teologia para leigos

27 de setembro de 2013

ESCUTEMOS O POBRE [F. CARRASQUILLA]

Depois de ter terminado a tradução deste VI Cap. que agora tem diante de si (o último capítulo deste extenso trabalho sobre antropologia do pobre), fiquei a pensar que aquilo que VERDADEIRAMENTE merecia ser editado em português eram os cinco capítulos anteriores a este.

Que extraordinária meditação, reflexiva e ao mesmo tempo maternal e amorosa, não sobre os pobres, mas sobre as pessoas pobres, as pessoas mal apresentadas por fora, e sobretudo, destruídas por dentro!

Um imprescindível instrumento de trabalho. Um tesouro!

Bom – na impossibilidade de mais, deixo, na folha de rosto, o link de todo o documento em castelhano (que contém 79 páginas).

A Igreja católica desenvolveu, ao longo dos tempos, diversas ambiguidades na sua relação com os marginalizados, ambiguidades com origem em causas diversas. Dois exemplos: faz sentido a Igreja institucionalizar a distribuição de bens fora do contexto íntimo duma dinâmica comunitária? Em matéria de «assistência aos pobres» (pseudo-ajuda), faz sentido a Igreja pôr-se ao serviço dum Governo Neo-liberal e de Capitalismo financeirizado selvagem como almofada para as suas políticas austeritárias?

Estas duas perguntas são cada vez mais pertinentes. A primeira, de natureza teológica (eclesiológica; cf. «A Igreja não pode ser uma ONG» - Papa Francisco). A segunda, de natureza estratégica (evangelização / missionação). Esta segunda tem a premência da época que atravessamos, pois é uma época em que as finanças penetraram todas as relações comerciais, numa extensão directa sem precedentes. E em que a envergadura deste fenómeno é a da maior "acumulação de capital" e de "intensificação das suas crises" (Ben Fine, 2005). «Para Krippner, na sua panorâmica sobre a financeirização contemporânea nos Estados Unidos, tal [fenómeno] "não corresponde necessariamente a uma fase inteiramente nova do capitalismo..."» (Ben Fine). Aquilo a que chamamos 'disfuncionamento do sistema' tem causas (leis) sistémicas, são resultado da flexibilização em todos os mercados e da desvalorização do salário (...). «Por outras palavras, as leis que determinam a repartição de rendimentos são centrais na crise de hoje. Nunca como agora David Ricardo esteve tão actual, quando afirmou nos seus Princípios que «[o] principal problema da Economia Política consiste em determinar as leis que regem esta distribuição». (João Ferreira do Amaral, Gerald Epstein, Ben Fine, Jan Toporowski, "Financeirização da Economia - a última fase do neoliberalismo", FEUC, Ed. 'LIVRE', Lisboa 2010, ISBN 978-972-8920-69-2, Telf.: 21.886.7519) 

Perante esta «espiral do inferno» em que «é o futuro de cada um de nós que alguém anda a caçar» (ibidem, p. 5), a Igreja deve rever e re-equacionar toda a sua estratégia caritativa. É nesta linha que se posiciona o texto do padre Federico Carrasquilla. Parte deste pano de fundo económico, financeiro e político para redirecionar a "estratégia" evangélica da Fé, bem como a forma inteligente e eficaz da Igreja viver a sua relação com os pobres. O apresentador do livro, o padre Horacio Arango, diz o seguinte:



«A mi juicio, esta antropología plantea como condición que el esfuerzo reflexivo se articule a partir de una experiencia vital de encuentro con los pobres, que incluye de alguna manera nuestra propia experiencia de pobreza.»

«Una mirada atenta a los pobres - nos dice Federico -, al mundo de significaciones que allí se descubre, mejor aún, una mirada desde el corazón de los pobres, nos permite descubrir una serie de valores que ponen a las personas en el centro de interés: la acogida, la gratuidad, la fiesta, entre otros valores, nos hacen descubrir que en el mundo de pobres cuentan primero las personas.» [Horacio Arango, sj]


Apetece perguntar: a ajuda aos pobres por parte da Igreja católica em Portugal realiza, dentro dela, o "encontro vital" com os pobres e a sua (da Igreja) "experiência de pobreza"?

