teologia para leigos

30 de setembro de 2014

POR UMA IGREJA TEAM-WORK [R.BLANK]

A Igreja que «sai à procura»

«La cultura del benessere, che ci porta a pensare a noi stessi [apenas em nós], ci rende insensibili alle grida [grito] degli altri, ci fa vivere in bolle di sapone, che sono belle, ma non sono nulla, sono l’illusion del futile, del provvisorio, che porta all’indifferenza verso gli altri, anzi porta alla globalizzazione dell’indiferenza. In questo mondo della globalizzazione siamo caduti nella globalizzazione dell’indifferenza! Ci siamo abituati alla sofferenza adell’altro, non ci riguarda [não nos diz respeito], non ci interessa, non è affare nostro!», Papa Francesco, Omelia del Santo Padre, Lampedusa, 8 luglio 2013.

«Sonho com uma opção missionária capaz de transformar tudo, para que os costumes, estilos, horários, linguagem e toda a estrutura eclesial se tornem um canal propiciador mais da evangelização do mundo actual que da auto-preservação. [Sonho com] a reforma das estruturas (…) em atitude constante de "saída" (…) para não desfalecer vítima duma espécie de introversão eclesial. (…) [Este sonho] Deriva da nossa fé em Cristo, que se fez pobre e sempre se aproximou dos pobres e marginalizados (…). Ficar surdo a este clamor, quando somos os instrumentos de Deus para ouvir o pobre, coloca-nos fora da vontade do Pai e do seu projecto (…).», Papa Francisco, Evangelii Gaudium, n. 27.186.187.

«A Igreja «em saída» é a comunidade de discípulos missionários que "primeireiam", que se envolvem, que acompanham, que frutificam e festejam. Primeireiam – desculpai o neologismo –, que toma a iniciativa! A comunidade missionária experimenta que o Senhor tomou a iniciativa, que a precedeu no amor (cf. 1Jo 4,10), e, por isso, ela sabe ir à frente, sabe tomar a iniciativa sem medo, sabe ir ao encontro, procurar os afastados e chegar às encruzilhadas dos caminhos para convidar os excluídos. (…) Ousemos um pouco mais quanto a tomar a iniciativa!
«Como consequência, a Igreja sabe "envolver-se". Jesus lavou os pés aos seus discípulos. O Senhor envolve-se e envolve os seus, pondo-se de joelhos diante dos outros para os lavar, mas, logo a seguir, diz aos discípulos: «Sereis felizes se o puserdes em prática» (Jo 13,17). Com obras e gestos, a comunidade missionária entra na vida diária dos outros, encurta as distâncias, abaixa-se – se for necessário – até à humilhação e assume a vida humana, tocando a carne sofredora de Cristo no povo. Os evangelizadores contraem assim o «cheiro a ovelha», e estas escutam a sua voz.
«Em seguida, a comunidade evangelizadora dispõe-se a «acompanhar». Acompanha a humanidade em todos os seus processos, por mais duros e demorados que sejam. Conhece as longas esperas e a fadiga apostólica. A evangelização patenteia muita paciência, e evita deter-se a considerar as limitações.
«Fiel ao dom do Senhor, sabe também «frutificar». A comunidade evangelizadora mantém-se atenta aos frutos, porque o Senhor a quer fecunda. Cuida do trigo e não perde a paz por causa do joio. O semeador, quando vê surgir o joio no meio do trigo, não tem reacções de lamentação ou de alarmismo. Encontra a maneira de fazer com que a Palavra se encarne numa situação concreta e dê frutos de vida nova, apesar de os frutos serem aparentemente imperfeitos ou defeituosos. O discípulo sabe oferecer a vida inteira e entregá-la até ao martírio como testemunho de Jesus Cristo, mas o seu sonho não é estar rodeado de inimigos, mas antes que a Palavra seja acolhida e manifeste a sua força libertadora e renovadora.» Papa Francisco, Evangelii Gaudium, n. 24.





