a dos sacerdotes na Igreja. Os sacerdotes são, cada vez mais, espectadores do que acontece na Igreja ou auxiliares dos «movimentos». A sua cultura arcaica não lhes permite competir, salvo raras excepções.

Por serem emanação da cultura dominante, os «movimentos» não têm comunicação com o mundo dos excluídos, ainda que no seu discurso multipliquem as profissões de boa vontade. Não há comunicação com esse mundo, nem a linguagem é a mesma. Não é uma questão de boa ou má vontade, mas simplesmente uma questão de necessidade sociológica.

Deixo, como tarefa para o século XXI, o surgimento de missionários nos «movimentos» para que desçam até ao mundo dos excluídos, afastando-se da sua cultura de origem para irem ao encontro da cultura dos excluídos. É mais difícil ser-se missionário no mundo dos excluídos do próprio país e da própria cidade do que ser missionário em África ou na Ásia, porque a resistência psicológica é maior. É mais fácil reconhecer a diferença da cultura indiana ou chinesa do que a diferença da cultura dos excluídos na própria cidade. O cidadão de uma classe superior pensa que sabe e pode tudo na sua própria cidade, mas, na realidade, nunca pôs o pé no mundo dos excluídos.

Como «movimentos» organizados e totalidades sociais, os «movimentos» nada podem fazer pelo mundo dos excluídos. Porém, do meio deles, pode e deve sair uma messe de vocações missionárias. Como sociedades organizadas têm mentalidade universal. Estão convencidos de que representam todas as classes sociais e de que são imagem da própria sociedade urbana ou nacional. Não percebem os limites da sua consciência. Somente os excluídos podem dizer-lhes que pertencem a um mundo limitado; somente os excluídos são capazes de os ajudar a comunicar com o seu mundo excludente. Somente o contacto presencial com os excluídos lhes pode fazer abrir os olhos e a mente.

O segundo pólo forte da Igreja católica, no qual se concentra a quase totalidade do clero, é a paróquia urbana. Aí se concentra 80% da população. No mundo urbano, as paróquias reúnem as pessoas do mundo dos incluídos. A cultura paroquial adapta-se melhor a eles. O próprio vigário foi educado na cultura do mundo dos incluídos, sentindo-se mais à vontade aí. Como as actividades paroquiais são numerosas, conseguem ocupar o tempo todo dos melhores vigários. Não sobra tempo para saltar os muros e ir ver o que está a acontecer no “outro país” que fica dentro do território paroquial. A própria estrutura paroquial favorece essa evolução. Ora, na cidade, a visibilidade das igrejas e capelas paroquiais não é muito grande. Uma família pode morar a 100 metros da capela e ignorar a sua presença, assim como os fiéis católicos ignoram as igrejas pentecostais que estão na mesma rua.

3.   E as CEBs, não são elas a presença da Igreja no mundo dos excluídos e do mundo dos excluídos na Igreja?

Em primeiro lugar, as CEBs [Comunidades Eclesiais de Base] já não têm, na Igreja, a importância que já tiveram. Basta lembrar que, no documento Ecclesiæ in America, nem sequer são mencionadas. Na dinâmica das dioceses, o seu espaço é muito limitado.

Em segundo lugar, uma grande parte das CEBs está situada nas comunidades rurais afastadas das igrejas matriciais. Este mundo rural tem cada vez menos peso no conjunto do país. Mesmo que tenham surgido os assentamentos[9], a presença da Igreja católica é mínima neles. No mundo urbano, as CEBs não se multiplicaram, apesar do imenso crescimento do mundo dos excluídos. São como ilhas num mar imenso. Além disso, muitas foram integradas no sistema paroquial, reproduzindo o sistema da paróquia e funcionando como órgão de transmissão da pastoral paroquial. Dedicam muito tempo à preparação dos sacramentos e às celebrações de estilo mais ou menos tradicional. Estamos fartos de conhecer essa realidade e do que se passou com as CEBs.

Em terceiro lugar, as próprias comunidades são agentes de promoção social. Quem participa tem mais hipóteses de ascensão social, porque vai adquirindo capacidades que habilitam para entrar no mundo dos incluídos.

A participação nas CEBs confere um desenvolvimento humano que prepara para saber actuar no mundo superior, ainda que em posições modestas. Acontece a mesma coisa com os sindicatos, os partidos políticos populares ou os movimentos populares. Os dirigentes saem do mundo dos excluídos porque já se capacitaram e entram em comunicação com o mundo dos incluídos[10].

