teologia para leigos

5 de julho de 2012

COMO SURGIU A IGREJA? [J.A. ESTRADA]

A COMUNIDADE CRISTÃ - PRIMEIROS PASSOS…


Introdução

A evolução de Jesus até à Igreja’ está marcada por três acontecimentos que sinalizam descontinuidades e roturas.
Por um lado, há que atender à relação entre Jesus e as incipientes comunidades. Quero dizer, há que prestar atenção à contribuição de Jesus para o cristianismo, ainda que, estritamente, ele não tenha fundado nenhuma igreja.
Por outro lado, há que ter em conta as diferenças entre o ramo cristão palestiniense e o ramo helenista, este preponderante nas colónias judaicas do Império romano.
Finalmente, há que estudar as relações internas entre comunidades judeo-cristãs (com os seus dois ramos palestiniense e helenista) e as igrejas gentílicas, isto é, igrejas de maioria não judaica.

O cristianismo baseia-se numa dupla divisão dualista: judeus e pagãos (dentro do Império) e palestinienses e helenistas (dentro do judaísmo). Estes três âmbitos de demarcação (Jesus e as comunidades; as relações entre comunidades judeo-cristãs; e as relações destas com as de maioria pagã) estão, por sua vez, vinculadas a duas roturas temporais.
Por um lado, a que se produziu com a morte de Jesus e o anúncio da ressurreição, o que marcou um antes e um depois para a comunidade, aí pelos anos 30.
Por outro, a primeira guerra judaica (66-70), que estabeleceu uma cesura fundamental no mundo hebreu, mas também no movimento cristão que se desligará daquele.
Deve acrescentar-se um terceiro acontecimento importante: a segunda guerra de 131-135 contra o César romano, que afundará definitivamente o povo judeu e, com ele, a igreja de Jerusalém, e que fez inclinar o prato da balança, definitivamente, para o lado dos pagãos.




Jesus e a sua comunidade de discípulos

Jesus foi um judeu reformador, o profeta do Reino de Deus, tanto no sentido espacial (reino que se torna presente em Israel), como no sentido pessoal (senhorio de Deus na sociedade). O «Reinado de Deus» é algo central nos evangelhos, sobretudo no de Mateus («reino dos céus», 33 vezes) e no de Lucas (46 vezes). Jesus inscreve-se num movimento profético reformador com matizes messiânicos e traços apocalípticos vinculados a João Baptista (Mt 3:2, «arrependei-vos porque se aproxima o Reino de Deus»), com uma visão muito peculiar sobre o senhorio de Deus sobre Israel. O propósito de Jesus não era fundar uma igreja à parte, separada. Por isso, a sua pregação centrou-se em Israel e resistia a trabalhar com não hebreus. Procurava restaurar a sociedade para que Deus reinasse nela. Para isso formou um grupo de discípulos à sua volta, um núcleo itinerante de companheiros no qual alguns tinham mais protagonismo, bem como um círculo muito mais amplo de seguidores que lhes servia de apoio e retaguarda. Ambos os grupos constituíram a sua comunidade de discípulos – simbolizada pelos doze discípulos ou apóstolos – que representavam a totalidade de Israel. Davam muita importância ao desprendimento total (tinham deixado tudo; Lc 5:11.28; 12:33; 14:33; 18:22; 22:35).
Este movimento, itinerante e carismático, converteu-se no núcleo duro do cristianismo subsequente e manteve uma ampla relação com simpatizantes que de longe o mantinha sem, contudo, se integrarem nesse movimento.

A comunidade inicial utilizava o simbolismo dos ‘Doze’ apóstolos ou discípulos (Mt 19:28; Mc 10:37 par.). Este símbolo importava como número colectivo, não como indivíduos concretos cujos nomes e identidades desconhecemos. Entre eles destacavam-se alguns com maior vinculação ou proximidade a Jesus, tais como Simão (redenominado Pedro) e João, Tiago ou André. Não devemos perder de vista que as comunidades retro-projectavam para a época de Jesus a autoridade que alguns discípulos vieram a ter depois da morte de Jesus. Ou seja, os grandes apóstolos das igrejas apresentaram-se também como líderes da comunidade de discípulos de Jesus, mesmo que nem todos os apóstolos tenham sido discípulos, nem sequer todos ou cada um dos doze tenham desempenhado um papel fundamental nas igrejas.