O ideal de uma Igreja que no seu seio superou toda e qualquer dicotomia


1.   A Igreja é capaz de se renovar, porque nos alicerces dela está o Espírito de Deus que é transformador

Esta Igreja é capaz de mudar. Também é capaz de ouvir propostas que questionam. Ela não só é capaz de as ouvir como também de as concretizar. Esta Igreja, que amo e pela qual estou entusiasmado, também é capaz de ser a grande alternativa para o futuro deste mundo, tal como tantas vezes aconteceu no passado.

Por causa disto não tenho medo de formular esta análise. Também não tenho medo de fazer propostas que sejam consequência da análise. Se as propostas são boas, o Espírito Santo nos incentivará à sua concretização. Se elas não prestarem, incentivará outros a formular propostas melhores.

«Um Deus que constantemente nos chama à conversão, chama também a Igreja para que ela mude, para que ela sempre de novo se converta, para que ela não se entrincheire dentro de generalidades piedosas, por trás de declarações diplomáticas e equilibradas e debaixo de tentativas legalistas para sustentar o seu próprio poder.

«Um Deus que chama à conversão, está constantemente a desafiar também a Igreja para que ela se lembre do seu Senhor Jesus Cristo. Se lembre daquele Senhor que, como todos nós sabemos, proclamou como dever primordial dos seus seguidores o servir e não o dominar.»[1]

Este Deus capacitará a Igreja para encontrar o caminho também nesta época pós-moderna, pós-industrial e até pós-cristã. E por causa disso, podemos começar a imaginar desde já uma maneira nova de que ela se revestirá no futuro. Podemos imaginar formas novas que manterão toda a sua riqueza que vem do passado, passado que, no entanto, não é fardo, empecilho, mas inspiração.

É nesta época, cheia de promessas, apesar de tantos sinais negativos, que esta Igreja chama de maneira especial os leigos e as leigas a serem protagonistas de uma nova evangelização. Evangelização que visa o mundo fora dela, mas que, ao mesmo tempo, implica a sua própria transformação, à qual a Igreja incentiva os seus integrantes leigos e leigas, chamando-os a participar de maneira activa e responsável.

Incentivado pela convicção de que as palavras que se seguem são mais do que palavras vazias, tentarei, em seguida, formular dez princípios para uma Igreja na qual se leve a sério aquilo que os documentos dizem; uma Igreja que leve a sério aquilo que se encontra nos textos básicos da nossa fé, uma Igreja em que haja verdadeira comunhão e participação de todos, conforme os seus carismas e motivada pelo desejo de servir.
2.   Princípios básicos para uma Igreja em que haja verdadeira comunhão e participação de todos

2.1                   Os ministros exercem as suas funções em comunhão e participação, conforme os seus respectivos carismas

Numa Igreja assim, atitudes de "poder" ou de "autoridade" acabam por ser superadas por atitudes de serviço profético e sacerdotal. No centro do pensamento há o respeito e a valorização dos carismas, de tal maneira que o seu organograma não acentue, à maneira de um sistema feudal, os caminhos autoritários e piramidais herdados por toda uma tradição de atitudes autoritárias. Atitudes, aliás, que em nada podem ser justificadas se recorrermos àquele que é o único parâmetro indiscutivelmente válido para todos: Jesus Cristo, raiz e fundamento de todo o pensamento cristão.

Recordando esse facto fundamental, será possível, na estrutura da Igreja, superar também os mecanismos de poder ainda existentes, porque neles reconhecemos restos de um passado superado, iniciado com Constantino no século IV e terminado com as interferências dos governos actuais. Todos esses mecanismos querem, muito mais, uma Igreja de poder hierárquico que manda a partir de uma "mentalidade jurídica"[2], do que uma "Igreja fraterna, que renuncia a qualquer pretensão de autoridade patriarcal dentro dela, tal como propõe o evangelista em Mt 23,3-11".[3]

Em vez de continuar também no futuro com estruturas, e muitos aspectos, ainda longe daquilo que era a intenção original de Jesus, devemos ter a coragem de, em nome dele, assumir reformas. Devemos assumir o risco de redescobrir a dinâmica da comunidade e as riquezas das decisões por consenso, e não por decreto.

