teologia para leigos

30 de novembro de 2010

3.ECONOMIA - PENSAMENTO DOMINANTE

Esquecer os «Nobel», vencer o desemprego
3. Beneficiários do “Rendimento Mínimo” procuram emprego

«Como é que a política económica pode lutar contra o desemprego?» «Porque é que tantas pessoas estão no desemprego quando há empregos disponíveis?»[1]

Esses estudos[2] concluem, pelo contrário, que entre os que recebem o Rendimento Mínimo de inserção (RMI), muitos são os que procuram activamente emprego, mesmo em casos em que o emprego não seria acompanhado de vantagens financeiras. Por muito que desagrade a Jacques Rueff e aos seus herdeiros, o efeito desencorajador dos subsídios de desemprego não é, portanto, nada evidente. Assim, países como a Suécia e a Dinamarca conseguiram obter os níveis de emprego mais elevados da Europa combinando subsídios de desemprego elevados e despesas públicas consequentes em matéria de emprego − incluindo medidas ditas «activas», que garantem aos desempregados ajuda, aconselhamento e formação. Infelizmente, as «reformas» introduzidas nos últimos anos pelos governos de centro-direita, ali como noutros países, endureceram os critérios de indemnização, reduziram o montante dos subsídios e reforçaram as exigências em relação aos desempregados, designadamente no que respeita às ofertas de emprego consideráveis como «aceitáveis»[3].

A segunda razão do desvario dos laureados está relacionada com o facto do pensamento dominante, que é dotado de uma formidável capacidade de filtragem das observações do real, ter ocultado sistematicamente, desde há trinta anos… a própria possibilidade das crises financeiras, bem como os mecanismos de formação da procura nas economias capitalistas. Outros economistas, certamente menos eminentes, têm contudo alertado para esta realidade.

O americano Hyman Minsky (1919-1996), por exemplo, sublinhou o carácter inelutável das crises numa análise que poderíamos resumir como se segue. Durante os períodos de calma e de crescimento, os actores dos mercados financeiros tendem a esquecer as crises precedentes. Desviam-se progressivamente dos investimentos poucos arriscados mas razoavelmente rentáveis, em proveito de investimentos cada vez mais aventureiros, cuja rentabilidade esperada é muito superior. Aumentando o risco que correm, os investidores acabam por assumir posições financeiras que só poderão ser financiadas por novos empréstimos. Quando o nível de dívidas se torna insustentável (em desfasamento com os rendimentos esperados), o conjunto do sistema acaba por colapsar. É durante estes períodos de secagem da liquidez que o ciclo económico se inverte: não podendo a economia real continuar a financiar-se, o crescimento baixa, as empresas despedem, o desemprego explode.

Esta primeira explicação deve ser combinada com uma segunda, desenvolvida na linha dos trabalhos do economista polaco Michal Kalecki (1899-1970). As políticas de moderação salarial adoptadas desde o início dos anos 1980 provocaram uma grande redistribuição do valor acrescentado − dos salários para os lucros −, da ordem de 5 a 10 pontos de produto interno bruto (PIB) consoante os países… Um facto que não tem precedentes. A fraqueza relativa dos salários levou as famílias a endividarem-se junto de intermediários financeiros, que consideraram oportuno transferir a carga do risco destes empréstimos para os mercados financeiros «titularizando-os», alimentando assim uma dinâmica que desembocou na crise financeira de 2007. Este círculo vicioso foi reforçado e agravado pelo facto de uma grande parte do valor acrescentado novamente afectado aos lucros ter abandonado os investimentos produtivos, em proveito dos investimentos nos mercados financeiros. No conjunto, a deformação do valor acrescentado penalizou fortemente o crescimento e o emprego, visto que, nas economias capitalistas desenvolvidas, a procura global continua a ser sustentada pelos salários e não pelos lucros.

Tais análises conduzem a recomendações de políticas económicas muito diferentes das que avançam os economistas distinguidos pelo Banco da Suécia. Eis as suas grandes linhas.

