teologia para leigos

31 de dezembro de 2010

OS PORTUGUESES VISTOS DE FORA [U.K.]

Coisas que nunca deverão mudar em Portugal

«a opção pela alegria»


Portugueses: 2010 tem sido um ano difícil para muitos; incerteza, mudanças, ansiedade sobre o futuro. O espírito do momento é de pessimismo, não de alegria. Mas o ânimo certo para entrar na época natalícia deve ser diferente. Por isso permitam-me, em vésperas da minha partida pela segunda vez deste pequeno jardim, eleger dez coisas que espero bem nunca mudem em Portugal.

  1. A ligação inter-geracional. Portugal é um país em que os jovens e os velhos conversam – normalmente dentro do contexto familiar. O estatuto de avô é altíssimo na sociedade portuguesa - e ainda bem. Os portugueses respeitam a primeira e a terceira idade, para o benefício de todos. 

  1. O lugar central da comida na vida diária. O almoço conta – não uma sandes comida com pressa e mal digerida, mas uma sopa, um prato quente etc., tudo comido à mesa e em companhia. Também aqui se reforça uma ligação com a família.

  1. A variedade da paisagem. Não conheço outro país onde seja possível ver tanta coisa num dia só, desde a imponência do rio Douro até à beleza das planícies do Alentejo, passando pelos planaltos e pela serra da Beira Interior.

  1. A tolerância. Nunca vivi num país que aceita tão bem os estrangeiros. Não é por acaso que Portugal é considerado um dos países mais abertos aos emigrantes pelo estudo internacional MIPEX.

  1. O café e os cafés. Os lugares são simples, acolhedores e agradáveis; a bebida é um pequeno prazer diário, especialmente quando acompanhado por um pastel de nata quente.

  1. A inocência. É difícil descrever esta ideia em poucas palavras sem parecer paternalista; mas vi no meu primeiro fim-de-semana em Portugal, numa festa popular em Vila Real, adolescentes a dançar danças tradicionais com uma alegria e abertura que têm, na sua raiz, uma certa inocência.

  1. Um profundo espírito de independência. Olhando para o mapa ibérico parece estranho que Portugal continue a ser um país independente. Mas é e não é por acaso. No fundo de cada português há um espírito profundamente autónomo e independentista.

  1. As mulheres. O Adido de Defesa na Embaixada há quinze anos deu-me um conselho precioso: "Jovem, se quiser uma coisa para ser mesmo bem feita neste país, dê a tarefa a uma mulher". Concordei tanto que me casei com uma portuguesa.

  1. A curiosidade sobre, e o conhecimento, do mundo. A influência de "lá" é evidente cá, na comida, nas artes, nos nomes. Portugal é um país ligado, e que quer continuar ligado, aos outros continentes do mundo.

  1. Que o dinheiro não é a coisa mais importante no mundo. As coisas boas de Portugal não são caras. Antes pelo contrário: não há nada melhor do que sair da praia ao fim da tarde e comer um peixe grelhado, acompanhado por um simples copo de vinho.

Então, terminaremos a contemplação do país não com miséria, mas com brindes e abraços. Feliz Natal!



Alexander Ellis, Embaixador do Reino Unido em Portugal

30 de dezembro de 2010

3 PRECES PEQUENINAS [pb]

esperar Jânus …
…mendigar oiro




3 preces pequeninas
[antes que o ano finde]


Sei o quanto há entre nós, Senhor
Ainda assim não me envergonho




Dá-me tudo
o que da terra vem, Senhor,
os tesouros mais preciosos
que decantaste no teu húmus
lentidão do teu sonho

Uma vida simples e verdadeira
Mendigada




Que eu embale tua voz
Como se cometesse um roubo,
Senhor



pb\

29 de dezembro de 2010

CONTO DE NATAL [NUNO HIGINO]




O boi chegará a tempo
do presépio?


O boi vai ao Presépio. O boi é paciente e não tem pressa de chegar. Caminha e pára. Rumina e pára. Rumina erva e rumina distraídas névoas perdidas no caminho. Quando alguém passa muito rápido, o boi não se assusta. Nem fica agitado. Levanta a cabeça. Pára a ouvir a pressa de quem passa depressa. E parado, rumina.

O boi rumina erva, rumina névoas. Rumina pensamentos. Muitos afirmam a pés juntos que o boi não tem pensamentos, mas devem estar enganados. O boi . O boi ouve. O boi sente. O boi come erva, come feno. O boi rumina. O boi caminha lentamente. O boi pára a olhar. É quando pára a olhar que eu acho que ele pensa. Pensa com os olhos parados, a olhar. O olho do boi é um olho grande. E um olho grande vê muitas coisas. Como é que o boi não há-de pensar? Eu digo que pensa. Pensa o que vê. Rumina o que olha. E caminha. De garfada em garfada, de névoa em névoa, de pensamento em pensamento.

