teologia para leigos

2 de outubro de 2023

A Invenção de Deus 1




Canaã – de Abraão a Moisés – Oxford Bible Atlas©, OUP, 1984 e EVD© 1988, p.57





COMO YHWH SE TORNOU O DEUS DE ISRAEL?





1. O encontro entre YHWH e Israel – ecos da memória

Segundo o relato bíblico do livro do Êxodo (caps. 19-24), YHWH converte-se no deus de Israel como consequência da sua revelação no monte do Sinai após a celebração de um contrato ou uma «aliança». Durante esta teofania, os hebreus escutam a tonitruante voz de YHWH, que lhes comunica os «dez mandamentos». Como consequência, o povo, completamente incapaz de tamanha e esmagadora presença do divino, pede a Moisés que seja ele o mediador entre YHWH e Israel. É, então, que YHWH se apresenta a Moisés e ao povo como aquele deus que derrotou o Egipto: «Vós mesmos vistes o que eu fiz aos egípcios e como vos carreguei nas minhas asas de águia e vos trouxe comigo» (19,4). É então que YHWH anuncia o seu nome a todo o povo, pois até aí apenas o revelara a Moisés: «EU SOU YHWH, o teu Deus, que te tirou do país do Egipto, da casa dos escravos» (Ex 20,2).

A nova relação entre YHWH e Israel é ratificada mediante um ritual de sangue, com o qual Moisés asperge o povo e o altar. Tal como os relatos da vocação de Moisés revelam, esta história da teofania no Sinai também faz memória de uma realidade: YHWH não tinha sido sempre o deus de Israel e, por isso, podemos afirmar que esta relação entre YHWH e Israel é fruto de um encontro.

O encontro entre YHWH e Israel é descrito, nos textos bíblicos, de diferentes maneiras. No livro atribuído ao profeta Oseias diz-se simplesmente que YHWH «encontrou» Israel no deserto: «Encontrei Israel como cachos de uvas no deserto, vi os vossos pais como figos temporãos, as primícias de uma figueira.» (Oseias 9,10). Segundo o capítulo 20 do livro de Ezequiel, a história da relação de YHWH com Israel começa no Egipto com uma eleição da parte de Deus: «Dir-lhes-ás: “Assim fala o Senhor YHWH: No dia em que escolhi Israel, em que levantei a minha mão para prestar juramento à raça da casa de Jacob, dei-me a conhecer a eles em terras do Egipto e ergui a minha mão para prestar juramento sobre eles, dizendo: Eu sou o YHWH vosso Deus”.» (Ez 20,5).

Ainda que estes textos não coincidam quanto ao lugar em que tal relação se estabelece, eles coincidem na ideia de que YHWH escolheu Israel num certo e determinado momento e, portanto, ficamos a saber que este povo não fora desde sempre o seu povo. Esta constatação leva-nos a questionar o nome de Israel e que significado tem ele. Que é que poderemos dizer do seu nome? Quando e em que circunstâncias poderemos imaginar o acontecer deste encontro – YHWH/Israel – ao nível histórico?



2. O nome de Israel

Israel contém em si o elemento teofórico ‘el, que poderá ser considerado o nome próprio de um deus que, por exemplo, se encontra em Ugarit como sendo um ‘deus criador’ chefe de um panteão; nalguns casos, é usado como uma designação genérica de «deus». O nome de Israel é composto dos mesmos elementos que Ismael (Yisma-el), que significa «que ‘El’ escuta». Trata-se, portanto, de um verbo na terceira pessoa da conjugação, com preformativas, em yusivo (que exprime uma ‘ordem’) combinado com o nome da divindade.