Para lutar contra o desemprego, os governos deveriam regular as práticas financeiras e fazer com que os lucros alimentem antes de mais o investimento.
Seria necessário reforçar o papel dos sindicatos, consolidar o direito do trabalho, lançar um processo de negociações salariais e trabalhar para uma melhor repartição da carga fiscal entre as classes médias e as classes ricas[4].
Felizmente para a comissão do Banco da Suécia, que não atribui o seu prémio a título póstumo, Minsky e Kalecki foram há muito enterrados… pelo pensamento dominante.

Dany Lang [Centro de Economia da Universidade de Paris XIII]
e
Gilles Raveaud [Instituto de Estudos Europeus da Universidade de Paris VIII]
Docentes, Membros da Associação Francesa de Economia Política

[Le Monde Diplomatique – edição portuguesa, Novembro 2010, p.11, 3ª e última parte]


[1] Comunicado de imprensa da Academia Real das Ciências da Suécia, 11 Outubro 2010.
[2] «Os inquéritos que se dão ao trabalho de questionar os desempregados indicam claramente que as motivações que os animam quase não entram no molde da fria racionalidade calculadora dos «Nobel» 2010» [do post 2.]
[3] Jean-Pierre Séréni, «As zonas sombrias do paraíso dinamarquês», Le Monde diplomatique – edição portuguesa, Outubro de 2009.
[4] http://atterres.org/ «Manifesto dos Economistas Aterrorizados» [trad. de Nuno Serras em www.arrastao.org/]

29 de novembro de 2010

ARGENTINA - NEOLIBERALISMO [VÍDEO]

GENOCÍDIO NEO-LIBERAL
MEMÓRIAS DO SAQUE
a mafiocracia… e a crise
(Argentina)
Se ao fim de 1h não desligou, PF CONTINUE – nem imagina o que vai ver a seguir!
Vídeo: 1h 54m
[governo, oposição, bancos, sindicatos, FMI, Europa]


«Memorias del Saqueo by Fernando E. Solanas» (2003)
Graça & Justiça sempre…
NOTA: «Descontando as diferenças socioculturais, políticas e históricas, acho que ajuda a reflectir sobre a encruzilhada em que estaremos no próximo ano. Cumprimentos.» (enviado por: Jorge Bateira)

24 de novembro de 2010

2.ECONOMIA - PENSAMENTO DOMINANTE

Esquecer os «Nobel», vencer o desemprego
2. Um rasgo de génio… que nos faz voltar a 1931

«Como é que a política económica pode lutar contra o desemprego?» «Porque é que tantas pessoas estão no desemprego quando há empregos disponíveis?»[1]

«As recomendações dos autores em matéria de política de emprego vão beber essencialmente à fonte liberal. «Consideremos o caso de um aumento dos subsídios de desemprego», explica muito pedagogicamente o Banco da Suécia. «Este aumento faz aumentar o ganho ligado ao desemprego e reduz o ganho ligado à obtenção de um emprego; favorece portanto uma subida dos salários [para atrair os candidatos], o que reduz o número de postos de trabalho disponíveis, faz crescer o desemprego e aumenta os salários[2] Os aumentos de salários, alimentados por rendimentos de substituição que reforçam o poder de negociação dos trabalhadores (com a ajuda dos sindicatos) representam um acréscimo de custos para as empresas, que se vêem constrangidas a reduzir o número de postos de trabalho. Ao fim de oitenta anos de evolução do pensamento neoclássico, reencontramos aqui o refrão enunciado em 1931 pelo economista Jacques Rueff: a protecção do desemprego seria a principal causa do desemprego.

Todavia, para que a explicação do desemprego «cole» com as teorias do acasalamento e da procura de emprego, seria necessário que nos convencêssemos de que, na sequência da falência do Lehman Brothers, em Setembro de 2008, os subsídios de desemprego aumentaram subitamente (dando força às pretensões salariais dos trabalhadores) e de que, paralelamente, a perspectiva de uma «bela crise redentora» entusiasmou de repente os trabalhadores, fazendo-os perspectivar ofertas de emprego mirabolantes. De tal forma que oito milhões de trabalhadores americanos se teriam de repente posto à procura de melhores oportunidades de «acasalamento», abandonando empregos mal pagos. Seriam oito milhões de trabalhadores em férias de emprego, muito animados, impropriamente considerados «desempregados» visto que se teriam posto a especular sobre um futuro melhor «investindo» racionalmente num período prolongado de procura de emprego.