Não se pense que por ser assim e não ter pressa, o boi não quer chegar ao Presépio. O boi quer olhar o Menino com os seus olhos grandes. Quer saudar o menino com a narina a mexer, a soltar bafo como uma máquina de fazer quentinho. Se o Presépio for para os que encurtam caminho, então tirem o boi do Presépio porque não vai chegar a tempo. Se o Presépio for só para os muito ágeis, aí então não contem com o boi. Ponham lá a lebre ou a gazela. Mas o boi não.

O boi vê passar os pastores e os rebanhos. Rebanhos ruidosos, festivos. Vê passar os reis magos em montadas rápidas. Fica a olhar o burro no seu andar aos saltinhos. Depois de os ver passar, o boi fica parado a ruminar a distância. «Estou aqui no meio da distância. Sou como uma chuva que não quer chover?» E volta a pensar: «dentro da minha pele retesada parece que não há nada. Sou um vazio que caminha?» Sente-se um despovoado, mais livre do que um deserto. «Se estou despovoado, a liberdade me há-de povoar».

Se calhar, quando chegar, o Menino já é grande e já abandonou o Presépio. Mas o boi continua a caminhar ao seu encontro, a comer feno enquanto olha, a olhar enquanto rumina. O boi não tem pressa. O boi tem tempo. O boi caminha.


in «O MENINO – 5 Histórias de Natal», Nuno Higino, ilustrações de José Emídio.

Associação de Jornalistas e Homens de Letras do Porto, Novembro de 2009.

ISBN 978-972-622-018-3
Telf.: 222.080.565

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28 de dezembro de 2010

ORAÇÃO DE PETIÇÃO [pb]

oração de petição


gostava de te dizer…

tudo o que me vai no coração
que te amo, te esmago
que nada em mim é mecanismo
nem possuo já a matemática
o relógio que engrena
a conservação dos frigoríficos

gostava de te dizer…

gostava de te pedir
apenas, de te pedir isto:
beija-me com os beijos da tua boca
pedir e não dizer nada

oh palavra necessidade
Nome escondido numa voz
fenda no rochedo
leito e luta
lenta súplica

gostava…

Em que Noite me surges
e surpreendes, meu Amor?


pb\

27 de dezembro de 2010

O DIA DEPOIS DO NATAL

«NÃO ESQUEÇAMOS O DIA DE ONTEM»…

O dia depois do Natal

Hoje é o dia seguinte. Por sorte um domingo. O Natal já passou. É dia de olhar em volta: que vemos? Presentes, restos de papéis coloridos, a casa por arrumar. E pessoas: a nossa gente está por perto, ou permanece na recordação de um fim-de-semana que não é igual aos outros. Não, o Natal não é todos os dias: uma frase talvez com algum sentido lá para o meio do Verão, mas de que não gosto em Dezembro.

No Natal festejou-se a família, assinalou-se o nascimento de Jesus Cristo (mesmo para os não crentes) e fez-se o balanço do passado: os que nos faltaram por morte e aqueles de que nos afastámos por motivos nem sempre justificados. É certo que o espírito de partilha que deve caracterizar o Natal seria bom para organizar a vida quotidiana, mas a época é sempre única, porque em nenhum momento da vida podemos esquecer a festa do Natal: a alegria das crianças, o momento em que os velhos da família se sentem menos sós, até os doces de que às vezes, ao longo do ano, fugimos com esforço...

O Natal demonstra como os pais ainda detêm a grande influência sobre os filhos. É um excelente momento para salientar a importância de um vocabulário moral, uma espécie de léxico que deveria ser central na educação das crianças de hoje: refiro-me a palavras como afecto, cooperação, responsabilidade, paz, humildade, gratidão, generosidade, confiança, honestidade, compreensão (face ao outro), coragem... e muitas outras. São a base da educação moral, cada vez mais importante numa sociedade apressada, mas que me fascina todos os dias: vivemos numa época que nos inquieta, mas onde a reflexão sobre os comportamentos se torna cada vez mais actual.