A etimologia do nome Yisra-el é discutível. No livro do Génesis, o autor do relato da luta de Jacob com um ser misterioso que parece ser Deus propõe uma etimologia popular: «El disse: “E o outro continuou: «O teu nome não será mais Jacob, mas Israel; porque combateste contra Deus [kî sarîta ‘im ‘elohîm] …» (Gn 32,29). A mesma explicação pode ser encontrada no livro de Oseias 12,4: «Jacob suplantou seu irmão no seio materno e, quando se tornou adulto, lutou com Deus.» (ûb’ ônô sarah ‘êt ‘elohîm). Segundo esta etimologia, o nome teria sido construído a partir da raiz ´s-r-h, «lutar, combater». Neste caso, o primeiro sentido do nome seria «Que ‘El’ lute», posto que, nos nomes teofóricos (=teóforos), o nome da divindade faz de sujeito e não de complemento directo. No entanto, esta raiz não se encontra em mais lado nenhum da Bíblia senão nestes dois textos que acabamos de evocar, sendo uma raridade nas outras línguas semitas: ao que se julga, o nome is-ra-il foi encontrado em Ebla (com o hipotético significado de «combater»[1]).

Foram adiantadas outras propostas interpretativas: o nome poderia ter sido construído a partir da raiz y-s-r («ser justo»). Neste caso, tratar-se-ia de uma construção com base na conjugação de aformativas: «’El’ é justo». Esta raiz encontra-se em dois textos poéticos do livro do Deuteronómio, que dizem: «Ninguém é semelhante a ‘El’ de Jechurun» - «’ên Ka’el Yesurûn» (Dt 33,26). O nome Jechurun utiliza-se como nome poético para Israel[2] (Isaías 44,2), e parece ter sido construído com a ajuda da raiz «ser justo». Uma explicação a partir da raiz y-s-r pode igualmente apoiar-se numa tabuinha fragmentada de Ugarit, que contém uma lista na qual figuram os nomes de uma companhia de soldados conductores de carros. Um destes soldados é chamado y-s-‘i-l[3]. Esta tabuinha ainda estava no forno de cozedura do barro quando aconteceu a destruição de Ugarit, pelo que pode ser datada, pela técnica do Carbono 14, como originária dos finais do século XIII a.e.c.; ou seja, é contemporânea do primeiro registo da presença de Israel no Egipto. No entanto, o nome da lista de Ugarit não tem necessariamente uma relação com o Israel bíblico[4], tal como a vocalização do nome de Israel em textos bíblicos advoga mais a favor de um lexema construído a partir da conjugação.

Esta pista abre outra possibilidade, a de explicar o nome a partir da raiz atestada s-r-r («reinar, governar, mandar, impor-se como amo»): «Que ‘El’ seja amo, que reine». A Bíblia hebraica conservou uma marca, uma memória deste significado. O texto massorético de Oseias 12,5 («Lutou com um anjo e venceu [wayyasar ‘el-mal’ak wayyukal]» é o resultado de uma revisão dogmática. Os massoretas queriam evitar uma demasiada proximidade entre Jacob e Deus e, por isso, inseriram o termo mal’ak («anjo»), transformando assim o nome ‘el (que originariamente significava o deus 'El') com a ajuda de uma ligeira mudança de vocalização, o que faz com que ele passe a ser a preposição ‘el (significando «para, em direcção a»)[5]. Sendo assim, o texto primitivo poderá ser reconstruído deste modo: «El impôs-se e venceu [wayyasar ‘el wayyukal]».

A Bíblia contém também outros nomes próprios com a raiz s-r-r, como por exemplo, Serayah ou, na forma longa, Serayahû, «YHWH reina», nome de um sacerdote em 2 Reis 25,18 [«Sumo Sacerdote Seraías»] e de um funcionário do rei Sedecias em Jeremias 36,26 [Seraías].

Nos textos de Génesis 32 e Oseias 12, terá vingado a explicação popular baseada na raiz s-r-h [«lutar»] e suplantado a etimologia original no momento em que YHWH, deus guerreiro, se converteu no deus tutelar de Israel. A raiz «reinar», «impor-se como amo», é a mais adequada para ‘El’, chefe dos panteões e rei dos deuses.