Ainda há uma parte das CEBs que são a Igreja no mundo dos excluídos. Mas essa parte quase não conta na Igreja actual – não conta na vida das dioceses, das paróquias e «movimentos». Por outro lado, a existência delas não representa uma presença significativa da Igreja católica. Quantos sacerdotes e religiosas se dedicam a esse mundo? Qual é a parte dos recursos financeiros da Igreja dedicada à missão no mundo dos excluídos? Insignificante.

O desafio é a presença da Igreja no mundo dos excluídos. Não basta condenar o sistema neoliberal em vigor, e dizer que aumenta o número dos excluídos. É necessário condenar, mas não basta – porque nada vai mudar por mais que se condene. A influência da Igreja na sociedade é mínima – para não dizer inexistente. O que se espera da Igreja é que legitime o sistema e dê alguns remédios de consolo às vítimas. Se ela se dedicar a isso terá um lugar privilegiado. Se não fizer isso será marginalizada.

Também não basta anunciar a utopia de uma nova sociedade ou de uma civilização do amor. A utopia é necessária para manter a esperança e a espera de outro mundo. Porém, não basta, porque o anúncio do evangelho é anúncio do Reino de Deus no mundo presente. Trata-se da presença de Deus e da acção a partir do Reino neste mundo que existe no concreto: anunciar o futuro é muito cómodo e pouco exigente. Pode-se estar no mundo dos incluídos e esperar a mudança da sociedade: pelo menos, teremos que esperar um século. O consolo do futuro, não basta. As ideologias socialistas prometeram um mundo futuro que nunca chegou. O que nos preocupa – objecto da evangelização – é o mundo presente tal como ele está. Que dizer e que fazer face a este mundo de agora?

Em primeiro lugar, para poder agir, é preciso estar presente. Já dissemos que todo o grupo de Igreja tende a subir socialmente e, ao mesmo tempo, tende a se separar do mundo dos excluídos: acaba por se tornar num grupo que está em vias de se integrar. Assim aconteceu com os monges antigos. Assim foi com as primeiras comunidades cristãs e com todas as fundações religiosas, ao longo dos tempos. Começaram com uma presença no mundo dos pobres e, um século depois, passaram a fazer parte do mundo dos ricos.

Assim acontece com as CEBs. Começa-se pelos excluídos e, pouco a pouco, vão-se diferenciando e subindo socialmente. É preciso recomeçar. É improvável que uma comunidade que começou no meio dos pobres e se emancipou – tornando-se incluída – volte às origens – retornando aos excluídos.

Da evolução actual das CEBs alguns tiraram a conclusão que elas já tiveram o seu tempo, e estão a ser substituídas por outras formas de pastoral. Muitos acham que já não respondem às situações novas e que estão a desaparecer. Acontece que essa história evolutiva das CEBs não significa que elas estejam superadas. Quer dizer que, como todas as instituições da Igreja, elas devem passar pelo que tradicionalmente se chama reforma.

Na Igreja, o que quer dizer reforma?
[…]


José Comblin
Sacerdote e doutor em teologia pela Universidade de Lovaina.
Leccionou no Equador, no Chile e no Brasil.
Faleceu a 27 de Março de 2011.










[1] José Maria Vigil diz que se deve defender a opção pela justiça e não a «opção preferencial pelos pobres»: «Deus opta pela justiça, não preferencialmente, mas sim alternativa e excludentemente». «A Opção pelos Pobres é opção pelos “injustiçados”». «A opção de Deus pela justiça fundamenta-se no seu próprio ser: Deus não pode ser de outra maneira, não poderia não fazer essa opção sem contradizer-se e sem negar o seu próprio ser. Deus é, “por natureza”, opção pela justiça, e essa opção não é gratuita (mas, sim, axiologicamente inevitável), nem contingente (mas sim necessária), nem arbitrária (mas sim fundada per se no próprio ser de Deus), nem “preferencial” (mas sim alternativa, exclusiva e excludente». Cf. doc. em castelhano ou em português [NdE]:
[2] Vivemos num mundo em que «as palavras já estão gastas» (Eugénio de Andrade) e significam precisamente o seu contrário, um mundo de mentira operado pelo disfarce. Hitler possuía uma biblioteca pessoal de 16.000 volumes (T. W. Ryback); os seus discursos anti-semitas eram, à época, cientificamente fundados! Em última análise, qual é o critério último, definitivo para ajuizar e julgar da santidade da nossa existência? Produzir Conferências com muitas citações eruditas, Colóquios com muitos nomes sonantes? Creio que não serão as profissões de fé ou os discursos: será – para sempre – o «JUÍZO DEFINITIVO» de Mateus 25,31-46, onde, em cerca de 16 versículos, se podem contar cerca de 20 “acções” ou “omissões”… práxicas. [NdE]
[3] É o caso de alguns Joões Paulos, por aí… Uma imensa minoria, de facto.
[10] Cf o escândalo monstruoso do «caso Petrobras» (Brasil) e suas conexões com os membros do Partido dos Trabalhadores, Lula e Dilma, ou as facilidades dadas pelo presidente Lula para a instalação de gigantes hidroeléctricas (ex.: Belo Monte) com a consequente expulsão dos indígenas de suas terras (denunciado pela Irmã Ignez Wenzel e pelo bispo Erwin Kräutler ). [NdE]