O Banco da Suécia, que não pode deixar de ignorar totalmente a crise, julga contudo necessário sustentar a sua posição. Dedica-se, então, a uma defesa e ilustração do acerto das teses recompensadas − que outros podem considerar que se aproximam perigosamente das fronteiras da desonestidade intelectual. A abordagem do Banco assume a forma de um gráfico que relaciona a taxa de desemprego e o número de postos de trabalho por preencher nos Estados Unidos desde 2000. Conclusão? O documento de apoio científico sugere que, «durante a crise actual, observou-se uma nítida deslocação da curva», mas admite que «as razões desta deslocação não estão ainda bem compreendidas».[3] Isto bem merecia um «Nobel».

Existem, contudo, explicações para este fenómeno. Como a que afirma que não há deslocação da curva, mas apenas deslocação ao longo da curva. Segundo esta lógica, o gráfico mostraria claramente que a taxa de postos de trabalho por preencher se afunda nos Estados Unidos entre Junho 2008 e Dezembro de 2009 − enquanto que o desemprego, por seu lado, explode −, contradizendo a tese da comissão do Banco da Suécia. Mas esta versão parece não ter chamado a sua atenção. Nem, de resto, o facto de, na realidade, os salários terem baixado muito no período considerado. Obviamente, isso teria constituído uma segunda invalidação das análises dos «Nobel».

A primeira razão do desfasamento entre a tese do acasalamento e a realidade provém da definição que ela dá do desemprego. Nas nossas sociedades, onde o trabalho é simultaneamente um meio essencial de integração social, uma obrigação moral e uma fonte potencial de desenvolvimento pessoal, fazer equivaler a procura de emprego ao resultado de um simples cálculo racional é negligenciar as motivações reais dos que procuram emprego. Os inquéritos que se dão ao trabalho de questionar os desempregados indicam claramente que as motivações que os animam quase não entram no molde da fria racionalidade calculadora dos «Nobel» 2010

Dany Lang [Centro de Economia da Universidade de Paris XIII]
e
Gilles Raveaud [Instituto de Estudos Europeus da Universidade de Paris VIII]
Docentes, Membros da Associação Francesa de Economia Política

[Le Monde Diplomatique – edição portuguesa, Novembro 2010, p.11]


Segue-se, nos próximos dias, a última parte do Artigo:
3. “Beneficiários do Rendimento Mínimo procuram emprego”


[1] Comunicado de imprensa da Academia Real das Ciências da Suécia, 11 Outubro 2010.
[2] Scientific Background on the Sveriges Riksbank Prize in Economic Sciences in Memory of Alfred Nobel 2010, Market with Search Frictions, pp. 17-18.
[3] Scientific Background…, ibid, p.14.

20 de novembro de 2010

1.ECONOMIA - PENSAMENTO DOMINANTE

 Esquecer os «Nobel», vencer o desemprego
1. Desemprego – um problema de «acasalamento»…

«Como é que a política económica pode lutar contra o desemprego?» «Porque é que tantas pessoas estão no desemprego quando há empregos disponíveis?»[1]

«Dificilmente encontraríamos questões mais urgentes e pertinentes, no momento em que o número de desempregados atinge novos recordes na maioria das economias desenvolvidas. Distinguindo os economistas Peter Diamond, Dale Mortensen e Christopher Pissarides pelos «novos contributos» que trouxeram para a compreensão do «funcionamento dos mercados», o Banco Central da Suécia – que imita todos os anos os comités Nobel[2] concedendo a sua própria versão do célebre prémio no domínio da economia – parece ter acertado no alvo. Contudo, não é impossível que tenha também desejado vir em socorro de um pensamento dominante à deriva e cujos timoneiros tentam fervorosamente defender em contracorrente com a realidade económica.