O enriquecimento espiritual e as consequências revolucionárias (no sentido social e político da expressão) por parte do texto do padre Federico, escrito por quem viveu no meio dos pobres de vários continentes décadas a fio, é uma ajuda preciosa a muita “boa vontade cristã” pouco inteligente e ineficaz, que, por vezes, não faz mais do que curar feridas cancerosas com mercurocromo e pensos rápidos… É urgente lê-lo. Lê-lo não, mastigá-lo e regressar sempre a ele, tal como fazemos com o evangelho de Jesus, Jesus o pobre de Nazaré, que, precisamente por ser pobre, era o «Irmãozinho Universal», o Salvador universal, na feliz expressão de Charles de Foucauld.






Como é que Jesus viveu a sua condição de pobre?
Qual a atitude de Jesus diante do pobre?




Elementos de Antropologia Evangélica

Até aqui analisamos o seguinte: [o que é a Antropologia do pobre]; o que é ser pobre; em que consiste o mundo do pobre; em que consiste a desestruturação de que o pobre sofre; e em que consiste o compromisso com o pobre.

Agora, trata-se de fazer uma leitura bíblica de tudo isso: ou seja, a partir da prática de Jesus, que se deve pensar de tudo isso? Iremos procurar aproximar-nos da maneira como Jesus viveu a sua ‘existência pobre’ e como reagiu diante do pobre. Este tema é muito amplo e dispomos de igualmente ampla bibliografia. Mas, neste texto, não pretendemos mais do que fornecer alguns elementos de Antropologia Evangélica, os quais nos permitam ler, a partir da fé, a existência do pobre, tal como a analisamos nos capítulos anteriores. Sendo assim, primeiramente, veremos como é que Jesus viveu a sua condição de pobre e como é que se situou diante do pobre. Depois, em que consiste a originalidade de Jesus, quanto a esta questão.


1.   Como é que Jesus viveu a sua condição de pobre

1.a Significado humano da pobreza em Jesus

Que significou, para Jesus, a existência pobre? Antes de mais nada, há que constatar que Jesus levou uma vida pobre e viveu entre pobres. Tal facto não pode ser ocultado e possui um significado antropológico: para Jesus, a pobreza foi a forma que escolheu para viver a sua existência humana, e, como homem, tal facto exprime uma certa maneira de ser e de actuar. Jesus viveu como homem à maneira do pobre. Por isso, a existência pobre, em Jesus, tem, não apenas, um sentido espiritual (este aspecto era enfatizado e talvez demasiado sublinhado, sobretudo na América Latina, antes da Conferência de Medellín,): enfatizava-se que Jesus fora pobre por uma questão de humildade pessoal, que se fez pobre “para nos dar o exemplo”, que Jesus se fez pobre tal como se faz pobre um rico quando se veste de roupas pobres. Assim considerada, a existência pobre de Jesus não tem qualquer significado nem questiona minimamente o estilo de vida das pessoas. Nem sequer chega a ter um significado sociológico, como chega a ter a seguinte afirmação: “sofreu a condição sociológico do pobre”.

A seguir ao concílio ecuménico Vaticano II, sobretudo na América Latina, insistiu-se na dimensão sociológica da pobreza de Jesus: que Jesus se fizera como os pobres; que pertencia à classe social dos pobres. Passou-se, então, duma concepção puramente espiritualista a uma concepção sociológica. Mas, a verdade é que a existência de Jesus tem, antes de mais nada, um significado antropológico: fazer-se pobre foi a sua maneira de assumir a condição humana.

Separando as duas concepções a espiritual e a sociológica fica-se com uma leitura rafada e parcializada da Encarnação. Aquilo que recupera a dimensão total da Encarnação é a dimensão antropológica, na medida em que complementa a dimensão espiritual e a sociológica.

Em Jesus, a pobreza tem três dimensões:

- para Jesus, ser pobre é uma maneira de ser homem (dimensão antropológica),
- o qual exprime humildade (dimensão espiritual),
- a qual se concretiza num estilo de vida à maneira dos pobres (dimensão sociológica).

Ampliemos esta maneira de ver a pobreza de Jesus, porque ela é essencial, não apenas para compreender a existência pobre de Jesus, como para descobrir o seu significado para o ser humano.