3. A estela de Merenptah

O primeiro testemunho evidente de Israel, que não provém da Bíblia (vem de fora da Bíblia) e faz referência explícita ao Israel «bíblico», encontra-se na estela do faraó Merenptah e data de entre os anos 1210 e 1205 a.e.c. [Cf. James B. Pritchard, «La Sabiduría del Antíguo Oriente» Ed. Garriga, pp. 273-274, 1966]. Esta estela de granito, que mede 3,18 metros de altura, 1,61 de largura e 31 centímetros de espessura, relata as vitórias do rei do Egipto, Merenptah, durante uma campanha no Próximo Oriente. Nela encontramos as seguintes afirmações[6]:



Uma enorme alegria aconteceu no Egipto e o júbilo eleva-se nas cidades do País amado. Elas falam das vitórias de Merneptah sobre o Tjehenu[7]

Os chefes caem dizendo: Paz! (s-l-m)! Nem um único dos Nove Arcos[8] ergue a cabeça.

Foi vencido o país dos tjehenu. O Hatti[9] foi apaziguado.

Canaã foi despojado de todo o mal que possuía.

Ascalon foi tomada. Gézer conquistada.

Yenoán[10] é como se nunca tivesse existido.

Israel está destruído, a sua semente já não existe.

Síria (Hurru) parece uma viúva para os egípcios.

Todos os países estão unidos; estão em paz.

(Todos) os que erravam estão agora ligados pelo rei do Alto e do Baixo Egipto, Baenrá, o filho de Ra, Merenptah, dotado de vida,

como Ra, dia após dia.”



Segundo uma publicação recente, ter-se-ia descoberto o nome de Israel – numa transliteração muito diferente da da estela de Merenptah – no pedestal de uma estátua que poderia ser mais antiga (eventualmente da época de Ramessés II? - antecessor de Merneptah). Nesta também há referência a Ashkelón (Ascalon) e a Canaã, tal como na de Merenptah; o terceiro quadrado (ausente) poderia conter eventualmente o nome de Israel[11]. No entanto, a proposta de leitura – que é uma restituição – é “Ia-sha-ri” ou inclusivamente “Ia-sah-l”. Seja como for, este topónimo parece a priori muito diferente do “Israil” que está na estela de Mernepath. Acontece o mesmo com a recente proposta de Manfred Görg de que a leitura deveria ser “a-shi-ru”. A ausência do nome divino «El», nestas reconstruções, explica-se porque ele é subentendido em todas elas, pois o texto destina-se a um grupo de pessoas dedicadas ao serviço deste deus. A transliteração de M. Görg («a-shi-ru») tem como raiz “s-y-r” que quer dizer «cantar» e «a» corresponde à primeira pessoa do singular, pelo que, então, tudo ficaria assim: «Eu quero cantar (para El)». Curiosamente, no relato bíblico, e após a passagem do mar Vermelho, o povo põe-se a cantar para YHWH (em Êxodo 15,7 surge a mesma formulação na primeira pessoa do plural)[12]. Esta semelhança continua a parecer muito especulativa, sobretudo a ideia de um ‘nome próprio’ a partir de um ‘verbo’ na primeira pessoa do singular. Há que chamar a atenção para o facto de o topónimo do pedestal da estátua de Berlin estar escrito num pedaço de muralha, o que aponta mais para que ele seja o nome de um país, de uma cidade ou de uma fortaleza conquistada e derrotada. Na estela de Merenptah (que lhe é posterior), o nome de Israel está escrito como um etónimo (um determinativo que representa um homem ou uma mulher). Na melhor das hipóteses, na inscrição do pedestal de Berlin poderia tratar-se de uma variante quase contemporânea e, na pior das hipóteses, de um topónimo totalmente distinto[13]

Regressemos, agora, à estela de Merenptah, na qual podemos apreciar la finesse e os jogos de palavras típicos da retórica régia. Em primeiro lugar, o nome «Israel» é representado por um homem e uma mulher bem como por ‘três traços verticais’ que querem dizer ‘plural’. Isto não significa que se refere a um grupo nómada, mas ao nome de um grupo, e não ao nome de uma região ou de uma localidade. Deste Israel diz que já não tem ‘pr.t’. O significado deste termo é duplo: tanto pode querer dizer ‘semente’ ou ‘trigo’. Com efeito, entre os egípcios, tal como noutros povos, existia o costume de destruir os campos de trigo dos territórios vizinhos. A afirmação de que Israel já não tem ‘semente’ pode, igualmente, evocar a prática egípcia de cortar os pénis dos inimigos que tombaram mortos em combate. Quiçá, o texto é deliberadamente ambíguo, já que o escriba poderia ter optado por desenhar três grãos de trigo para significar o cereal agrícola («trigo») ou por desenhar um falo como representativo de «esperma, semente»[14].