A partir da constituição deste grupo, Jesus procurou mudar as mentalidades e transformar as relações pessoais que com eles tinha, na linha do reinado de Deus que ele próprio lhes pregava. Esse grupo foi também a plataforma para transformar a sociedade israelita, donde sairiam as primeiras missões, sempre limitadas às fronteiras de Israel. As «parábolas do reino» expressam a urgência e a radicalidade dessa mudança que Jesus propôs, ainda que posteriormente as parábolas tenham perdido intencionalidade messiânica e se tenham convertido em admonições espirituais e morais para o comportamento das igrejas. Isto é, historicamente Jesus foi um reformador judeu e não fundou nenhuma nova religião. Movimentava-se dentro das fronteiras proféticas e andava próximo dos círculos reformadores e críticos das autoridades sacerdotais e políticas.


O «movimento de Jesus» foi um grupo carismático e profético, com evidentes traços heréticos e cismáticos face à religião oficial hebraica. A sua compreensão do judaísmo baseou-se numa reinterpretação da Escritura e da tradição das leis segundo uma concepção renovada de Deus. Contrastava com os traços severos, legalistas e juridicistas da ortodoxia judaica do seu tempo, inclusivamente de João Baptista donde derivou Jesus e o seu grupo inicial. Pretendia renovar Israel com o anúncio da chegada iminente de Deus e respondia a expectativas populares acerca de uma restauração futura de Israel (Mt 17:11; Mc 9:12; Act 1:6). Jesus e os seus discípulos esperavam a chegada imediata desse reino de Deus. Isto é, defendiam uma «escatologia» imediata e estavam convencidos de que essa etapa final da salvação já estava em marcha, ainda que se pudesse prolongar para diante pelo futuro. Jesus era um profeta que anunciava o final dos tempos, a época messiânica, época em que Deus cumpriria as suas promessas.

Após a sua morte e o anúncio da ressurreição, o seu tempo foi denominado tempo messiânico ainda que não tenhamos a certeza de se Jesus se via a si próprio como o Messias ou se, antes, terá sido a comunidade a proclamá-lo como tal. As expulsões dos demónios e os milagres foram sinais que levaram a datar a era messiânica como coincidente com o tempo da vida terrena de Jesus. Das trinta e oito vezes em que se fala da chegada do Messias no Antigo Testamento, só três vezes se referem, na linha proclamada pelas comunidades cristãs, expressamente ao enviado do final dos tempos (1 Sam 2:10; Sl 2:2; Dn 9:25-27). O anúncio da ressurreição e a proclamação da entronização de Cristo (o Ungido) à direita do Pai (que corresponde ao conteúdo teológico das imagens da Ascensão e do Pentecostes) reforçaram os traços messiânicos anteriores. A guerra judaica foi interpretada como um sinal da proximidade do fim, misturando predições de Jesus sobre a chegada do reino com descrições posteriores sobre a guerra. A mensagem era clara: aproxima-se o tempo final (Mc 14:25; Mt 10:23; 24:29) e a guerra confirmava o juízo de Deus sobre o povo e o cumprimento das suas promessas. Daí o entusiasmo comunitário que via, na ressurreição, o grande sinal a provar que já tinha começado o esperado reinado de Deus, e, na guerra, um novo sinal da proximidade do fim.



Como surgiu a Igreja?

A escatologia imediata, que Paulo também defende (1 Ts 4:15-18; 1 Cor 15:52-54), converte-se num problema face ao atraso do final dos tempos, insistindo-se na necessidade de se manterem vigilantes (Mc 13:22.33-35; Mt 24:36.42-50; Lc 12:39.40.46; Act 1:6). Esta expectativa muito imediata (Maranatha, ‘Vem Senhor Jesus!’: 1 Cor 16:22) deu lugar a uma esperança mais tardia (2 Ts 2:1-11), a qual foi legitimada por uma teologia missionária (2 Pe 3:8-9; 1 Clem 23:3-5). As missões consideravam-se inspiradas por Cristo ressuscitado e pelo Espírito divino (Mt 28:18-20), e isso permitiu-lhes ultrapassar a crise provocada por uma parusía sempre adiada. O adiamento foi referido ao próprio Cristo (Mt 24:45-51; Lc 12:42-46) e justificado com a expressão ‘para Deus mil anos são como um dia’ (2 Pe 3:8-9; 1 Clem 23:3-5). Por fim, pedia-se a Deus que atrasasse a chegada final para que houvesse tempo para anunciar o evangelho até aos confins do mundo: «Deus adiara levar a cabo a destruição e a confusão do universo por causa da semente dos cristãos ainda há pouco lançada sobre o mundo» (Justino, Diál., 31:2; Apol., II,6,1). Tertuliano, nos finais do século II, afirmava que os cristãos rezavam a Deus pelo imperador e para que se atrasasse o final dos tempos (Apologético 32,1; 39,2). Passou-se de uma grande tensão escatológica (venha o teu reino!’), a qual favorecia a crítica e a resistência ao ambiente hostil judaico e romano, para uma progressiva integração no Império que se procurava, agora, evangelizar, etapa considerada necessária antes que chegasse o fim dos tempos.