No Natal que acabámos de viver a palavra crise não cessou de aparecer. Na política, onde os responsáveis necessitam definir um rumo para o país, imerso em dificuldades que ultrapassam o nosso território, porque é o modelo social europeu que é posto em causa todos os dias. Na escola, porque faltam recursos para dar resposta aos alunos com dificuldades de vária ordem, apesar da melhoria dos desempenhos, como se verificou recentemente em avaliação internacional. Na família, onde os jovens casais hesitam em ter filhos e os pais se confrontam com dificuldades no manejo da autoridade. Na comunicação social, onde predomina a notícia rápida e escasseia o espaço plural de reflexão (não haverá ninguém pouco conhecido com coisas mais importantes para dizer? Não será o momento para ouvir outros "politólogos", esses comentadores que repetem o óbvio?).

A educação atenta permite que os mais novos se apercebam da importância dos valores, que são afinal conceitos morais. Para termos êxito na educação para os valores, precisamos de desenvolver a literacia emocional dos mais novos, porque sem essa capacidade psicológica poucos efeitos se conseguirão. É por isso crucial desenvolver, junto de cada criança a nosso cargo, a capacidade de compreender as suas emoções.

O exemplo ainda é mais importante: se uma criança é vítima de ódio ou desprezo, de pouco servirá a nossa conversa sobre o amor e o respeito: o Natal desta criança, talvez cheio de presentes, ficará na sua memória como um momento sem futuro, onde predominou a falta de um modelo de educação coerente. Por isso, o Natal será melhor se surgir na sequência de uma prática de partilha e de atenção aos sentimentos do outro.

Passou o Natal de 2010, um novo ano se aproxima. Não esqueçamos o dia de ontem, em renovada esperança.


Daniel Sampaio
Revista «PÚBLICA», 26 Dezembro 2010


Graça & Justiça para todos...


26 de dezembro de 2010

A FESTA DA SAGRADA FAMÍLIA

O quê de ‘sagrado’ na «Sagrada Família»?

A grande transumância


Quando lhe chegou aos ouvidos pela terceira vez o rumor, Maria decidiu-se a ir. ‘Dera à luz’, é certo, mas muitos insistiam ainda no boato de que o pai da criança era um soldado romano a cumprir serviço militar na Palestina. Decidiu deixar-se levar e rumou ao Egipto.
Para trás ficavam as amigas, as famílias vizinhas, as crianças que costumavam invadir-lhe o pátio, os pedintes-vagabundos (que eram muitos…), e sua prima. Sentia que tudo o que já vivera tinha chegado a um ponto que exigia dela um gesto como um cedro, uma decisão convicta. Nada tinha sido fácil desde que conhecera o emigrante vindo do Sul, um rapaz que acalentava o sonho de trabalhar para juntar dinheiro e erguer uma casa. Ele era bastante mais velho, um tanto sonhador e as raparigas daquela aldeia achavam-no pouco interessante – portanto, não paravam de intrigar: «livrar-se-á, ela, da lapidação…?». E, quando se achara grávida, subitamente numa certa noite, a mente enchera-se de pesadelos: um tropel no coração, que a fez erguer várias vezes sem saber porquê nessa noite.

Também nessa mesma noite – a memória da sua companheira de infância mais amada. Após os dezasseis anos, nunca mais a vira. Tinha ido servir para outra cidade, no Sul, e, segundo se dizia, vivia bem. Começara numa taberna e até nem ia mal. Depois as coisas ruíram e começou a beber. Desalojada e frágil, a grande amiga de Maria viveu na rua, aí onde tudo se reparte e rasga: o filho que pariu, fê-lo na rua, pariu-o na rua e foi-lhe levado da rua enquanto ela nadava, cega e aos gritos, numa taça de álcool. Miraculosamente, ou funestamente, uma mulher trouxe-a para sua casa. E disse-lhe: «Queres trabalho que eu dou-te cama e abrigo? Bem: trabalho e cama… em troca do teu Rendimento Mínimo!?»
– «Então? Não respondes?»
– «Pode ser…»
E assim a melhor amiga de Maria se tornou, vinte e quatro sobre vinte e quatro horas!, a responsável por abrir a porta de dia e de noite, encaminhar os clientes, receber o dinheiro, fazer o troco, depois lavar, despejar e limpar os quartos, por fim fazer contas com a patroa. Há milagres inquietantes, mas este foi-o, sobretudo, intimamente quase intolerável: três dias e três noites a tremer, a tremer de frio (seria frio?) e, por fim, livrara-se de vez do álcool! Durante uma visita minha, disse-me ela: «Ó senhor doutor foi horrível! Horrível! Mas agora, já está. Álcool nunca mais!» Havia, porém, o filho («Sei lá dele…Não pode com esta minha vida») e os pais («A minha mãe está em coma – odeio-a; mas ele, ele até se inteira de mim pelas minhas irmãs…»). A sua vida não contava (que contaria?).