Os economistas recompensados situam-se na tradição dita «neoclássica», segundo a qual os mercados, entregues a si próprios, favorecem a realização do equilíbrio entre a oferta e a procura, através do mecanismo da evolução espontânea dos preços. Aplicada ao mercado de trabalho, esta doutrina promete-nos que o livre jogo das forças concorrenciais será suficiente para assegurar o pleno emprego. Se as engrenagens de uma tal esplêndida mecânica geram, a pesar disso, o desemprego, é porque diversas formas de «rigidez» as entravam: em particular, os sindicatos e as legislações constrangedoras (salário mínimo, direito do trabalho, etc.). Os trabalhos distinguidos este ano pelo Banco da Suécia interessam-se pelas imperfeições do «mercado de trabalho». Mortensen e Pissarides, retomando as análises de Diamond respeitantes às «fricções» sobre os mercados, debruçam-se sobre a dificuldade que as empresas e os desempregados sentem em «encontrar-se»: no jargão destes economistas, o desemprego teria origem num «problema de acasalamento». Com efeito, sendo imperfeita a informação de que uns e outros dispõem, o processo de procura de emprego consome tempo e origina sobrecustos. O que provoca – explicam – desemprego. Tais conclusões parecem ser, a priori, sensatas. Quanto mais a procura de emprego se revela difícil ou dispendiosa, mais elevado é o desemprego. Da mesma forma, para as empresas, quanto mais problemas são colocados pelos recrutamentos ou pelos despedimentos, tantos menos postos de trabalho serão criados. (…)».

Dany Lang [Centro de Economia da Universidade de Paris XIII]
e
Gilles Raveaud [Instituto de Estudos Europeus da Universidade de Paris VIII]
Docentes, Membros da Associação Francesa de Economia Política

[Le Monde Diplomatique – edição portuguesa, Novembro 2010, p.11]

Segue-se, nos próximos dias, a segunda de 3 partes do Artigo:
2. “Um rasgo de génio… que nos faz voltar a 1931”
3. “Beneficiários do Rendimento Mínimo procuram emprego”


[1] Comunicado de imprensa da Academia Real das Ciências da Suécia, 11 Outubro 2010.
[2] Ler: Hazel Henderson, ‘A Impostura’, Le Monde Diplomatique – edição portuguesa, Fevereiro 2005.

18 de novembro de 2010

Padre AMÉRICO - COM ESTAS ARMAS

Nunca o gesto será bastante - «às avessas da Parábola do Evangelho»

«Toda a gente que pensa e que deseja sinceramente um Portugal melhor, importa-se sobremaneira com o problema da vadiagem infantil; - aquela escola que começa por uma inocente ponta de cigarro e chega às mais ousadas formas de crime. São justamente desta escola os alunos da Casa do Gaiato; alguns tão perfeitos em seu género, que eu nem sequer posso pensar em entregá-los à família, - ninho de perversão.
«O pequenino que chega, uma vez instalado no que é seu, logo mostra o que viria a ser, se ficasse no meio onde estava. Ganha confiança, faz as suas confidências, abre o coração: - o gajo que dorme com a minha mãe é pedreiro e trata-me mal, mas eu quando for grande hei-de furá-lo com uma navalha.
A Sociedade gera monstros; estes inocentes são dos que mais tarde se sentam no banco dos réus.
Nenhum ardina me passou até hoje pelas mãos, sem a sua história, que ele conta cândidamente, ao sentir-se amado; todos se apresentam predispostos à tuberculose e dispostos à prática do mal. De sorte que a Casa do Gaiato serve dois fins: - livra-o do Sanatório e do Reformatório.» [p.64]