Estas três dimensões aparecem na Carta aos Filipenses 2:5 e seguintes: «Tende entre vós os mesmos sentimentos, que estão em Cristo Jesus: Ele, que é de condição divina, não insistiu em ser igual a Deus; mas, esvaziou-se a si mesmo, tomando a condição de servo. Tornando-se semelhante aos homens e sendo, ao manifestar-se, identificado como homem, rebaixou-se a si mesmo, tornando-se obediente até à morte e morte de cruz». «Rebaixou-se a si mesmo» - eis a dimensão espiritual. «Tomando a condição de servo» - dimensão antropológica: ainda por cima, fez-se homem pobre. «Obediente até à morte e morte de cruz» - concretizando a condição humana de pobre, assumiu a condição dos mais pobres de entre os pobres: dimensão sociológica.

Para respeitar o sentido total da existência de Jesus é preciso ter em conta estas três dimensões e recuperar, sobretudo, a dimensão antropológica, porque, se se leva apenas em conta a dimensão espiritual ou a dimensão sociológica, está-se a falsear o sentido real da existência de Jesus e o respectivo valor para a compreensão da existência humana, bem como a orientação do tipo de compromisso com o pobre.

Vejamos isto mais em concreto, pois são perigos concretos em que já se caiu e que em alguns sítios ainda se mantêm.

Insistir no facto da pobreza de Jesus ser apenas, ou primordialmente, sinal de humildade, dissolve ou desvirtua o sentido da Encarnação. Isto é frequentemente comum numa certa orientação teológica latino-americana, a qual, no fundo, pretende retirar força e radicalidade à opção pelos pobres. Já se disse e ainda se escreve: “que a opção de Deus não foi pelo pobre, mas pelo homem”. Tal afirmação desvirtua a Encarnação, já que o Homem não existe em abstracto: o que existe é este homem concreto, e a determinante primeira do homem concreto é a sua condição material, o medo em que vive mergulhado. Este homem, concreto, existe como pobre ou como rico. Quando dizemos que a opção de Jesus é pelo homem pairamos no abstracto e dissolvemos o escândalo da Encarnação. Um Deus que se veste de pobre não é um escândalo: é como cobrirmo-nos duma vestimenta que não nos pertence. Escândalo não é um rico vestir-se pobremente. O que é incompreensível é que o Deus menino tenha que por-se em fuga diante dum tirano que o quer matar e tenha que ser levado ao colo. Que tal figurinha seja um Deus, isso, sim, é um escândalo: para a razão humana é algo insólito. A pergunta é: que raio de Deus é esse que não tem poder nem sabe defender-se?

Portanto, se nos ficarmos apenas pelo meramente espiritual, anula-se o escândalo e o verdadeiro sentido da Encarnação. Porém, se se diz que, antes de mais nada, Deus se fez um da classe pobre (no sentido sociológico), ou seja, que viveu à maneira dos pobres, estamos a retirar sentido universal à existência de Jesus, na medida em que nem todos podem pertencer à classe pobre. A significação humana de Jesus destina-se ao mundo inteiro, mas nem todo o mundo pode pertencer a um grupo social determinado.

Que Jesus tenha nascido pobre, isso não é circunstancial nem acidental, mas que tenha nascido num casebre, no meio dos animais, numa gruta, isso não é acidental. Que Jesus nasceu numa estrebaria isso é casual (factual), mas nascer pobre não é casual: nascer pobre tem significado humano. Portanto, Jesus pobre é a sua maneira de ser e de fazer-se homem. Essa foi a maneira que teve de assumir a existência humana; assim, constitui uma proposta para todos os homens. Por outras palavras, Deus decidiu que o seu Filho se fizesse homem e, por isso, teve que escolher um estilo de vida: escolheu a existência pobre. Jesus, na sua maneira de ser homem, foi pobre: eis a oferta de vida com que quer presentear todo o mundo. A vida pobre de Jesus é um chamamento dirigido a todo o mundo e não apenas aos religiosos. O religioso é aquele que radicaliza essa maneira humana que Jesus teve de viver. Portanto, os votos têm um significado humano[1]. Que significa fazer voto de pobreza? Significa optar por uma maneira de viver que seja a que Jesus levou. No entanto, a oferta de vida pobre que Jesus faz é oferta para todos os homens. Por isso, o cristão é o que assume, na sua vida, a maneira de Jesus.

Finalmente, é necessário fazer uma afirmação fundamental: o valor último e o significado definitivo dessa existência humana de Jesus vem dum dado da fé: para o cristão, Jesus é Deus – é o Filho de Deus – é a imagem do Deus invisível, primogénito de toda a criatura em quem Deus quis que habitasse toda a Plenitude. Por isso, em tudo o que comentemos acerca da existência pobre de Jesus, é preciso ter presente que essa existência pobre é a existência humana de Deus, é a maneira e o lugar a partir do qual Deus quis revelar-se e mostrar-se aos homens. Eis, portanto, o valor daquilo que vamos dizer acerca da pobreza de Jesus e, portanto, da pobreza do pobre.