A partir destes pressupostos, o organigrama de uma Igreja do século XXI poderia ter a seguinte estrutura:





Em vez de acentuar de maneira vertical a pirâmide de poderes, o modelo apresentado acentua a horizontalidade. A Igreja é, em primeiro lugar, uma comunidade de irmãos e irmãs unidos pela mesma fé em Jesus Cristo. Nesta comunidade é claro que há diversidade de tarefas e de actividades. É evidente que é preciso uma estrutura organizativa de apoio. Essa estrutura, porém, está essencialmente centrada no serviço aos carismas e aos destinatários das actividades desses carismas. Cada um dos seus membros é, antes de tudo, reconhecido como sujeito e membro do mesmo Povo de Deus. Como membro desse Povo é ungido por esse Deus. Como membro do Povo de Deus é chamado a agir a partir dos seus carismas específicos, mas com um objectivo comum aos demais: a transformação do mundo rumo à realização do projecto de Deus. Como centro integrador de toda esta acção estão os nossos irmãos bispos, que assim deixariam de ser os chefes de um aparelho administrativo para, de novo, recuperarem a dignidade da sua vocação original.

Contra o medo de todos que, a partir de tal organigrama, temem a perda da unidade[4] e a dispersão da verdade revelada, devemos lembrar com insistência aquilo que José Comblin, referindo-se ao Concílio Vaticano II, formula de maneira bem clara: «O primeiro depositário da revelação de Deus é o povo».[5] Deste Povo, a Constituição Dogmática Lumen Gentium declara de maneira explícita: «O conjunto de fiéis, ungidos que são pela unção do Santo (cf. 1Jo 2,20.27), não pode enganar-se no acto de fé» (LG, n. 12).

Mas o Concílio não dizia apenas isso. O texto da Lumen Gentium apresenta, de seguida, uma concepção de Igreja que fundamenta ponto por ponto o organigrama apresentado atrás:

«Não é apenas mediante os sacramentos e os ministérios que o Espírito Santo santifica e conduz o Povo de Deus e orna de virtudes, mas, repartindo os seus dons "a cada um como lhe apraz" (1Cor 12,11), distribui entre os fiéis de qualquer classe graças especiais. Por elas os torna aptos e prontos a tomar sobre si os vários trabalhos e ofícios, que contribuem para a renovação e maior incremento da Igreja, segundo estas palavras: "A cada um é dada a manifestação do Espírito para utilidade comum" (1Cor 12,7). (LG n. 33).»

Acreditando mais na profunda verdade aqui expressada, e levando a sério a nossa convicção de que o Espírito Santo guia a nossa Igreja, não há razão nenhuma para termos medo de uma reestruturação organizacional profunda. Bem pelo contrário. A partir de tal esquema, a hierarquia voltaria ao seu lugar de serva dos filhos de Deus e estes filhos de Deus recuperariam a dignidade e a responsabilidade de ser instrumentos escolhidos por Deus.

No entanto, acima de todos estará Deus que cuidará dos nossos caminhos e o seu Espírito será capaz de corrigir erros cometidos. Tais correcções poderiam ser realizadas de maneira fraternal, baseadas no respeito e no diálogo, sem punições, sem exclusões e sem ameaças[6].