Agora, a caminho do Egipto, Maria procurava lembrar-se: que era feito do rapaz mais bonito da sua terra!? Viera ele das trevas do pânico e vira-se rodeado de homens e rapazes: a absurda meninice coroada com a neve do riso e da chacota. Não tinha barba (ou depilava-se?) e, portas adentro, era como o vinho fino – libertador de homens que o aguardavam e em quem ele via a mão do amor primordial (essa água sempre pronta a escorrer e a destruir, essa caixa-de-esmolas, por fim, o  sofrimento tiritante…).
E o sacerdote!, que se crucificava num perdão de prazer, um espectáculo sacro sem sentido, porém em parte redentor. Aparentemente, dali não viria mal nenhum ao mundo; «Quem sabe? Só o diabo o sabe…», repetia Maria.

Fora por tudo isto que Maria decidira deixar-se levar até ao Egipto. Quando a notícia da sua viagem se espalhou pelo lugar de Nazaré, para muitos o rumor transformou-se em certeza absoluta e só muito raros ousaram sustentar a dúvida. !Havia engravidado antes de coabitar! (Que pensaria o marido? Que loucuras invadiam agora sua mente muda?) Enquanto ia, Maria murmurava:

– «O medo, o medo é que forja o ideal! O medo é que forja o gigantesco ideal, espiritualizado e liso num lugar alto, sacro e solene… O ideal é a máscara do medo!, a sagração do medo diante de tudo o que é terrível, como por exemplo o Amor. Meu Deus – então, porque tive eu medo diante do primeiro Anjo…? A vida – a minha vida de mulher-judia-inteira, vida bem profana e nada sacra – ensinou-me a acreditar para lá do sagrado que o medo habita. Ensinou-me a acreditar na radicalidade dum amor que intensifique, dilate e adentre muito além de modos e modelos ideais.» – murmurava ela.

Ela preferira ler a vida com os olhos agudos das parábolas – jamais a partir do medo! E, enquanto viajava ao Egipto, compenetrada na sua decisão publicamente apontada, repetia em seu coração, onde guardava tudo: - «A mãe-solteira, o sacerdote-casto, o homossexual, a lésbica, o divorciado, o filho drogado, a viúva, a união-de-facto, a família tradicional e todos os súbitos “coxos” e “cegos” que este mundo coloca como paisagem de outra margem… Meu Deus, como o Amor ainda é a maior reserva humana que conheço!»

Ela não fugira para o Egipto: fora! Simplesmente, deixara-se levar nas asas dum sonho quase impossível! Ela não fugia do rumor. Ela não fugia da intriga. Ela não fugia do medo. Ela não fugia! Ela já não fugia! Com um gesto determinado, difícil e ao longo da vida maturado, apenas recusara a traça dos catálogos.

Por fim, disse ela«O Amor, essa grande transumância do coração…» E do lado dum tronco de amendoeira [Jeremias 1:8], um frágil botão verde iniciou sua aventura de ramo.

(até hoje, os historiadores não conseguiram provar ou negar que Maria tenha estado com José e o Menino, no Egipto. Agora, porém, viúva, meia-idade e já sem filhos, sentada nos degraus de pedra da sua pequena casa de aldeia, na Galileia, o seu coração não pára de escrever infinitas voltas ao Mundo, na solicitude dum Amor eternamente liberto do medo.)

25 de dezembro de 2010

PRESÉPIO [JOÃO]





RECONCILIAÇÃO



Há-de uma grande estrela cair no meu colo...
A noite será de vigília,

E rezaremos em línguas
Entalhadas como harpas

Será noite de reconciliação –
Há tanto Deus a derramar-se em nós.

Crianças são os nossos corações,
Anseiam pela paz, doces-cansados.

E nossos lábios desejam beijar-se –
Porque hesitas?

Não faz meu coração fronteira com o teu?
O teu sangue não pára de dar cor às minhas faces.

Será noite de reconciliação,
Se nos dermos, a morte não virá.

Há-de uma grande estrela cair no meu colo.

 

Else Lasker-Schüler



A CISMA DO CISCO… Presépio-de-gravetos [colhidos por João Bateira] para a Paróquia dos Portugueses de Berlim, num parque dessa cidade, no inverno de 2010.
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23 de dezembro de 2010

FELIZ NATAL - DANIEL SAMPAIO

As cinco vogais para o Natal

Gostaria que cada família fizesse deste Natal uma surpresa. E para isso não é preciso gastar dinheiro, é apenas necessário estar atento ao outro, olhar para dentro de si e comemorar esta festa da família. Mesmo com a crise.
Pensei numa forma simples de surpreender no Natal. Em vez de se comprar muita coisa, fazer refeições abundantes ou prometer dias em que tudo irá correr melhor, proponho as cinco vogais. Toda a gente sabe o A, E, I, O, U, mesmo os que não sabem ler. E por isso vamos dar a cada uma destas letras um significado de Natal.