1.b Jesus optou por levar uma vida pobre

A vida pobre de Jesus é o resultado de uma opção, é pura gratuitidade. Jesus foi pobre porque quis. É o que está escrito na Segunda Carta aos Coríntios (8:9): «Conheceis bem a bondade de Nosso Senhor Jesus Cristo que, sendo rico, se fez pobre por vós, para vos enriquecer com a sua pobreza». Jesus é a única pessoa que pode escolher o seu estilo de vida: nós, sem querer, nascemos determinados (…)

Federico Carrasquilla M

[15 pp.]

[«Escuchemos a los Pobres – Aportes para una Antropolgía del Pobre», 79 pp.]





[1] Leonardo Boff, «Vida segundo o Espírito», VOZES, 1983, p.64. [Nota do tradutor]

25 de setembro de 2013

A ORAÇÃO DE JESUS_2 [J. COMBLIN]

A Oração de Jesus

II - “Porque me abandonaste?”





No fim da Paixão, os Evangelhos colocam, nos lábios de Jesus, outra oração.[1] O supliciado chegou ao fim dos seus sofrimentos. Jesus está para morrer. “À hora nona, Jesus clamou em alta voz: Eloí, Eloí, lama sabactaní”, o que significa: Meu Deus, meu Deus, porque me abandonaste?” (Mc 15:34).

(…)

Aliás, Jesus invocou esse critério: a árvore é julgada pelos frutos (Mt 7:20). Ora, onde estão os frutos? Os discípulos? Todos fugiram. O povo? Ausente. A conversão de Israel? Eis aí os princípes de Israel triunfantes, mais confiantes do que nunca na sua sabedoria. Tudo dá razão aos ex-discípulos que se encontram com Jesus perto de Emaús: foi uma ilusão! A derrota mostra que tudo era ilusão. Deus não estava com ele.

Na realidade, nada desnorteia mais a pessoa do que a falta de relação entre os actos e o êxito. Espontaneamente, esperamos que os resultados respondam aos nossos actos e que os actos bons, racionais, dotados de muitas qualidades positivas, produzam efeitos bons proporcionais às qualidades dos actos. Inclusivamente, na missão cristã. Preparamos a missão, estabelecemos actos, gestos, campanhas articuladas, sacrificamos muita coisa à execução dos actos previstos, sacrificamos dinheiro, terra, família, possibilidades, carreira, saúde e a própria vida. Depois disso, constatamos que os resultados diferem muito das expectativas.

Espontaneamente, achamos que o êxito é o resultado dos esforços feitos e, portanto, justifica os actos que o visavam. Ao invés, julgamos que o fracasso condena os actos anteriores e procuramos neles as deficiências que o explicam. O êxito engendra a boa consciência e o fracasso a consciência de culpa. Como se a derrota fosse a condenação e a vitória a aprovação. Assim, os vencedores crerão que a vitória é a recompensa das suas qualidades, e os vencidos crerão que a derrota é o castigo dos seus vícios. A própria teologia católica ensinou isso até há bem pouco tempo. De facto, poucas vezes sucede que os vencedores confessem os seus pecados ou tenham consciência de serem mais pecadores do que os vencidos; e, de modo natural, os vencidos fazem a confissão dos seus pecados, como se os tivessem descoberto aquando da própria derrota.

Se, na mente do povo, toda a derrota já é sinal de reprovação divina, tanto mais no caso de Jesus. Daí esse novo elemento de abandono: o facto de se sentir sem argumento, sem advogado, no momento exacto em que o argumento é necessário.

O que ensina esse episódio é que não há relação lógica, evidente, racional, entre os actos humanos e os resultados. As pessoas não fazem a História à vontade, não são as donas da História. Interferem nela. Interferem na História das nações e das civilizações e também na História do Reino de Deus. Porém, os resultados dessa interferência não aparecem imediatamente. Não há critérios definidos de antemão que nos permitam conhecer os resultados de determinada acção. O que se chama êxito ou derrota pode ter pouca relação com os actos anteriores. A História prossegue. O que sucede num momento ulterior pode desmentir o que sucedeu num momento anterior. Assim, a ressurreição desmente a morte de Jesus.