«Sábado é dia de limpeza geral. A escola termina às onze e após o jantar, os garotos tomam escovas e joelheiras. Os cântaros de água sucedem-se. A casa fica a espelhar. Não é para mostrar a quem venha. Que temos a casa assim limpa; é para conforto e bem-estar. É educar. É a nossa casa, onde temos a lareira. É pobre como a deles, só mais asseada. A deles podia ser assim, e devia – se tu comesses menos e poupasses mais.
Os muito pequeninos têm suas aias, que os vestem, limpam, zelam. Eles sabem quem elas são, e chamam pelo seu nome, nas emergências!
E quando, à noite, os vão deitar, as aias, tomam-lhe a mãozita e fazem-lhe, com ela, o sinal da cruz. Para ensinar crianças, não há como crianças. Como muitos dos garotos andam na casa dos sete, houve de se mandar fazer bancos, para eles chegarem às coisas da sua obrigação. É vê-los em toda a parte, empoleirados nos bancos, a espanar, - felizes.
O rapaz assim à vontade, é expontâneo, encantador. Ele é ele cem por cento, imprimindo a tudo que faz e diz, carácter infantil; espalhando na casa alegria e mocidade. Fazem mandados e recados como quem brinca, pondo em tudo a marca do seu ser. Há um que finge com muita graça as vozes dos animais, e não poucas vezes sucede enxotar a Regente de debaixo das mesas, cana na mão, o gato ou o cão da casa; e não é gato que mia nem cão que ladra, mas sim o garoto que brinca! (…) O assobio continua a chamar, mais estridente. Procura-se, pergunta-se; o rapaz, de cima espreita e goza. A Regente jura-lhe pela pele; - Deixa que tu hás-de vir.
- Já cá estou, grita o gaiato de cima da árvore!
São assim os habitantes da Casa do Gaiato. Não atrofiamos nem mortificamos os Miúdos; corrigimos como quem brinca e eles, a brincar, deixam-se corrigir.» [p.55-58]

«O ZÉ NADA morreu-nos, de combalido que vinha! O Manelsito,  retirado de uma fossa onde a  Mãe o lançara, escapou. O Augusto de Odemira não está contente. O Camilo e o Lisboa, da Comunidade de Miranda [do Corvo], são designados «fundadores» de Paço de Sousa. Os nossos rapazes lançam as fundações da futura aldeia. O Rio Tinto entra no que é seu. O estômago muito composto e o sol muito quente, levam os pequeninos a dormir em qualquer sítio e posição - este adormeceu no alpendre da capela.
-A gente no Alentejo não usa destas coisas, diz o Zé Carlos, apontando os bacios!
- Deixa lá, Zé Carlos, que é por pouco tempo. Chegando outro tu largas.


Neste mês de Abril são os anos de:
Leonel de Coimbra, onze anos, dia 1. Manuel de Anadia, seis anos, dia 6. Adolfo de Coimbra, 12 anos, dia 12. Carlos Alberto, 13 anos, dia 15.» [p.121]


«Deu entrada no Lar, logo no seu início, um Pupilo do Reformatório de S. Fiel, saído há muito daquele Estabelecimento, com três anos de vadiagem. Dentro em pouco houve de ser expulso, e com ele, foi igualmente o criado, iludido pelo vadio. Este, desapareceu de Coimbra; aquele, ficou.
Bateu à porta vezes sem conta, até que um dia uma comissão de rapazes pede ao Maioral que o deixe entrar.
Entrou, mediante a condição de ser considerado e tido como servo e não filho. Era uma tremenda prova. Não mais se sentaria à mesa, nem tomaria parte nos actos da comunidade, nem trataria por tu os seus antigos companheiros. Criado peco e seco. O Rapaz aceitou e cumpriu.
No fim de alguns meses, os companheiros pedem ao Maioral que lhe levante o castigo e assim se fez.
O regozijo não coube na alma da comunidade; um filho perdido volta à casa paterna.
Às avessas da parábola do Evangelho, aqui, os irmãos, pediram a entrada dele e fizeram a festa.» [p.85]