A de Alegria. Porque nada se faz sem agrado, animação, entusiasmo ou sentido de humor. A situação não está fácil, dizem todos os dias os senhores importantes que falam de dinheiro na televisão. A verdade é que é possível ter felicidade ou prazer em pequenos gestos do nosso quotidiano, em momentos que surjam de modo inesperado, ou após uma pequena mudança nas nossas vidas. Não é possível viver sem conflitos ou ameaças, o que importa é conhecer e utilizar os mecanismos necessários para os superar: e é possível encontrar momentos alegres, mesmo quando tudo nos parece em ruptura.

E de Esperança. A Psicologia Positiva defende que o caminho mais certo para a Saúde Mental passa por focar bem o presente e obter satisfação sobre o que já conseguimos, mesmo que na aparência não seja muito. É a partir da mudança das atitudes básicas em relação à vida que poderemos sedimentar a esperança em relação ao futuro: para isso é essencial valorizar todos os dias o bom do nosso quotidiano, mesmo que tal seja mínimo. E a esperança aumentará se conseguirmos centrar a nossa atenção naquilo que poderemos melhorar.

I de Igualdade. No sentido de que todos os homens e mulheres estão submetidos à lei e devem gozar dos mesmos direitos e obrigações. No sentido de que a lei que os iguala deve ter a possibilidade de contemplar a singularidade de cada um. No sentido da justiça que deve organizar uma família, com a condição de que se entenda, em todos os instantes, como a maior injustiça é não perceber a diferença de cada indivíduo. Na direcção da equidade, no sentido do que se deve considerar justo, tendo em conta as características de cada pessoa. Igualdade na crença permanente que todos merecem triunfar desde que lutem por isso.

O de Oportunidade. Porque todos merecem circunstâncias favoráveis para a realização de alguma coisa considerada importante pelo próprio, desde que não ameace o bem-estar do outro. Os ensejos convenientes e úteis devem ser proporcionados numa família, para que cada um possa dar livre curso à sua criatividade e conseguir a alegria desejada.
Não dar oportunidades é a maior forma de exclusão social.

U de Utopia. No sentido da quimera, do sonho, da invenção, da fantasia. Foi a utopia que permitiu, em muitos momentos da História de Portugal, sair do nosso pequeno território e olhar para o mundo, de modo a vencer a crise. Sem utopia, jamais conseguiremos uma sociedade mais justa. Sem a generosidade utópica que nos faz pensar em todos, nunca conseguiremos mobilizar os que estão a nosso lado. O que mais me impressiona em certas pessoas jovens é o facto de já terem destruído o sonho. Não existe de facto a ilha imaginária de Thomas More, dotada de um sistema sociopolítico ideal, mas o arquipélago das nossas relações pode ser cultivado com generosidade e justiça.
Estas cinco vogais poderão fazer a surpresa deste Natal. Por isso as ofereço, sem pedir muito em troca: apenas mais um momento de atenção, igual à que me têm dedicado ao longo destes anos.

Feliz Natal
Daniel Sampaio

Revista «PÚBLICA», 05:XII:2010

22 de dezembro de 2010

2/2 GOLDEN BOYS - «O GOVERNO DOS BANCOS»

«O GOVERNO DOS BANCOS»_2

POLÍTICA E DINHEIRO – O TRIUNFO DA OLIGARQUIA

103 «Cafés de trabalho» no quarto de Lincoln…
- a grande insónia!


[No mês seguinte a ter abandonado a Casa Branca, Bill Clinton ganhou mais dinheiro do que havia ganho durante os 53 anos de vida… transferindo-se do público para o privado]