O cristianismo percorreu um longo caminho desde a sua condição original de marginal, estigmatizado e contra-cultural até converter-se na religião oficial do Império. O resultado foi a cristianização do Império romano e a helenização e romanização do cristianismo. Desta síntese surgiu o Ocidente.

Esta tensão escatológica explica também a ausência de estruturas, instituições e cargos na época de Jesus. A comunidade inicial estava muito pouco estruturada. Vivia-se uma época carismática, na qual a autoridade moral do fundador e a vinculação pessoal a ele eram o determinante. A isto deve-se acrescentar o desinteresse de Jesus em dotar com estruturas um grupo que teria de sobreviver para lá da sua morte. À consciência de que o grupo fazia parte de Israel tal como o próprio Jesus fazia e o facto de que o reinado de Deus se imporia em Israel a partir da comunidade de discípulos vinha juntar-se a ideia de uma intervenção divina imediata. Por isso, não havia grande interesse em organizar o grupo e prepará-lo para a missão. Esperava-se Deus e o seu reino e colocava-se a tónica na conversão das pessoas. Quanto mais convencidos estavam de que o fim da história era iminente menos interesse havia pela reforma social ou pela organização institucional da comunidade. O importante era mudar as pessoas e as relações pessoais face a um reinado divino cada vez mais iminente. Neste contexto, tão-pouco havia interesse pelas missões para fora de Israel, nem intencionalidade alguma em se constituirem como uma religião à parte do judaísmo.

Importante era em que é que os discípulos se distinguiam de Israel, enquanto perdurava um claro desinteresse por instituições, cargos e estruturas, as quais pouco depois viriam a ter grande significado. Em sentido estrito, não se pode falar da fundação de uma igreja por Jesus, muito menos de um momento fundacional. Jesus não estabeleceu um marco institucional para a futura Igreja. Tudo isto será obra posterior da comunidade pós-pascal dos discípulos, a qual serviu de ponto de união ente Jesus e as comunidades posteriores. Estas surgiram como consequência da acção dos discípulos e não do próprio Jesus. A comunidade cristã era um caminho (‘a via’) dentro do judaísmo (Act 9:2; 16:17; 18:25-26; 19:9.23-24) e foi denominada ‘seita dos nazarenos’ (Act 24:5.14; 28:22). Finalmente, constituiu-se como uma igreja à parte, recebendo, então, os seus seguidores, o título de ‘cristãos’ (Act 11:26).



Inicialmente, a comunidade fazia parte de Israel e depois da morte de Jesus nele ficou integrada, frequentando o Templo e participando da vida judaica ainda que com pontuais e crescentes medidas de hostilidade por parte das autoridades contra os hereges cristãos. As confrontações cristalizaram-se em expulsões das sinagogas, em perseguições (Mt 23:34; Lc 12:11; 21:12; Jo 16:2; Act 22:19; 26:11; Ap 2:9-10) e outras medidas coercivas tais como a introdução de uma maldição contra os hereges na oração quotidiana judaica. A rotura global entre o movimento cristão e Israel há que a situar na primeira guerra judaica. É compreensível a reacção maioritária hebraica contra um grupo cismático que foi crescendo e que se converteu numa alternativa a Israel. Havia que defender a ortodoxia hebraica contra os nazarenos heterodoxos que queriam apropriar-se das suas tradições, começando pela «Escritura», e que se auto-apresentavam como o verdadeiro resto de Israel. Este ataque frontal, no qual Paulo desempenhou um papel fundamental, explica a reacção defensiva do judaísmo, sobretudo após a primeira guerra, e a hostilidade crescente contra os cristãos. Alguns historiadores esquecem que a história do anti-semitismo cristão tem um prólogo anti-cristianismo judaico que incitava as autoridades romanas contra os cristãos. O medo do anti-semitismo secular do cristianismo leva, por vezes, a esquecer a hostilidade inicial dos judeus contra os hereges que pretendiam usurpar a sua tradição.