O restante do texto assenta numa aliteração e personifica a «Síria» - território que Israel geograficamente ocupa - sob a forma de viúvas (no plural) enlutadas. Ou seja, Israel surge sob a forma de um «homem» (semente) e «Síria» surge como sendo uma «mulher». A diversos níveis, este texto pretende mostrar que, quer Israel (‘o grupo humano’), quer a Síria (‘todo o país’) caíram aos pés do Egipto.

A identidade rigorosa de Israel, nesta inscrição, permanece em aberto. Que quer dizer «Síria»? Será um sinónimo poético para Canaã ou refere-se apenas a uma parte de Canaã? Sem dúvida que o texto da Estela coloca Israel entre Ascalon, Guézer e Yeonam (Yanoam, Yaonam). Se nesta asserção geográfica, Ascalon e Guézer designam os extremos a sul e Yaonam o extremo-Norte [cf. Mapa do Atlas Bíblico de Oxford em cima: o nome da localidade está na margem inferior do lago de Kinneret, mar da Galileia, lago de Tiberíades ou de Genesaré], é possível que faça sentido localizar este Israel (ali referido) na região montanhosa de Efraim, ou seja, na região onde Saúl funda o seu «reino». Ao que tudo indica, «Israel» é um grupo cujo nome os egípcios conhecem bem, a quem atribuem um alto potencial de desordem e olham como um inimigo importante contra o qual há que assegurar uma rápida vitória.

A menção do nome de Israel nesta estela não pressupõe de modo algum um «êxodo» ou sequer a emigração deste grupo a partir do Egipto. Também nada diz quanto a uma proveniência a partir de fora da Palestina. Permanece em aberto a seguinte questão: este grupo, cujo nome indica que cultuava em primeiro lugar o deus “El”, chefe dos panteões cananeus, já venerava o deus YHWH?



4. A identidade deste Israel

Segundo André Lemaire, a origem do nome Israel advém do nome de um clã, «’Asriel», instalado na montanha de Efraim (“Asseriel”, nome mencionado em Números 26,31 como um dos clãs de Galaad; em Josué 17,12 e 1 Crónicas 7,14Asseriel”, como filho de Manassés; e em dois óstracos da Samaria, o 42 e o 48). Este clã («’Asriel») alcançou tal importância que acabou por dar o seu nome a uma coligação de clãs (tal como aconteceu com os ‘francos’ na França ou à região de Schwyz na Suíça)[15]. Esta tese, ainda que interessante, é, sem dúvida alguma, muito frágil. Os textos bíblicos que mencionam este clã são pouco numerosos e datam, na melhor das hipóteses, da época persa. A mudança da letra ‘alef’ pelo ‘yod’ é também um fenómeno linguístico recente. Por último, não é fácil aceitar que este clã, tão marginal, tenha podido estar na origem de Israel.

Naquilo que diz respeito ao Israel da estela de Merenptah, podemos supor ser ele constituído por uma coligação de clãs ou de tribos que veneravam, como seu deus tutelar, a divindade «El», e que possuía uma identidade ou inclusivamente uma etnicidade específica que o distinguia das cidades-Estado das planícies da Palestina[16]. Poderia tratar-se de uma «sociedade segmentada», terminologia antropológica grafada por Émile Durkheim e, posteriormente, usada pelo etnólogo Edward Evans-Pritchard[17]. As sociedades segmentadas constituem-se a partir de grupos similares e comparáveis quanto ao tamanho e à força, o que faz com que se procrastinem os conflitos e se opte pela negociação. O nome de Israel, que significa «que ‘El’ reine», «que ‘El’ seja amo», poderia reflectir, pois, os ideais desse tipo de sociedade. Algumas tradições bíblicas, que evocam resistências à introdução da monarquia em Israel, deveriam ser vistas como memórias desses ideais de uma sociedade igualitária sem a obrigatoriedade da presença de um chefe permanente e imprescindível[18].