É válida a palavra de Jesus: «Entre vós não seja assim»! (Mc 9,35; 10,42-45; Mt 20,25-28; 23,11; Lc 22,24-27)


2.2                   Os Conselhos Pastorais assumem o seu papel verdadeiro de serem lugares de discussão e de decisão em todas as questões

Deve-se levar a sério as recomendações da IV Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano, em Santo Domingo (1992). No documento final dessa Conferência, os bispos recomendam, no nº 98, as seguintes acções:

− «Fomentar a participação dos leigos nos conselhos pastorais, aos diversos níveis da estrutura eclesial».

− «Promover os conselhos de leigos, em plena comunhão com os pastores e em adequada autonomia…».

− «Estes conselhos de leigos… podem estabelecer-se em cada diocese, na Igreja de cada país e abarcar quer os movimentos de apostolado quer os leigos que, estando comprometidos com a evangelização, não estejam integrados em grupos apostólicos…».


Encontramos, mais uma vez, uma realidade na qual tropeçamos amiudadamente: os passos para as mudanças necessárias já foram estabelecidos nos textos. O que falta é a coragem de concretizar esses passos na vida das dioceses. O que muitas vezes falta é a vontade de ir para a frente a partir destes primeiros passos, e abrir espaço para dimensões novas que os textos não podiam prever.

Pelo contrário, em muitos lugares verificamos de novo o medo às vezes até irracional de realizar as recomendações dos documentos oficiais. Da coragem de dar passos inovadores rumo a um futuro diferente, nem vamos falar. No entanto, tais passos são possíveis, e até já foram dados. É através deles que as coisas mudam e por meio deles que o Espírito não é Espírito de medo para garantir situações estabelecidas. Ele é, muito mais, transformador incómodo para todos os guardiões das situações estabelecidas. O seu horizonte é o novo e o seu caminho é a transformação.

Há lugares onde se deram os primeiros passos rumo a tais estruturas novas. Há bispos corajosos e cristãos, ordenados ou não ordenados, visionários, que já começaram a preparar o novo ser da Igreja do futuro, baseada na comunhão e participação de todos. Mas, depois dos passos iniciais, muitas vezes falta a coragem de dar os passos seguintes. As iniciativas esgotam-se e o entusiasmo deixa-se estrangular por exigências legalistas e por censuras em nome da velha disciplina. Ora, acontece que, em nome desta disciplina, é possível sufocar o vento do Espírito e apagar o seu fogo.

De nada adianta termos conselhos de pastoral, quando esses conselhos são meros ouvintes daquilo que as autoridades transmitem e declaram. Em pouco tempo, os elementos críticos deles irão embora e, dentro da nova autonomia do cristão de hoje, vão à procura de outros campos de actividades. Campos nos quais poderão agir da mesma maneira, como eles e elas se acostumaram a agir na vida profissional: com competência e responsabilidade, tomando decisões e deliberando sobre assuntos discutidos.

É precisamente isso que em inúmeros grémios da nossa Igreja se teme. Os leigos e as leigas podem ter Conselhos, mas eles não têm possibilidade nenhuma de participar das decisões. Esta atitude não deixa transparecer um pingo de comunhão e participação, e, por causa disso, deve ser mudada. Os leigos e as leigas de hoje e do futuro já não são as ovelhas de ontem: exigem participação verdadeira. Caso esta participação não lhes seja dada, vão embora, e ficamos com as ovelhas que procuram segurança dentro dos muros de um gueto. À nossa volta, porém, aqueles que rejeitámos construirão um mundo novo, o mundo do futuro, um mundo ao qual a Igreja teria tanto a dizer, mas do qual ela própria se exclui, porque exclui aqueles que se acostumaram a ser aceites e respeitados como construtores responsáveis deste mundo. Eles queriam integrar a Igreja nele, mas como a Igreja os excluiu dos seus grémios deliberativos, (…).

Renold Blank
Teólogo, professor de "Escatologia, Teologia da Revelação e Antropologia" na Pontifícia Faculdade de Teologia Nossa Senhora da Assunção, no Instituto Teológico de São Paulo (ITESP) e na Pontifícia Universidade Católica de Campinas (PUCCAMP).