19 de novembro de 2014

CRISTIANISMO «ESTILHAÇADO» [J. DELUMEAU]

OS CAMINHOS DO FUTURO DO CRISTIANISMO





1.   Para um cristianismo ao mesmo tempo minoritário e popular

Por instantes, conjuguemos o irreal do passado, tomando, antes de mais, o atalho de uma comparação. Três pesadas guerras opuseram a França e a Alemanha num período de setenta e cinco anos (1870-1945). Nada pôde ser feito para que elas não tenham acontecido. Mas se tivessem sido substituídas por três quartos de século de paz, que proveito, os dois países e a civilização inteira, daí não teriam tirado? Agora, num outro domínio: o que se teria passado se a Igreja tivesse sido fiel ao Evangelho (aqui compreendidas e confundidas, todas as confissões cristãs)? A Igreja não teria contado com a força nem com o apoio do Estado para cristianizar. Não teria ordenado, a populações pagãs, que se convertessem sob pena de morte ou de escravatura, como se verificou no Saxe no tempo de Carlos Magno e na América do Sul no século XVI. Não teria empreendido as Cruzadas, nem inventado a Inquisição, nem queimado hereges, nem perseguido os judeus, nem expulso os muçulmanos de Espanha, nem destruído os Templos dos Maias, dos Astecas e dos Incas. Não teria havido «Cristandade» no sentido em que a entenderam os europeus de antes da Revolução Francesa, portanto, não teria havido unanimidade na fé e nos rituais. O que quer dizer que os fiéis de Jesus teriam guardado a sua autonomia em relação ao Poder, teriam disposto de muito menos riquezas e poder, mas de muito mais liberdade. Os cristãos teriam sido menos numerosos, pois que teria havido a possibilidade de o não serem, mas, por outro lado, a descristianização não teria, hoje, o aspecto maciço que lhe conhecemos.

Não há dúvida que a reconstituição em laboratório de um passado diferente daquele que existiu tem qualquer coisa de absurdo. O Ocidente levou muito tempo a inventar e a aceitar a ideia de uma separação entre a Igreja e o Estado, a qual hoje nos pode parecer a forma mais razoável das relações entre eles. O caminho seguido foi outro: podia não o ter sido? Se a Igreja não tivesse estado no Poder teria deixado de ser perseguida? Havia – outrora – uma outra posição entre estes dois extremos? E mesmo nos nossos dias, não é verdade que o Cristianismo, que alija progressivamente as posições de força que ocupava, se expõe, pelo menos nos Estados totalitários, a perseguições por vezes mais graves do que as da Antiguidade? Podemos, portanto, julgar inúteis, até mesmo fora de todo o bom senso, as lamentações expressas nas páginas anteriores sobre os comportamentos passados da Igreja. Não podemos, no entanto, negar que o Cristianismo se encontra agora reconduzido, pelas exigências da história, à via difícil que, teoricamente, sempre deveria ter sido a sua. Cada vez mais rejeitado pelo Poder, estará ele daqui em diante condenado a morrer? Se sim, é porque precisava, para subsistir, da força dos homens. Caso contrário, é porque possuiu um dinamismo – divino – superior à acumulação dos obstáculos que se amontoam diante dele. Para um cristão, ter fé é crer na eterna juventude de um Cristianismo que, aqui, caminha já, e, além, vai dentro em breve caminhar na senda estreita da provação.