«Todos quantos sinceramente nos quiserem auxiliar, não devem trazer para aqui o empenho do menino muito bonzinho que ficou ontem sem Mãe e que nunca levantou a mão para ninguém, coitadinho. Não devem, que a nossa especialidade é justamente receber e amparar o que há de mais agressivo, de mais reles, de mais repugnante, de mais vicioso. Rapaz em bruto, sem carinhos, nem cuidados, nem família, nem amor de ninguém, para ser transformado a seu tempo pelos nossos carinhos, pelos nossos cuidados e pelo nosso muito amor. Sim, leitor do Porto, coloca noutros organismos o menino desamparado e aqui, o mestre de vícios.
Se salvares um, - salvas-te.
Há dias cheguei de fora e topei um pequenino na casa onde habito, em Coimbra, mai-los rapazes saídos do nosso Reformatório, ao deus-dará. Indaguei. Tinha vindo de véspera pela mão do Pai, a quem se dissera que viesse no dia da minha chegada e o homem fingiu ir a um recado e não voltou. Não gostei e decidi conduzir o pequeno a casa, mas ele roubou dinheiro e uma corrente de prata nas horas que esteve em nossa casa. Recomendou-se.
É meu.
Sentei-o no meu regaço. Confessou com lágrimas: pediu perdão. O amor é eloquente.
Encontra-se hoje aos cuidados do mestre de moral da Casa do Gaiato. O pequenino ladrão, ocupado como anda com os trabalhos da quinta e alegre no convívio dos irmãos, cura-se sem dor.
Assim se furta um homem aos laços de justiça que por cega e não compreender, tantas vezes erra.» [p.148-149]

«Ora é precisamente neste mesmo espírito, que eu venho contar ao mundo, como os montes marcham e os elementos obedecem; − fareis prodígios maiores do que eu, se tiverdes fé em mim. (…) É a voz de um coração que vive e que sente a vida e a sorte das chusmas infantis, a vender jornais nas ruas, a tirar lixo das latas, a guiar cegos nas feiras, a ir pela sopa aos quarteis; e, sobretudo, os dados à moinice, viciados, pervertidos pela família e pela sociedade, a chupar pontas de cigarros − o prólogo dos grandes crimes. Eles, património da Nação, os predilectos de Jesus, que se morressem naquela idade iriam vestidos de branco com sinos a repicar.» [p.5-6, ‘Memorare’].

«Foi no Beco do-Moreno, em Maio de trinta e cinco, que o miúdo me apareceu. Enquanto que as grandes artérias das grandes cidades mudam frequentemente de nome, consoante as paixões mai-los acontecimentos do tempo, os becos e vielas das mesmas, tomam a sorte de quem lá mora; nem nome, nem condição. Ninguém faz caso.
«Passava eu por ali, naquele mês e ano, quando um garoto da rua embarga o meu caminho num angustioso e imperativo venha ver o meu pai que está na cama e a gente passamos fome.
«O casebre era ali mesmo. Subi a escada apoiado ao corrimão e aos ombros do rapaz, sempre a dizer-me baixinho − não caia meu senhor; que se os perigos dos Alpes são grandes, pela altura, aqui não são menores, pela escuridão.
«Entrei no cubículo. Coisas e formas emergiam da sombra, lentamente. Reconheci o homem com quem falava. Tratava-se de um tipógrafo da Imprensa da Universidade, mandada fechar, ao tempo, por ordem superior e hoje abrigo de pombas nos buracos das paredes. Quantas vezes não fui eu assobiado às portas daquela casa, só porque uso batina e digo missa no altar, − quantas! Nós éramos conhecidos. O padre é o grande mal do mundo, assim diziam os companheiros, mai-los livros que ele compunha; corrê-los da sociedade, é um grande benefício. Muitos por causa do meu nome, hão-de julgar fazer bem ao mundo, perseguindo-vos até à morte, ensinara Aquele que vê tudo no presente. Tinha chegado a este homem o feliz momento de ouvir estas verdades e a mim, o de me vingar dele à maneira do Evangelho!
«Este foi o terceiro tipógrafo encontrado no meu giro, que teve a sorte de compreender, antes de morrer. Antes dele, um seu colega, recebera-me na trapeira, com uma pedra na mão; enganou-se padre, aqui não há dinheiro. Morava numa rua antiga da Alta [de Coimbra], casa de degraus até ao céu, íngremes, carunchosos, sem luz. O homem era de idade em flor e tinha saído das oficinas para a casa onde morreu, com sangue pela boca. Os colegas visitaram-no, fizeram uma subscrição, indagaram das melhoras; e por fim, esqueceram-no. O tempo tudo gasta, até as maiores simpatias.
«Começa ele a viver do que é seu. Primeiramente o relógio, a seguir os trastes, depois as roupas − tudo. Só tinha os olhos da cara quando na mansarda entrei. O padre, corrido ontem, volta no dia seguinte com mimos e tabaco, arrisca duas palavras e some-se nos degraus, −para vencer.
«Muitas vezes convém recuar para atacar com mais força. Pai Celeste, perdoa-lhes, que não sabem o que fazem.