5. A divindade ‘El’ no Génesis e na Bíblia hebraica

A veneração de uma divindade do tipo ‘El’, que precede a de YHWH, está parcialmente na história dos patriarcas, sobretudo na de Jacob, o qual quando luta com «deus» muda de nome e passa a ser «Israel». O nome de ‘El’ surge com frequência nos relatos patriarcais do livro do Génesis, nos capítulos que vão do 12 ao 50, inclusive, sendo a sua aparição muito significativa nos livros que vão do Génesis aos livros dos Reis[19]: 1,06 vezes a cada 1 000 palavras[20].

Por exemplo, segundo o capítulo 33 do Génesis, Jacob ergue, perto de Siquém, um altar para ‘El’, o deus de Israel, aparentemente com a finalidade de demarcar o seu território: «Erigiu ali um altar, que dedicou a ‘El’, deus de Israel [‘el ‘elohê yisra’el]» (Ex 33,20). Se por trás da tradição de Jacob se encontram recordações dos clãs da época dos finais do segundo milénio antes da nossa era, podemos, portanto, imaginar que estes «filhos de Jacob» veneraram uma ou várias manifestações da divindade ‘El’. A expressão «’El’, deus de Israel» pode basear-se numa tradição antiga. A maioria das passagens do livro do Génesis e de outros livros bíblicos, que mencionam diferentes tipos de manifestações de ‘El’, encontram-se frequentemente em textos demasiado recentes, o que faz pressupor que os leitores entendem ‘El’ como o equivalente de «Deus» e, inclusivamente, de «YHWH». No entanto, tal não impede que estes textos conservem a memória da veneração ao grande deus ‘El’.

Ao construir a história dos patriarcas como sendo anterior à época de Moisés, os autores, por vezes, apresentam esses patriarcas a venerar o deus ‘El’ em situações diversas. No Génesis encontramos toda uma série de epítetos de ‘El’.



5.1. El Elyón (Gn 14,18-22)

O capítulo 14, que descreve Abrão (“o hebreu”) como que comprometido em algo parecido com uma guerra mundial, faz parte dos últimos acrescentos à história deste patriarca. Este episódio do encontro com Melquisedec é talvez mais recente que a primeira versão de Gn 14. Ficamos agora a saber como Melquisedec, rei de Salém[21] e sacerdote de El Elyón, abençoou Abrão[22] em nome de El Elyón. Então, Abrão jura por esse deus: «Levanto a minha mão para (YHWH[23]) El Elyón [o Deus Altíssimo] criador dos céus e da Terra (‘el ‘elyôn qonêh samayim wã’ares)» (14,22).

Muitas vezes nos interrogamos se «Elyón» seria uma divindade distinta de El, na medida em que ele pode aparecer sozinho[24]. Com efeito, na «história fenícia» relatada por Sanjuniatón, da qual nos chegaram extratos através de um dos Padres da Igreja − Eusébio de Cesareia (“Preparatio Evangelica” 1, 10, 15-29) − menciona-se um deus Eliúm chamado em grego Húpsistos («o altíssimo»). Num tratado arameu do século VIII a.e.c., entre Bar Ga’yah e Mati’el, rei de Arpad, que se encontra numa estela descoberta em Sfireh, a 25 Km a sudeste de Alepo[25], na lista dos deuses-testemunhas, lemos: «perante El e Elyon». Podem tratar-se de duas divindades diferentes, mas também podemos estar perante uma utilização explicativa da conjunção «waw’»: «El, ou seja, Elyón»[26]. É muito provável que se trate de um epíteto que posteriormente evoluiu para um nome independente. Este título não ficou confinado a 'El'. Em Ugarit, também esse nome foi aplicado a Baal[27]. Na Bíblia hebraica, ele é um nome aplicado tal e qual a YHWH: «Porque Tu, SENHOR [=YHWH], és Elyón [soberano nas alturas?] em toda a terra, estás muito acima de todos os deuses» (Salmo 97,9). No entanto, existe também um certo número de textos que mostram claramente que “El Elyón” está na origem de uma divindade distinta de YHWH, principalmente em Dt 32,8 e Gn 14,22. No livro dos Números, o vidente estrangeiro Balaão utiliza em paralelo dois epítetos para ‘El’: «Oráculo daquele que escuta as palavras de Deus, e conhece a sabedoria de Elyón [Altíssimo], que tem a visão de Shaday [Omnipotente]…» (Números 24,16). No Salmo 107,11 encontramos, mais uma vez em paralelo, «as palavras de El» e «os conselhos de Elyón».