Desta estrada de amargura não devem os cristãos, por sua própria iniciativa, excluir ninguém a priori, e não lhes compete decretar arbitrariamente que este ou aquele fique abandonado na berma. Bem se encarregarão – e já se encarregam – as dificuldades do percurso de separar os fiéis de Cristo dos que perdem ou virão a perder o fôlego. Impõe-se, então, uma reflexão, sobre o «Cristianismo popular», a propósito do qual se interrogam, neste momento [em 1977], muitos sociólogos, historiadores e teólogos[1].

Deverão ser considerados como cristãos de ontem, em vias de desertar, os que se contentam em ir à igreja nalguns momentos da existência, para os baptismos, as primeiras comunhões, os casamentos e os enterros? Ou mesmo, os que nela aparecem algumas vezes por ano, como pelo Natal e pela Páscoa? Em suma, todos os que se dizem «crentes», mas são pouco ou nada «praticantes»? O historiador das mentalidades é sempre, de alguma forma, um observador das maiorias silenciosas e não pode subscrever um juízo demasiado apressado sobre a massa dos cristãos que abandonaram toda a «prática» regular, por insignificante que fosse. Apenas verifica que retiveram da evangelização dos séculos anteriores uma religião simplificada, pouco exigente quanto às obrigações cultuais, pouco racionalizada, de fraco teor dogmático, moralizante, sentimental, familiar, à qual pedem rituais de festas – falou-se, a propósito deles, de «cristãos festivos» –, consolação e esperança, sendo esta esperança muitas vezes concretizada pela presença de um crucifixo no quarto de dormir[2]. Numa época em que a quase unanimidade dos católicos considera como caducos «os mandamentos da Igreja», poderá dispor-se de um critério que permita julgar negativamente os comportamentos que compõem este «Cristianismo popular» e declará-los formais e sem conteúdo? Não são eles apenas diferentes dos que desejava e deseja ainda a Igreja oficial?

Se se não quiser rejeitar com desdém esta importante população que continua a dizer-se «cristã», talvez se julgue de outra maneira a descristianização, mesmo nos seus aspectos quantitativos. A partir do momento em que a Igreja deixou de pedir ao Estado que obrigue homens, mulheres e crianças a irem à missa, constituiu-se, de forma inédita, um Cristianismo sem obrigações cultuais, cujo futuro será arriscado predizer. Em todo o caso, estes cristãos – «tíbios» ou «arrefecidos», aos olhos dos militantes empenhados – continuam a formular um pedido religioso sob a forma de festas e de gestos sacramentais, em certos momentos do ano ou da vida. Por que é que lhes deveriam ser recusados? Com que direito? Além disso, o simples bom senso aconselha a não desanimar nem enfatizar a massa dos cristãos «festivos» ou «periódicos como as estações». Poderá haver, por muito tempo, em qualquer sociedade que seja, grupos militantes que não sejam levados por um meio mais largo? Entre a falsa unanimidade da Cristandade do Antigo Regime [sec. XVI, XVII e XVIII até à Revolução Francesa] e uma Igreja que não seria constituída senão por grupúsculos subterrâneos, importa desejar, imaginar, procurar criar uma estrutura intermédia que retenha um número suficiente de cristãos, para que não se desça abaixo do limiar crítico.