«Com estas armas na mão, nestes campos de batalha, contra inimigos assim, nunca ninguém naufragou. Este, caiu varado, dentro de pouco tempo; e sobre o leito da morte, na maré dos sacramentos, fez o seu testamento deixando-me herdeiro universal de tudo quanto possuía: um filho, mai-la a viúva.» [p.7-10]

«Ai cidade do Porto, quão tarde te conheci!»

Pe. Américo

[excertos de ‘Obra da Rua’, Pe. Américo Aguiar, Paço de Sousa, 1965 – reportam-se a um Portugal dos anos 30-40; respeitou-se a grafia]

Graça & Justiça para todos…

17 de novembro de 2010

16 POEMAS EM CRISE

«nunca os limites foram tão estreitos»
− 16 poemas sob penumbra


−1.−

Os que ouvem
as notícias
batem palmas


o aplauso
ensurdecedor
ressoando na eterna pergunta
de cascalho


−2.−

Os filhos
foram esmagados
na encruzilhada da hora

Os escravos
extirpam da terra
a placenta do muco

A roupa
fala, no acre do bidé
um estrépito de prostituta
alçapão tábuas e rolamento

E
o povo nu
na vergonha do rei que o vendeu

−3.−

Vendemos
o inesgotável

A abundância
do saque
assusta-nos

e os filhotes não podem fazer nada

A reserva
é uma água que
nos escapa
um covil, vil

−4.−

Os cavaleiros
vertiginosos
tomam de assalto
o carro

Os rios
se precipitam
por ruas e vielas

O gemido
é aí abundante
mais agudo
que o tilintar da sílica

No vórtex
não há quem não golpeie
as águas da dor

−5.−

As pombas
pararam a forma do ar
e o voo do vento

No peito
habita
uma vergonha pública

O consolo
é uma presa
um exército vergado

Ninguém
sai para cuidar da cria

O cerco
vigia,
cansado

−6.−

Até
a vingança
apodreceu no parapeito
esquecida na noite
quente

A aflição
aniquilou
a aflição

e o jugo rasga
a dispersão dos aflitos
daqueles
que se consomem
em enxergas
de palha seca

Vigiar
os acessos,
para quê?

−7.−

É hora
de prestar contas
das agressões persistentes

É hora
de libertar vítimas
e castigar carrascos

Os rios da justiça são
um grito de poeira
que se ergue e deposita,
convulso

−8.−

O emaranhado
das imagens
empurra à treva

Em festins de morgue
se consome a angústia
assaltada por uma réstia
de cerco

E as forças redobram
seu percurso de açafrão…

O vale
enche-se de vítimas e serpentes

Tropeçamos
nas próprias pernas
enlouquecidos
sem volta atrás

Nunca os limites foram tão estreitos…

−9.−

O suplemento
é uma plenitude

um despojo por chegar

Predomina
a impressão de contemplar
o irremediável

−10.−

O lixo
te expõe

e enobrece

Ó meu povo
na rua de camões…

−11.−

O coro
dos submetidos
é irrepetível

A história
tantas vezes
o aplauso da derrota

Ó palavra
encerra-te no teu continente
e funde a estrela
até que o senhor sol
nos devolva

e crave

−12.−

Buscarás
a argila esmagada
entre teus próprios
dedos

A cozedura
devora o gafanhoto
enquanto os isensatos
cochilam

Tua ferida
é incurável
Di-lo a multidão
dos fugidios

−13.−

As montanhas hão-de tremer diante do Senhor

−14.−

E aqui
estou eu
contra ti

Sempre contra ti

Sempre

−15.−

Penetrando
a penumbra da manhã

irrompe o formidável

Não há remédio
- a invasão dum incêndio
múltiplo e devorador.

Sentinela, que vês?