[1] Renold J. Blank, «Ein Gott der alle Fesseln sprengt», Mainz: Grünewald, 1995.
[2] Cf. Ernst Benz, «Descrição do cristianismo», Petrópolis, Vozes, 1995, p. 127.
[3] Paul Hoffmann, «A herança de Jesus e o poder na Igreja», São Paulo, Paulus, 1998, p. 81. (Cf. também At 20; 1Pe; Tg; Ef 4; 1Cor 12; Rm 12)
[4] Não foi o Bispo de Évreux, Jacques Gaillot, que foi acusado de «romper a unidade»? E por que tipo de motivos?
«Et l’Eglise dans tout cela? Prenons comme exemple ce qui s’est passé le 23 août 1996 quand presque mille CRS et autres policiers ont forcé à coups de haches les portes de l’Eglise Saint Bernard de la Chapelle à Paris pour en faire sortir de force trois cents étrangers en situation irrégulière. J’étais en colère et scandalisé, car l’évêque avait demandé leur expulsion. Et quand on expulse des êtres humains qui demandent protection dans une église, on désacralise cette église.»
[5] Diz José Comblin em «O Povo de Deus» (São Paulo, Paulus, 2002 e 32011, p. 381-382): «Ora, o Vaticano II reconheceu que o primeiro depositário da revelação de Deus é o povo. "O conjunto dos fiéis, ungidos que são pela unção do Santo (cf. 1Jo 2,20.27), não pode enganar-se no acto de fé. É manifesta esta sua propriedade peculiar mediante o senso sobrenatural da fé de todo o povo quando, ‘desde os bispos até aos últimos fiéis leigos’, apresenta um consenso universal sobre questões de fé e costumes"»; cf. Lumen Gentium 12. A citação sublinhada é de S. Agostinho, De prædestin. Sanct., 14,27, PL 44,980.
[6] Em quantas Comunidades os padres não são prepotentes ou, então, subtilmente manipulam os leigos de modo a «controlar para reinar» …


20 de setembro de 2014

IGREJA: SOCIEDADE DE CLASSES [R.BLANK]

«mas eles venceram (…) pelo testemunho da sua palavra
e porque o amor que tinham à sua vida não era superior ao medo da morte» [Ap 12:11]

«Que se ordene [cheirotonein] como bispo aquele que, sendo irrepreensível, tenha sido eleito por todo o povo. Quando se pronuncie o seu nome e tenha sido aceite, que se reúnam num domingo o povo com o presbitério e os bispos presentes.
Com o consentimento de todos, os bispos imponham-lhe as mãos, ao mesmo tempo que o povo permanece de pé. E todos guardem silêncio rezando no seu coração para que desça o Espírito. Na sequência disto, a pedido de todos, um dos bispos lhe imporá as mãos, dizendo: … (segue-se uma oração)», in Tradição Apostólica, Hipólito, séc. III.

Duas condições para a "eleição": ser «irrepreensível» e ter a unanimidade dos eleitores.

Na Igreja, ninguém deve ser imposto a ninguém…
[JI González Faus]



A «estrutura» da Igreja fundamenta-se no episcopado, o qual tem, como cabeça, o bispo de Roma. Mas a «organização» da Igreja tem que recuperar aquilo que ela foi nos primeiros séculos. As vocações de então – tal como diziam os concílios locais – eram vocações invitus e coactus (cf. Y. Congar, «Ordinations invitus, coactus, de l’Eglise antique au c. a non 214», Rev. Sc. Phil. Théol., 50 [1966] pp. 169-197), ou seja, eram ordenados sacerdotes e bispos que tudo faziam para não o serem. E cada comunidade era quem os elegia. [JM Castillo, La Religión de Jesús, 2014-2015, p. 423]


Obstáculos pessoais e estruturais que dificultam uma integração plena de todos os fiéis




I.           A divisão em classes dentro da igreja contradiz o próprio projecto de Jesus Cristo [cf. Bernard Cooke, Concilium 200, 1985/4]

Baseado nas reflexões dos capítulos anteriores, devemos lembrar que o grande projecto de Jesus Cristo era uma comunidade de irmãos e irmãs. O Concílio Vaticano II expressou essa ideia no seu modelo de uma Igreja de comunhão e de participação. Tal Igreja, porém, não se realiza hoje sem uma drástica mudança de estruturas.