Contudo, no momento, tudo tem as aparências de uma derrota; então, como apagar a impressão de culpabilidade que sugere essa derrota? Apesar de estar consciente da sua inocência, Jesus sente-se acusado, reprovado, portanto, abandonado não apenas externamente, mas também pela convicção interior das pessoas. Ele sabe que o povo e os seus o acusam interiormente por tê-los decepcionado. Acham que ele os enganou levando-os a acreditar numa ilusão. Mais ainda, essa ilusão levou-os, a eles também, a uma derrota, e como não teriam rancor por essa derrota? Os seus o abandonaram, também, no seu coração.


Abandonado por Deus

Jesus reza assim: “Meu Deus, meu Deus, porque me abandonaste?” Ninguém poderia ter inventado que o Filho de Deus tivesse experimentado a ausência de Deus. Essa palavra é autêntica. Ela revela-nos o fundo da experiência religiosa cristã. No hora em que Jesus está totalmente desamparado, Deus responde com o silêncio. Deus fica calado, aparentemente ausente, de tal modo que Jesus chega a sentir-se abandonado. Experiência de um vazio tremendo, de alguém que está em falta, que devia estar presente e não está.

Desse modo, Jesus experimenta a solidão humana nos combates desta vida, e Deus não interrompe essa solidão. Essa foi a experiência que fizeram também os profetas e os místicos, ainda que as lendas populares mantenham, entre as pessoas ingénuas, a convicção de que as pessoas mais religiosos e as mais espirituais gozem da convivência dos anjos e dos santos, de tal modo que, para elas, o calvário se transforma num paraíso.

É verdade que a humanidade teme essa solidão humana, a solidão da criatura humana nas horas decisivas da sua vida e, (…).

José Comblin

[14 p.]







[1] Cf. A primeira Oração, «A ORAÇÃO DE JESUS – I – «Mas o que tu queres» (20 Set. 2013); in: http://asaladecima.blogspot.pt/2013/09/a-oracao-de-jesus1-j-comblin.html

20 de setembro de 2013

A ORAÇÃO DE JESUS_1 [J. COMBLIN]

Raramente nos lembramos – se é que isso alguma vez nos foi ensinado na catequese ou nos movimentos laicais – que «o carácter único da salvação que se realiza no Messias Jesus (…) é irrupção do poder, mas na debilidade» [Rafael Aguirre Monasterio e Antonio Rodríguez Carmona].

Este texto de José Comblin − falecido há pouco anos, figura profética do maior quilate dos últimos 60 anos, fonte inesgotável de surpresas evangélicas libertadoras, teólogo sadio (apelidado por bispos seus inimigos, e pela ditadura brasileira também, de teólogo “zangado, ácido e perigoso”, nisso coincidindo ‘política’ e ‘religião’ tal como com o Profeta Elias [1Rs 18:17]) – este longo texto do Padre José, que será seguido da sua II Parte mais tarde («A oração de Jesus II – Porque me abandonaste?»), inicia-nos nos meandros, tão dramáticos, quanto íntimos e trágicos, da Oração de Jesus. O mesmo é dizer, pega-nos pela mão e leva-nos a percorrer os labirintos de sangue da mais estreme dúvida de quem ouve o bater da jugular, mergulhado na difícil solidão, que sempre antecede as grandes decisões da vida.

A oração, aqui, é tudo menos refúgio ou rochedo. Mesmo para o chegar a ser (Sl 94:18-19), não será nunca fácil contornar a lanceta da revolta e do desespero (Sl 94:1-2). Eis um testemunho diante do qual não diremos “que faço da oração?”, mas “que fiz da minha vida” até aqui, ou "que queres de mim Senhor?"

Este texto lança o alerta: certos modelos de oração e certas "celebrações litúrgicas" podem tornar-se na morte da Fé no Reino...


A Oração de Jesus

I - “Mas o que tu queres”






As orações de Jesus são poucas. Contudo, elas constituem pontos altos da mensagem evangélica. (…) Essas orações levantam, sem dúvida, um problema histórico. Não podemos garantir, com argumentos históricos, que elas tenham sido pronunciadas literalmente tal como são apresentadas. Mas essa literalidade não é imprescindível. Sabemos que ninguém poderia ter inventado nem o estilo nem o conteúdo das orações de Cristo. Os redactores escreveram-nas a partir da experiência que tiveram do próprio Jesus.