−16.−

Lamentação do profeta Miqueias, 7


Ai de mim! Porque sou como quem rebusca
terminada a vindima:
nem um cacho para comer,
nem figos temporãos de que tanto gosto.
Desapareceram da terra os justos,
não há ninguém íntegro.
Todos espreitam a hora de se lançar sobre o outro,
cada um arma laços ao seu irmão.
Peritas são, no mal, suas mãos;
o príncipe exige,
o juiz julga sobre a mesa do suborno,
aquele que é grande manifesta abertamente sua cobiça
e urde intrigas.
O melhor dentre eles é como um tojo.
Mas eu estou alerta
aguardando Quem me escuta.

«Agora começa o julgamento deste mundo…»

16 de novembro de 2010

Auschwitz [Vídeo]

«Mother, do’nt cry…»

[inscrição, na parede, de uma jovem judia no campo de concentração de Auschwitz]

Audio-vídeo: [Música de Henryk Gorecki]



TOLENTINO - O MONGE PASTELEIRO

Um pequeno conforto
A história é esta: uma mulher vai a uma pastelaria de um centro comercial encomendar um bolo para o aniversário do filho. Como qualquer um de nós faria, deixa lá o seu nome e um contacto telefónico. Só que, exatamente na manhã do aniversário, o miúdo é atingido por um automóvel, entra em coma e morre. O pasteleiro não faz ideia do que se passa. Sabe apenas que aquela mulher encomendou um bolo que não veio buscar. Começa a persegui-la nos dias seguintes com chamadas anónimas. A mulher, por um acaso, descobre que é ele o autor dos telefonemas e, em pleno trauma pela morte do filho, decide ir com o marido ao Centro Comercial dar-lhe uma lição. No primeiro momento do encontro só se vê, de facto, o confronto da ira dela com o ressentimento  do pasteleiro. Mas quando Ann diz o que ele não sabe, a fúria descongestiona-se dando lugar a outra coisa.
«-Deixem dizer-lhes a pena que sinto - disse o pasteleiro, pondo os cotovelos em cima da mesa. - Só Deus sabe quanto lamento. Oiçam lá, eu sou apenas um pasteleiro. Não pretendo ser outra coisa… Isso não vai justificar aquilo que fiz, eu sei. Mas sinto profundamente… Têm de compreender que tudo se resume ao facto de eu já não saber como atuar. Por favor, deixem-me perguntar-lhes se posso encontrar perdão nos vossos corações?».
Fazia calor na pequena pastelaria. Ann e o marido tiraram os casacos. O pasteleiro colocou umas chávenas sobre a mesa. Eles sentaram-se. E, muito embora estivessem cansados e angustiados, começaram a ouvir o que aquele homem tinha para dizer.
«-Provavelmente, precisam de comer alguma coisa - disse o pasteleiro. - Espero que comam uns pãezinhos quentes, feitos por mim. Têm de comer e enfrentar a situação. Comer dá um certo conforto, numa ocasião como esta - disse ele».
Continuavam a escutá-lo. Comiam agora devagar um pão escuro e perfumado que o homem lhes abriu, sentiam com surpresa o seu gosto retemperador e delicado. Pela madrugada dentro, deixaram-se ali a conversar. As luzes fluorescentes do estabelecimento foram substituídas pela luz da manhã, que começou a escorrer pelas janelas.
Gosto muito deste conto de Raymond Carver e já o tenho repetido. O que aprecio nele é sobretudo mostrar como as cenas da vida quotidiana, mesmo as mais dramáticas, nos podem abrir aos grandes espaços da experiência interior. As palavras criam um clima de acolhimento e escuta. O alimento consola, enxuga as lágrimas. Dentro das personagens acontece uma espécie de ressurreição. De facto, quando a gente aceita que mesmo sobre aquilo que nos parece imperdoável há mais do que um ponto de vista, ou quando compreendemos que, em grande parte das situações, mais do que premeditação o que existe é ignorância, então estamos prontos para encontrar perdão nos nossos corações.
Torna-se finalmente claro que o conforto que falta à nossa vida é bem mais pequeno do que supomos. Basta-nos o conforto de atravessar ao lado de outros a nossa noite e assistir aí, esperançados, à chegada da manhã.

José Tolentino Mendonça
In DNotícias.pt
14.11.2010