Mas a passagem do público para o privado não se explica apenas pela exigência de passar a ser membro vitalício da oligarquia. A empresa privada, as instituições financeiras internacionais e as organizações não governamentais ligadas às multinacionais tornaram-se, por vezes mais do que o Estado, lugares de poder e de hegemonia intelectual. Em França, o prestígio do sector financeiro e o desejo de construir um futuro dourado desviaram muitos antigos alunos da Escola Nacional de Administração (ENA), da Escola Normal Superior ou do Politécnico da sua vocação de servidores do bem público. Alain Juppé, antigo membro das duas escolas e antigo primeiro-ministro confidenciou ter sentido uma tentação semelhante: «Ficámos todos fascinados, incluindo, perdão, a comunicação social. Os «golden boys», aquilo era extraordinário! Estes jovens que chegavam a Londres e que estavam ali à frente das máquinas a transferir milhares de milhões de dólares em apenas alguns instantes, que ganhavam centenas de milhões de euros todos os meses, toda a gente estava fascinada! (…) Não seria completamente honesto se negasse que até eu, de vez em quando, dizia a mim mesmo: Ora, se eu tivesse feito aquilo, talvez hoje estivesse numa situação diferente».[1]

Em contrapartida, Yves Galland, antigo ministro francês do comércio que se tornou presidente da Boeing France, uma empresa concorrente da Airbus, nem balançou. O mesmo pode ser dito de Clara Gaymard, mulher de Hervé Gaymard, antigo ministro da Economia, Finanças e Indústria, que depois de ter sido funcionária pública em Bercy, e a seguir embaixadora itinerante delegada para os investimentos internacionais, se tornou presidente da General Electric France. Também Christine Albanel, que durante três anos ocupou o Ministério da Cultura e da Comunicação, está de consciência tranquila. Desde Abril de 2010, continua a dirigir a comunidade… mas agora da France Télécom.

Metade dos antigos senadores americanos torna-se lobista, muitas vezes ao serviço das empresas que regulamentaram. Foi o que aconteceu também com 283 ex-membros da administração Clinton e 310 antigos elementos da administração Bush. Nos Estados Unidos, o volume de negócios anual dos grupos de pressão deve aproximar-se dos 8 mil milhões de dólares por ano. É uma soma enorme, mas com um rendimento excepcional! Em 2003, por exemplo, as taxas de tributação dos lucros realizados no estrangeiro pelo Citigroup, o JP Morgan Chase, o Morgan Stanley e o Merril Lynch caiu de 35% para 5,25%. Factura da acção dos lóbis: 8,5 milhões de dólares. Vantagem fiscal: 2 mil milhões de dólares. Nome da disposição em questão: «Lei da Criação de Empregos Americanos»[2]O interesse geral – está tudo dito.

Esta atracção pelas «empresas» (e respectivas remunerações) não deixou de fazer estragos à esquerda. «Uma alta burguesia renovou-se», explicava em 2006 François Hollande, então primeiro secretário do partido Socialista francês, «na altura em que a esquerda estava a assumir responsabilidades, em 1981. (…) Foi o aparelho de Estado que forneceu ao capitalismo os seus novos dirigentes. (…) Vindos de uma cultura de serviço público, acederam ao estatuto de novos-ricos, falando como donos e senhores aos políticos que os haviam nomeado»[3]. E a seguir foram tentados a segui-los.

O mal causado não lhes pareceu tão grande assim porque, através dos fundos de pensões e dos investimentos, uma parte crescente da população associou o seu futuro, por vezes sem o querer, ao futuro do sector financeiro. Doravante pode, portanto, defender-se os bancos e a Bolsa fingindo preocupação com a viúva arruinada, com o empregado que comprou acções para completar o salário ou garantir a aposentação. Em 2004, o antigo presidente George W. Bush encostou a campanha da sua reeleição a esta «classe de investidores». O Wall Street Journal explicava: «Quanto mais os eleitores são accionistas, mais apoiam as políticas económicas liberais associadas aos republicanos. (…) 58% dos americanos têm um investimento directo ou indirecto nos mercados financeiros, contra 44% há seis anos. Ora, a todos os níveis de rendimentos, os investidores directos são mais susceptíveis de se declararem republicanos do que os não-investidores»[4]. Percebe-se que Bush tenha sonhado privatizar as aposentações.

«Subjugados ao sector financeiro desde há duas décadas, os governos só se virarão por si próprios contra ele se este sector o agredir directamente de tal forma que lhes pareça intolerável», anunciou em Maio o economista Frédéric Lordon[5]. O alcance das medidas que a Alemanha, a França, os Estados Unidos e o G20 venham a tomar nas próximas semanas contra a especulação irá dizer-nos se a humilhação quotidiana que «os mercados» infligem aos Estados e a fúria popular que o cinismo dos bancos suscita terão despertado nos governos, cansados de serem tomados por criados, a pouca dignidade que lhes resta.