Estes textos proporcionam um certo número de indícios da popularidade de «El Elyón» em Israel e em Judá, um título reivindicado e posteriormente transferido para YHWH.



5.2. El Roi

Este nome pode ser traduzido como «El da visão» ou «El vê-me». Só é referido no relato de Génesis 16 (v.13: «Agar deu ao SENHOR, que lhe falara, o nome de Attá-El-Roi») como sendo o nome com que Agar − a escrava de Sara, após encontrar-se com o emissário de YHWH no deserto − denomina aquele deus que se lhe revelou por intermédio dum anjo e que ela pensa que é uma manifestação de deus. Na medida em que este título não aparece em nenhum outro lugar, pode muito bem ser que se trate de uma invenção do autor do texto que sabia que ‘El’ era venerado (sob diversas designações) por certas tribos árabes, das quais Agar é, neste texto, apresentada como sendo um antepassado dessas tribos. O autor deste texto do Génesis quer mostrar que este ‘El’ é idêntico a YHWH, já que o nome que Agar dá ao seu filho – Ismael (que significa «que El escute, que oiça»; Gn 16,11) – é justificado, neste texto, quando o autor escreve «YHWH ouviu (os gritos da) tua aflição» (ouviu “a angústia”: Gn 16,11).



5.3. El Olam

No capítulo 21 do Génesis narra-se uma aliança entre o rei filisteu Abimélec e Abraão. «Abraão plantou uma tamareira em Bercheba e lá invocou o nome de YHWH, El Olam» (Gn 21,33). O texto hebraico não diz rigorosamente quem é o sujeito; as versões acrescentam «Abraão», o que é sem dúvida a solução mais lógica, na medida em que o texto pretende relacionar o santuário «ao ar livre» de Bercheba com o Patriarca. Tal como já acontecera na história de Jacob, que em Bet-El («casa de Deus») invocou YHWH, mediante esta invocação Abraão identifica YHWH com «El Olam» («o de sempre, o Deus da eternidade»).

O mesmo título é encontrado em Ugarit, não se aplicando, contudo, a ‘El’, mas a Shapsu, uma divindade solar (KTU 2.42: «Shapshu ou Shapsh, e também Shamshu, era uma deusa cananeia do sol; ela também serviu como mensageira real do deus ‘El’, seu provável pai; os seus epítetos mais comuns no corpus ugarítico são nrt ỉlm špš, rbt špš e špš ʿlm; nas listas do panteão KTU 1.118 e 1.148, Shapshu é igualado ao acádico ᵈšamaš.»; cf. Wikip.). O mesmo acontece numa inscrição aramaica de Kartepé, que menciona sms’lm (Shamash Olam). Tudo indica que (não na Bíblia, mas em registos fora dela) se trate de um título de uma divindade solar. A sua atribuição a ‘El’ ou até a YHWH seguramente que está relacionada com uma «solarização» do culto a YHWH, que mais abaixo iremos abordar.



5.4. El Shadday

Este título surge várias vezes no livro do Génesis (28,3; 35,11; 48,3 - «o Deus supremo») e, com frequência, no livro de Job sob a forma apenas simplesmente de Shadday. A etimologia permanece apenas uma hipótese. É costume relacionar-se Shaday com o acádico sadû, «montanha» («o da montanha»). Outra hipótese é relacioná-lo com o nome hebraico sadeh, o «campo» (campo que não se pode cultivar). É possível que, além do mais, estes dois termos tenham a mesma origem e designem um lugar onde é muito difícil, ao homem, sobreviver[28]. Documentados em Ugarit, surgiram alusões a esta divindade em nomes próprios, tais como B’lsdy, «Ba’alshadday»[29]; num outro texto, encontramos «El Shadday caça»[30]. Neste caso, parece que “El Shadday” tem uma relação privilegiada com regiões desérticas, aproximando-se assim do tipo de divindade que os vestígios iconográficos representam como sendo «o senhor dos animais». Esta relação com regiões pouco habitadas também é confirmada pelo surgimento de sdyn (uns deuses aparentemente inferiores) na inscrição de Deir ‘Alla e pelo surgimento de ‘l ´sdy numa inscrição tamudeia (língua do Norte da Arábia), nos arredores de Tayma, procedente de beduínos sedentarizados, que data dos séculos V-III a.e.c.