As orações revelam-nos alguns aspectos da humanidade de Jesus: mostram-no totalmente humano. A exegese cristã tem por dever insistir nesse aspecto, porque é justamente essa humanidade que separa o cristianismo de todas as mitologias e religiões inventadas pelos homens. (…) À medida que a nossa época está passando por uma fase de secularização, podemos dizer que há uma crise de oração. De qualquer modo, não sairemos da crise pelo apego angustiado a usos e costumes tradicionais ou a formulários de outros tempos, mas, sim, pelo regresso às origens da oração cristã, pela volta às fontes e ao essencial.



As tradições evangélicas mais antigas referem-nos apenas dois exemplos da oração de Jesus, ambos no contexto da paixão e da morte. O primeiro está colocado no início da Paixão e o segundo no fim: o primeiro, no jardim denominado Getsémani (Mt 26:35; Mc 14:32-42; Lc 22:39-46; Jo 18:1-2); o segundo, no Calvário (Mt 27:45; Mc 15:33-41; Lc 23:44-49; Jo 19:28-30). Essa colocação não pode ser arbitrária. De acordo com a tradição evangélica, há uma relação íntima entre a oração de Jesus e o acontecimento em que ela se situa. Portanto, podemos afirmar que oração e acontecimento se iluminam mutuamente.

Vejamos, primeiro, a oração de Getsémani. «Chegam, então, a uma propriedade denominada Getsémani, e Jesus diz aos seus discípulos: ‘Sentai-vos aqui, enquanto vou rezar’. Toma consigo Pedro, Tiago e João e começa a sentir pavor e angústia. E diz-lhes: ‘Minha alma está a morrer de tristeza; ficai aqui e vigiai’» (Mc 14:32-34).


1. Vigiar

Esta é a oração da vigília. Ela realiza-se antes do acontecimento, no entanto, tão intimamente unida ao próprio acontecimento que se pode dizer que faz parte dele. Como é que a oração e o acontecimento se vinculam assim de modo tão estreito? É a primeira consideração que devemos fazer.

Muitos acham que oração e história não somente caminham independentemente uma da outra como que até se excluem. De facto, muitos fenómenos contribuem para tal opinião. Quase sempre, nas religiões orientais que mais desenvolveram a sua arte e a sua prática, a oração consiste num relacionamento com deuses ou forças situadas fora deste mundo e indiferentes ao desenrolar dos acontecimentos. Entrar em estado de oração consiste então em sair da história deste mundo, em tornar-se distante ou insensível ao fluir de acontecimentos que sucede na vida e recordar as verdades eternas, as realidades imutáveis para contemplá-las ou interpretá-las. De facto, à primeira vista, a experiência superficial da oração dos religiosos ─ de modo particular a experiência dos contemplativos, mas também a dos cristãos piedosos  parece confirmar que não há grande diferença entre as antigas religiões orientais e o catolicismo dos nossos dias.

Temos, por outro lado, uma realidade particular: o caso daqueles que procuram, na oração, um refúgio fora e longe da marcha concreta dos acontecimentos, porque foram atingidos e feridos por eles. Na verdade, muitos recorrem à oração depois de terem sido derrotados pela vida, quando já não encontram recursos em si mesmos ou ao seu alcance. São os que rezam depois de consumado o facto: Jesus rezava antes. Ora, já que não rezaram antes, é muito provável que a oração feita depois permaneça inútil, eventualmente, até, nociva. Por não terem rezado antes, eles não puderam entrar na marcha do Reino de Deus e viver os acontecimentos dentro dessa dinâmica. A oração feita depois da ocorrência procura frequentemente neutralizá-la, exorcizá-la ou recuperá-la. Diante do acontecido ─ uma desgraça, uma doença, uma derrota, uma humilhação, uma frustração ─ a pessoa sente-se desamparada e suplica a um deus que suprima, anule o acontecido ou mude o seu rumo com vistas a uma vantagem posterior. O que se pede à força sobrenatural é que não tenha acontecido o que aconteceu. Quem reza depois quer que um deus faça a história voltar atrás, apagando assim o mal que os afectou.

Essa oração corresponde ao grito de um animal ferido. A capacidade de fantasiar confere à pessoa ferida a possibilidade de expressar o grito sob a forma de um apelo a uma força eventual que a imaginação coloca diante dela. Essa fantasia, porém, não muda radicalmente a qualidade do grito. O grito é humano, demasiado humano, mas de uma humanidade superficial. Essa opção impede a verdadeira oração de Cristo.