SERGE HALIMI, Le Monde Diplomatique – edição em português, Junho 2010, p.9; [segunda e última parte]


[1] «Parlons Net», France Info, 27 de Março de 2009.
[2] Dan Eggen, «Lobbying Pays», The Washington Post, 12 de Abril de 2009.
[3] François Hollande, Devoirs de vérité, Stock, Paris, 2006, pp. 159-161.
[4] Cláudia Deane e Dan Balz, «”Investor Class” Gains Political Clout», The Washington Post, 12 de Abril de 2009.
[5] La pompe à Phynance, http://blog.mondediplo.net, 7 de Maio de 2010.

15 de dezembro de 2010

1/2 LEI GLASS-STEAGALL - «O GOVERNO DOS BANCOS»

«O GOVERNO DOS BANCOS»_1

103 «Cafés de trabalho» no quarto de Lincoln…
- a grande insónia!



Na Primavera de 1996, no fim de um primeiro mandato muito medíocre, o presidente Bill Clinton estava a preparar a campanha para ser reeleito. Precisava de dinheiro. Para o arranjar, teve a ideia de propor aos mais generosos doadores do seu partido uma noite na Casa Branca, por exemplo, no «quarto de Lincoln». Uma vez que ver-se associado ao sono do «grande emancipador» não estava ao alcance das bolsas mais pequenas, nem era necessariamente a fantasia dos maiores, foram leiloadas outras guloseimas. Uma delas foi «tomar um café» na Casa Branca com o presidente dos Estados Unidos. Os potenciais investidores do Partido Democrata encontraram-se, portanto, às fornadas com membros do executivo encarregados de regular a sua actividade. Lanny Davis, porta-voz do presidente Clinton, explicou ingenuamente que se tratava de «permitir que os membros das agências de regulação conhecessem melhor as questões da respectiva indústria.»[1] Um destes «cafés de trabalho» pode ter custado alguns biliões de dólares à economia mundial, pode ter favorecido o disparo da dívida dos Estados e provocado a perda de dezenas de milhões de empregos.

A 13 de Maio de 1996, portanto, alguns dos principais banqueiros dos Estados Unidos foram recebidos durante noventa minutos na Casa Branca pelos principais membros da administração. Ao lado do presidente Clinton, o ministro das Finanças, Robert Rubin, o seu adjunto encarregado das questões monetárias, John Wawke, e o responsável pela regulação dos bancos, Eugene Ludwig. Por um acaso certamente providencial, o tesoureiro do Partido Democrata, Marvin Rosen, também participou na reunião. Segundo o porta-voz de Luidwig, «os banqueiros falaram sobre a futura legislação, incluindo ideias que permitirão acabar com a barreira que separa os bancos de outras instituições financeiras.»

O New Deal, dura lição da bancarrota financeira de 1929, tinha proibido os ‘bancos de depósitos’ de arriscarem de forma imprevidente o dinheiro dos seus clientes, o que a seguir obrigava o Estado a salvar estas instituições por temer que a sua eventual falência provocasse a ruína dos seus numerosos depositantes. Esta disposição (Lei Glass-Steagall), assinada pelo presidente Franklin Roosevelt em 1933, e ainda em vigor em 1996, desagradava imenso aos banqueiros, desejosos de lucrar também com os milagres da «nova economia». O «café de trabalho» visava recordar esse desagrado ao chefe do executivo americano, no momento em que ele estava a tentar que os bancos lhe financiassem a reeleição.

Algumas semanas depois do encontro, vários despachos anunciaram que o Ministério das Finanças ia enviar ao Congresso uma panóplia legislativa «pondo em causa as regras bancárias estabelecidas seis décadas antes, o que permitiria que os bancos se lançassem em força nos seguros e na banca-de-negócios e de mercado.» Toda a gente sabe o que aconteceu a seguir. A abolição da Lei Glass-Steagall foi assinada em 1999 por um presidente Clinton reeleito três anos antes, em parte graças ao tesouro acumulado na guerra eleitoral[2]. A medida atiçou a orgia especulativa da década de 2000 (sofisticação cada vez maior dos produtos financeiros, do tipo dos créditos imobiliários subprime, etc.) e precipitou o colapso económico de Setembro de 2008.

Na verdade, o «café de trabalho» de 1996 (ocorreram 103 do mesmo género no mesmo período e no mesmo local) apenas veio confirmar o peso que já vinham tendo os interesses do sector financeiro. Tanto mais que foi um Congresso de maioria republicana que enterrou a Lei Glass-Steagall, em conformidade com a sua ideologia liberal e com os desejos dos seus «mecenas» - (os parlamentares republicanos eram também beneficiados com dólares pelos bancos). Quanto à administração Clinton, com ou sem «cafés de trabalho», não terá resistido durante muito tempo às preferências de Wall Street, até porque o seu ministro das Finanças, Robert Rubin, tinha sido dirigente do Goldman Sachs. Tal como, aliás, Henry Paulson, que chefiava o Tesouro Americano na altura do colpaso de Setembro de 2008. Depois de ter deixado trespassar o Bear Stearns e o Merryl Lynch, dois concorrentes do Goldman Sachs, Paulson salvou o American International Group (AIG), um segurador cuja falência teria atingido o maior credor da instituição, que era o Goldman Sachs.