Aqui está o problema e a razão última pela qual o grande advento do Concílio corre o risco, hoje, de se perder em discussões sobre questões de poder, de ortodoxia e de obediência. A palavra de ordem, em vez de abrir novos horizontes, chama-se «regresso à velha disciplina», as reformas esgotam-se em questões periféricas e a geração jovem vai-se embora: emigração silenciosa!

Contra todas estas tendências, devemos acentuar que a Igreja é capaz de mudar. Porém, a mudança vai para lá da aceitação do protagonismo do leigo. Quando se compara o programa de um protagonismo com o modelo proposto pelo Concílio, fica cada vez mais claro que o programa do Concílio vai muito mais além. Protagonismo ainda pressupõe relações de poder, perigo de divisão, não comunhão, e sugere a existência de classes em que alguns mandam e outros, apesar de protagonistas, desempenham o papel que foi escrito para que eles o desempenhassem.

Em vez de nos ficarmos apenas por aquilo que já conseguimos – o protagonismo dos leigos – devemos ter a coragem de dar um passo além deste protagonismo. Devemos consciencializarmo-nos do protagonismo dos baptizados, do protagonismo dos cristãos, do protagonismo dos seguidores de Jesus Cristo.

Eis o verdadeiro protagonismo em que cada um tenta ser protagonista no âmbito dum programa "escrito" e formulado pelo próprio Jesus Cristo, coordenando e entrelaçando as suas acções dentro de um espírito de comunhão e participação, agindo conforme o paradigma do corpo humano, enfatizado por Paulo.

Em tal protagonismo, ninguém vai reclamar direitos superiores, nenhum membro terá poderes ou prestígio maiores, cada um age conforme os seus carismas e submete esses carismas ao grande projecto de transformação do mundo conforme os parâmetros do Reino de Deus: eis o único modelo que realmente pode corresponder aos planos de Jesus.

Toda e qualquer divisão entre grupos e classes é estranha à natureza de uma comunidade que se compreende como o único corpo de Cristo. Reconhecer a Igreja como COMUNIDADE significa AFASTAR TODAS AS BARREIRAS QUE PODERIAM CRIAR SEPARAÇÕES! Reconhecer a Igreja como comunidade significa agir conforme os critérios do SERVIR e não conforme os do poder.

É evidente que, em tal maneira de ver uma Igreja de Comunhão e de Participação, não reinará o caos e a desordem, bem pelo contrário. Da mesma maneira como dentro do corpo cada órgão tem a sua tarefa bem definida, também numa Igreja de comunhão haverá funções especializadas e tarefas específicas de cada um. Aquilo que nunca poderá haver são privilégios e poder. O que nunca poderá existir é a dominação de uns quantos sobre os outros. O que não é tolerável é o espírito de dominação, por um lado, e o espírito de subordinação e de medo, por outro. O que, ao contrário, deve haver é a acção conjunta de servidores de Deus, onde cada um age em comunhão com os seus irmãos e as suas irmãs, consoante os seus carismas especiais, pondo esses carismas ao serviço do colectivo, sem, por causa disso, esquecer que o carisma – para realmente poder agir em nome de Deus – também precisa do quadro da instituição.[1]

«O dom que cada um recebeu, ponha-o ao serviço dos outros, como bons administradores da tão diversificada graça de Deus». (1Pe 4,10)