Essa forma de oração é bastante comum na vida das multidões e é espontânea em cada um de nós, pelo menos em certas ocorrências totalmente imprevisíveis, e sob a forma de reflexos incontroláveis: é o caso do desastre, dos acidentes de qualquer tipo, terramotos e outros desastres naturais, raios, quedas, emergências diversas, insegurança, assaltos, tiroteios, etc. Não nos vamos deter nessa forma de oração.

Além do exemplo da oração que vem depois do ocorrido, a experiência do mundo religioso mostra-nos exemplos de vidas de oração que, pelo menos aparentemente, nunca interferem com a história exterior. Nessas vidas, a oração desenrola-se segundo ritmos tais que as ocorrências do mundo nunca a afectam. O conteúdo da oração relaciona-se com realidades independentes dos objectos exteriores. A pessoa religiosa parece rezar para executar uma tarefa imposta por um mundo paralelo. Essa tarefa não parece ter significado neste mundo. Para compreender o seu valor seria preciso entrar nesse outro mundo e sair deste. Nesse outro mundo, os acontecimentos deste mundo são insignificantes; nesse outro mundo os verdadeiros acontecimentos são as celebrações, os ritos, as orações. Assim, as religiões inventaram um verdadeiro mundo de deuses e de espíritos. Nesse mundo existem acontecimentos próprios, invisíveis aos olhos carnais. Os rituais permitem às pessoas iniciadas uma participação nos acontecimentos invisíveis. Assim, o coro dos monges seria uma participação no mundo dos anjos, e os ciclos litúrgicos ─ o ciclo de cada dia, de cada semana, de cada ano ─ acompanhariam as realidades sobrenaturais. A repetição cíclica seria o modo humano de assumir os factos eternos dos deuses: a pessoa seria chamada a celebrar, através duma repetição sem fim, alguns acontecimentos celestes.

Certas tradições cristãs parecem ter adoptado essa existência paralela própria das religiões antigas. A oração, que é simplesmente o cumprimento dum ciclo ─ ciclo de cada dia, de cada semana, de cada ano ─ entra na categoria de celebração. Em certas tradições religiosas cristãs, o nascimento e a morte de Jesus, a Páscoa e o Pentecostes, a eleição e a missão dos apóstolos, o baptismo ou a transfiguração de Jesus são acontecimentos que saíram deste mundo e entraram numa epopeia eterna: são realidades celestes, já deixaram de ser parte da nossa história. Não precisam ser compreendidas dentro da trama da nossa história política, económica ou cultural: precisam de ser apenas celebradas. A Páscoa transformou-se num acontecimento celestial, objecto duma aclamação angelical, à qual os homens precisam de se associar cada dia, cada semana, cada ano. O sentido dessa Páscoa foi determinado para sempre por textos litúrgicos imutáveis. Basta reler esses textos para recordar o significado que eles contêm. A Páscoa tornou-se algo imóvel, tão imutável como o próprio ciclo litúrgico. Nesse caso, celebrar a Páscoa é esquecer-se das coisas que ocorrem e passam neste mundo para entrar num acontecimento dum outro mundo que não passa e se desenrola sempre da mesma maneira. Assim, a pessoa pode ter a impressão de viver livre das contingências deste mundo, das circunstâncias imprevistas, desagradáveis, surpreendentes, muitas vezes deprimentes ou insignificantes de um mundo desencantado, para entrar num mundo estável, cheio de significados, um mundo em que tudo está em ordem, com cada coisa no seu lugar.

Nenhuma oração cristã se reduz exclusivamente a este esquema. Porém, existiram e ainda existem muitas realizações em que a força desse esquema pesa sobre o dinamismo espiritual e reprime a verdadeira oração cristã.

A oração que consiste em viver numa existência paralela, fora deste mundo variável e frágil, pode dar segurança, tranquilidade, paz interior, ânimo para o trabalho, mas, em outros casos e momentos, também pode engendrar um aparelho de escravidão mais subtil e insinuante do que a escravidão material, igualmente ou até mais implacável, exigente e destruidor da liberdade.

(…)

José Comblin

[18 pp.]



CONSULTE A BIOGRAFIA DE JOSÉ COMBLIN na Wikipedia