Porque é que uma população que não é maioritariamente constituída por ricos aceita que os seus eleitos satisfaçam prioritariamente as exigências dos industriais, dos advogados de negócios ou dos banqueiros, a tal ponto que a política acaba por consolidar as relações de força económicas em vez de lhes opor a legitimidade democrática? Porque é que estes ricos, quando são eles próprios eleitos, se sentem autorizados a exibir a sua fortuna? E a clamar que o interesse geral impõe a satisfação dos interesses particulares das classes privilegiadas, as únicas dotadas do poder de fazer (investimentos) ou de impedir (deslocalizações), e que têm por isso de ser constantemente seduzidas («tranquilizar os mercados») ou conservadas (lógica do «escudo fiscal»)?

Estas questões fazem pensar no caso de Itália (ler o artigo de Francesca Lancini, neste jornal, Junho 2010). Neste país, um dos homens mais ricos do planeta não se juntou a um partido na esperança de o influenciar, mas criou o seu próprio partido, a ‘Forza Itália’, para defender os interesses dos seus negócios. A 23 de Novembro de 2009, o jornal La Repubblica publicou aliás a lista de 18 leis que favoreceram o império comercial de Sílvio Berlusconi, desde 1994, ou que lhe permitiram escapar a processos judiciários. Por seu lado, o ministro da Justiça da Costa Rica, Francisco Dall’ Anase, alerta já para uma etapa ulterior desta evolução, a que passará por certos países colocarem o Estado ao serviço, já não apenas dos bancos, mas de grupos criminosos. «Os cartéis da droga vão apoderar-se dos partidos políticos, financiar campanhas eleitorais e, a seguir, controlar o executivo.»[3] (…)

No mês seguinte a ter abandonado a Casa Branca, Bill Clinton ganhou mais dinheiro do que havia ganho durante os 53 anos de vida. O Goldman Sachs pagou-lhe 650 000 dólares por quatro discursos. Um outro, proferido em França, rendeu-lhe 250 000 dólares, desta vez, foi o Citigroup que pagou. No último ano de mandato de Clinton, o casal havia declarado 357 000 dólares de rendimentos; entre 2001 e 2007 totalizou 109 milhões de dólares. Doravante, a celebridade e os contactos adquiridos durante uma carreira política rendem, sobretudo, depois de essa carreira ter terminado. Os lugares de administrador no privado ou de consultor de bancos substituem com vantagem um mandato popular que acaba de chegar ao fim. Ora, como governar é prever…

SERGE HALIMI, Le Monde Diplomatique – edição em português, Junho 2010, p.9;
[1/2] Em breve, a segunda e última parte.




Lamentação do profeta Miqueias, 7


Ai de mim! Porque sou como quem rebusca
terminada a vindima:
nem um cacho para comer,
nem figos temporãos de que tanto gosto.
Desapareceram da terra os justos,
não há ninguém íntegro.
Todos espreitam a hora de se lançar sobre o outro,
cada um arma laços ao seu irmão.
Peritas são, no mal, suas mãos;
o príncipe exige,
o juiz julga sobre a mesa do suborno,
aquele que é grande manifesta abertamente sua cobiça
e urde intrigas.
O melhor dentre eles é como um tojo.
Mas eu estou alerta
aguardando Quem me escuta.

«Agora começa o julgamento deste mundo…»



do Profeta ISAÍAS

O Senhor vê com indignação
que já não há justiça.
 Vê que não há nem sequer um homem a reagir,
admira-se de que ninguém intervenha.

(Isaías 59:15-16)



[1] Esta citação, bem como as seguintes, são retiradas de «Guess Who’s Coming for Coffee?», The Washington Post, National Weekly Edition, 3 de Fevereiro de 1997.
[2] Ler Thomas Ferguson, « Le Trésor de guerre du président Clinton», Le Monde Diplomatique, Agosto de 1996.
[3] Citado pela London Review of Books, Londres, 25 de Fevereiro de 2010. (Nota desta edição: Todos sabemos também o que tem vindo a acontecer com a compra de Clubes de Futebol… por parte do narcotráfico).