O nascimento da Igreja cristã

A morte e o anúncio da ressurreição de Jesus marcaram o fim da comunidade de discípulos e o início do processo rumo à comunidade. Primeiramente, transformou-se a mensagem de Jesus: a preferência pelos pobres e pecadores, como destinatários preferenciais, deu lugar ao anúncio a Israel, no seu todo, e, depois, aos gentios. A proclamação do Reino de Deus foi descentrada pelo anúncio da chegada do «reino de Cristo» (1 Cor 12:3; Ef 5:5; Col 1:13). Imediatamente, proclamou-se Cristo como o «auto-reino» (Orígenes) perdendo-se as implicações sociais e políticas que o termo tinha nos começos. O pregador passou a ser o objecto da pregação e a expressão ‘reino’ transformou-se para ser moldada à ideia revolucionária de um messias crucificado (1 Cor 1:23). A parusía do Crucificado a segunda vinda do Cristo triunfante depôs a primitiva esperança de um reinado de Deus sobre Israel extensível à humanidade. A comunidade pascal oscilava entre o triunfalismo do reino de Cristo como salvação já presente (Lc 23:42-43; Col 1:13) e a ideia de que o reino está em conflito com os poderes deste mundo até à chegada de Cristo juiz.



Esta mudança de acento implicou uma espiritualização e uma etização da mensagem do reino por oposição à sociedade romana. Começa a transição do Jesus histórico para o Cristo da fé. Esta evolução transformou a ideia de Deus vinculando Cristo ressuscitado a Deus segundo imagens tais como Filho de Deus, Palavra divina, Novo Adão, Filho do Homem escatológico, etc., as quais constituem o ponto de partida para os títulos dogmáticos posteriores.

Os títulos cristológicos dos escritos fundacionais cristãos são uma criação comunitária. Reflectem a nova interpretação que se fez de Jesus e da sua acção à luz da ressurreição. A imagem do Deus criador foi apresentada como a Palavra de Deus que ressuscitou Jesus, ressaltando a especial relação de filiação que Jesus, o judeu, teve com Deus, para deduzir daí a sua divindade. Ou seja, colocaram-se os alicerces que iriam transformar o monoteísmo judaico tendo como pano de fundo uma visão trinitária da divindade. Deus revelou-se sob a forma de três nomes, três figuras ou três pessoas diferentes: o Pai criador, o Filho na história e o Espírito que habita no homem e gera testemunhas de Deus. Estas mudanças produziram uma nova religião o cristianismo diferente do monoteísmo judaico através da valorização da imanência histórica divina face ao radical transcendentalismo hebraico.

Para além disto, ganha consciência que Deus é Espírito e que Deus é uma força e um princípio de vida. Este é o simbolismo da «ressurreição», da «ascensão» e do «Pentecostes», os quais são as três formas de falar de um mesmo acontecimento que serviu de ponto de partida para uma reflexão teológica retrospectiva. Deus Espírito esteve presente já no baptismo de Jesus (Marcos), no seu nascimento e concepção (Mateus e Lucas) e na preexistência divina (João). Os evangelhos da infância são teologia narrativa que pretende ressaltar a filiação divina de Jesus. Jesus é, por antonomasia, o homem do Espírito, ou seja, o enviado de Deus. Esse mesmo Espírito divino que guiou Jesus, apresentou-se como inspirador da Igreja (menciona-se isso 37 vezes nos primeiros capítulos do livro dos Actos), motivou a crença do grupo dos helenistas e conduziu as missões para fora de Israel até Roma. É este processo que o livro dos Actos dos Apóstolos relata. A reivindicação da inspiração do Espírito serviu de instância legitimadora para responder aos novos desafios que se colocavam à comunidade de discípulos aquando da sua evolução a caminho de vir a ser uma Igreja.
A comunidade de fé pessoal e de vida fundada por Jesus tinha que ser completada com uma organização missionária, ministerial e sacramental, doutrinal e ritual a fim de consolidar e aumentar o incipiente cristianismo. Jesus estabeleceu uma comunidade discipular ao passo que a organização eclesiástica foi fruto duma série de decisões eclesiais que imediatamente assumiram valor dogmático vinculando-as ao Espírito Santo e à vida de Jesus.

A dinâmica histórica e teológica do catolicismo caracterizou-se pela sua capacidade de absorver e transformar as estruturas organizativas do Império romano e da religião judaica, com base nas quais se desenvolveu boa parte da sua organização institucional.





O carácter contingente dessas decisões tomadas ao longo da sua evolução, as quais foram absolutizadas através duma dupla referência a Cristo e ao Espírito, foram a causa das roturas do cristianismo no segundo milénio, decisões impugnadas pelas igrejas cristãs que questionaram o emaranhado organizativo que o catolicismo assumiu ao longo dos séculos II e III.

Juan Antonio Estrada, sj
‘Las primeras comunidades cristianas’, Ed. Trotta 2006, pp. 125-133.