Numa Igreja assim, o servidor dos servidores de Deus lavará, realmente, os pés dos irmãos e não haverá entre nós os mesmos mecanismos que podemos observar na corte dos reis das nações, como denunciou Jesus de maneira tão clara (cf. Lc 22:24-27). Numa Igreja assim, substitui-se o pretexto de que se precisa de poder para servir por aquela atitude que realmente é capaz de servir: o amor. O amor, para servir. Numa Igreja assim redescobre-se de novo o grande e escandaloso desafio presente numa das mais chocantes revelações de Deus transmitida por Jesus Cristo: o lava-pés. O Deus encarnado lava os pés dos seus seguidores. Se ele que é Deus age desta maneira, então, como deverão agir de maneira diversa aqueles que se dizem ser seus seguidores, seja lá a posição que ocupam?

O lava-pés torna-se o grande modelo e desafio para todos os que se dizem seguidores de Jesus.

(…)

Por causa de séculos de história, os «leigos» aprenderam que:

as pessoas ordenadas convertem-se, automaticamente, nos líderes escolhidos por Deus;

nunca se pode questionar o modo como esses líderes interpretam a fé;

− não se pode, a respeito da actividade ministerial, questionar as decisões desses ordenados.


Os «ordenados», por sua vez, consideram:

− que  a ordenação lhes dá poder e sabedoria para eles serem os únicos a pronunciarem-se sobre as verdades doutrinais;

− que são obedecidos e honrados pelo povo;

− que são eles os únicos responsáveis pelas paróquias e respectivas actividades.

Consequência desta mentalidade: uma séria barreira à plena comunhão e participação de todos os baptizados na vida eclesial.

(…)

Contra o peso dessa tradição milenar, devemos de novo, em nome de Jesus Cristo e do seu projecto, chamar todos para superar as velhas estruturas com entusiasmo e coragem. Devemos lembrar o chamamento de Jesus à conversão que não se dirigia apenas aos indivíduos e ao seu comportamento moral, mas, também com a mesma urgência, à instituição religiosa e às estruturas contrárias à vontade de Deus.


Convertam-se!

Mudem de mentalidade!

Mudem as estruturas e não apenas as aparências!

Ponham o vinho novo em odres novos!

Não pintem apenas os odres velhos com cores novas, deixando, por dentro, o vinho velho que já se tornou vinagre!


Algumas de tais tentações em pintar os odres velhos com uma nova cor podem ser detectadas. Mencionamos, de seguida, alguns exemplos, não como acusações, mas muito mais como estímulos à reflexão.

− Existe o perigo de simplesmente caminhar na direcção de um «alargamento do clero», incluindo nesse clero pessoas com graus diferentes de ordenação.

− Existe o perigo de querer simplesmente criar um novo tipo de clero, incentivando o diaconato como única solução.

− Existe o perigo de ver, nos assim chamados leigos, ferramentas de emergência para quando faltam padres.

− Existe o perigo de ver nesses leigos e leigas mão-de-obra gratuita que pode ser usada de graça, ao mesmo tempo que todo o dinheiro é investido apenas na sustentação e na formação do clero.


A Igreja é capaz de superar todos estes tipos de perigos e muitos mais. Para que isso aconteça é preciso, porém, a conversão. (…)


Renold Blank
Teólogo, professor de "Escatologia, Teologia da Revelação e Antropologia" na Pontifícia Faculdade de Teologia Nossa Senhora da Assunção, no Instituto Teológico de São Paulo (ITESP) e na Pontifícia Universidade Católica de Campinas (PUCCAMP).












[1] Sobre o duplo perigo da "iconoclastia" ou rejeição de todo o tipo de organização dos carismas, e de "idolatria" da organização que quer regulamentar e disciplinar todos os carismas, vale a pena ler: Agenor Brighenti, «A Igreja perplexa», São Paulo, Paulinas 2005, p. 133-136.