Lembro-me, contudo, da frase de François Mauriac, pronunciada já há quarenta anos: «A primeira comunhão da criança é o sinal, oficial e reconhecido por todos, de que ela vai abandonar Cristo e a Igreja»; tenho consciência do problema que eles colocam à Igreja, esses “praticantes episódicos”. Porque, à sua maneira, eles são muito exigentes. Querem, nos grandes momentos, lugares de culto calorosos, corais que cantem bem, belas liturgias, um clero numeroso. Mas, por seu lado, que trazem eles à comunidade cristã senão talvez (e é verdade que isso já é alguma coisa) dons bastante generosos quando são solicitados? Constitui ainda, esta massa, uma reserva de Cristianismo? É habitada por um dinamismo próprio? Possui ela, no fundo de si mesma, os meios capazes de assegurar a sobrevivência da sua fé no dia em que não houvesse mais padres e em que as igrejas estivessem fechadas? Ou são, pelo contrário, uma vela que acaba de se consumir? É isso o que pensam algumas pessoas. Eu recuso-me, a mim, essa perspectiva pessimista, porque o futuro se encarrega muitas vezes de contrariar os prognósticos dos futurólogos. Ninguém pode dizer a que profundidade a fé em Jesus penetrou no interior da população «crente» que já não põe os pés na igreja senão de longe a longe. Na nossa época, Fé religiosa e regularidade de assistência aos Ofícios, já não podem estar ligadas como o estavam antes: é uma novidade e uma evidência que é preciso ter em conta. Todavia, uma coisa me inquieta no comportamento dos “praticantes episódicos”: educam eles os seus filhos numa atmosfera cristã? Fazem-nos ler o Evangelho? Sob o falso pretexto de lhes imporem convicções religiosas, não os deixam crescer na ignorância e na indiferença das coisas de Deus? Aí está o critério sobre o qual eu me interrogava atrás: isso é fundamental. Pode haver um Cristianismo familiar, real e profundo, sem «prática» por pouco regular que seja (ao menos nos tempos e nos países em que não grassa a perseguição)? Sentir-me-ia tentado a responder, em sintonia com muitos padres, que não, e a pensar que a diluição do Cristianismo será a sua morte. Mas nós encontramo-nos diante do inédito, do nunca visto. É arriscado fechar as portas do futuro.

Em todo o caso, tendo em conta o possível abandono do Cristianismo, no decorrer dos próximos decénios, de muitos dos que ainda se dizem cristãos, os responsáveis da Igreja não deveriam tratar altivamente os fiéis – cerca de 10 por cento da população na França actual – que continuam a ir regularmente à missa. Ao longo das épocas, em particular a partir do Concílio de Trento, a Igreja oficial «ofereceu» muito aos fiéis, sem se preocupar com o que devia «pedir». Graças, repito-o, a extraordinárias dedicações, mas graças também a uma notável organização, a uma infatigável repetição, à teologia do medo e ao apoio das autoridades civis, esta «oferta» encontrou aceitantes. Não encontrou, por certo, a unanimidade, e a prova está na descristianização actual. Todavia, em países como o nosso, cristãos «festivos», «pascalizantes» e praticantes regulares assimilaram, em graus diversos, a mensagem que lhes tinha sido apresentada à força de catecismos e de sermões.

Nos nossos dias, em compensação, já não há apoio do Estado, a teologia do medo já não tem audiência e o público é tão instruído ou mesmo mais que aqueles que «oferecem» a religião. De tal maneira que seria, agora, abrir rombos no Cristianismo não ter na maior conta o que se deve «pedir». Torna-se cada vez mais aberrante a ideia de que, num Cristianismo feito ao mesmo tempo minoritário e adulto, se pudesse ainda impor – clericalmente – uma doutrina, uma ética e uma liturgia. A consulta dos fiéis, e em particular dos praticantes, feita ao longo dos dez ou quinze últimos anos, deveria ter chegado a decisões, no meu entender, contrárias ao desta ou daquela linha de acção oficialmente adoptada hoje em dia. Refiro-me, é claro, a uma consulta honesta, feita com o auxílio de questionários que não sugiram as respostas.

Verifica-se, presentemente, na França, que os católicos praticantes, (…).

Jean Delumeau, historiador
«O cristianismo vai morrer?»



Outras obras do Autor:
Naissance et affirmation de la Réforme (PUF)
La Peur en Occident (Fayard)
L’Aveu et le pardon (Fayard)
Ce que je crois (Grasset)
Guetter l’aurore. Un christianisme pour demain (Grasset et Hachette)
Les Religions et les hommes («46 émissions sur la 5» publicadas em livro por D.D.B. et Hachette)
Un chemin d'histoire: Chrétienté et christianisation (Fayard)






1 Entre a abundantíssima literatura que surgiu sobre esta questão, saliento, sobretudo para a Idade Média, R. Manselli, «La Religion populaire au Moyen Âge», Paris-Montreal, 1975; para o período moderno, a obra já citada de Y. M. Bercé, «Fête et Révolte»; para o período contemporâneo, R. Pannet, «Le catholicisme populaire», Paria, 1975, e S. Bonnet, «Prières sécretes des Français d’aujourd’hui», Paris, 1976, especialmente as pp. 251-262. B. Plongeron e R. Pannet, «La Réligion populaire. Approches historiques», sob a direcção de B. Plongeron, Paris, Beauchesne, 1976.
[2] Sigo, aqui, o livro de R. Pannet, citado na Nota precedente, «Le catholicisme populaire».