A etimologia rabínica de El Shadday, «o que se basta a si mesmo», constitui claramente uma especulação teológica na qual, provavelmente, já subjaz a vocalização massorética. A versão grega da Bíblia, que frequentemente usa a expressão «pantokrator», inspirou muitas traduções modernas: o «todo-poderoso».

No livro do Génesis, o título de El Shadday parece ser utilizado apenas nos textos sacerdotais da época persa (597-333 a.e.c.) e como epíteto de YHWH. [515 a.e.c., início da época persa: o Templo é reconstruído. É um momento importante desta obra de reconstrução, a qual será energicamente prosseguida por dois judeus, altos funcionários da corte persa: Neemias (entre 445-433) e Esdras (398). Os dois livros, que levam os seus nomes, levantam um pouco o véu sobre um momento deste período, que continua muito obscuro; cf. «O período persa», in “Para uma primeira leitura da Bíblia”, Cadernos Bíblicos n.3, Difusora Bíblica, p. 37, por Étienne Charpentier]. Os autores sacerdotais utilizam, portanto, o nome arcaico de uma divindade venerada na Arábia, o qual, mesmo assim – e em pleno tempo de dominação persa − lhes permite construir uma História da Revelação. Fica assim comprovado que, num tempo muito anterior à aparição de YHWH a Moisés (Ex. 6), os patriarcas e as suas distintas linhagens – entre as quais se encontram as tribos árabes que descendem de Ismael, mas também as da união de Abraão com Quetura (Gn. 25) e as tribos edomitas que descendem de Esaú – veneravam diferentes manifestações do deus “El”.

A importância da menção de “El”[31] nos relatos patriarcais, bem como as distintas tentativas de o identificar com YHWH, poderia ser uma tentativa de manter viva a memória da veneração do deus “El”, sob a forma de diversas figurações, por parte dos ancestrais de Israel. E se as tradições ligadas a Jacob reflectem esta ‘memória de um grupo’ que venerou “El” e que mais tarde adoptou YHWH, então, poder-se-ia explicar desse mesmo modo a estreita relação entre Jacob e Edom, ainda que isto seja obviamente especulativo.

Para os investigadores que se interessaram pela fixação dos textos relativos às tradições dos patriarcas, sobretudo às de Jacob, a relação deste com Esaú (Edom) levantou sempre muitos problemas. Se se coloca a datação da história de Jacob no tempo da realeza israelita, torna-se difícil explicar a estreita relação entre Jacob (Israel) e Esaú (Edom) nessa época. Foi por isso que recentemente passou a fazer sentido situar as relações tensas – e, sem dúvida alguma, próximas − entre os dois irmãos na época babilónia ou persa, período em que Jacob passou a ser o antepassado – ‘antepassado’ num sentido teológico − de «todo o Israel» (incluindo, portanto, Judá). Teremos, então, que situar os relatos de hostilidade nessa época[32]?

A nossa investigação poderia apontar para uma solução diferente: se YHWH estava localmente relacionado com os «edomitas», então o vínculo entre Jacob e Esaú era possível que reflectisse um conhecimento sobre a adopção, por parte dos «filhos de Jacob», de um YHWH vinculado a «Esaú». Esta especulação foi em certa medida confirmada pelas inscrições de Kuntillet Ajrud, publicadas no relatório completo e final das escavações[33]. Nele encontramos igualmente um «YHWH da Samaria», ou seja, de Israel, e um «YHWH de Teman», ou seja, do sul.



6. Como imaginar a introdução de YHWH em «Israel»?

Partamos do princípio que havíamos localizado um deus YHWH numa montanha do território de Edom ou de Madian e que ele tivesse sido adoptado por um desses grupos a quem os egípcios chamavam shasu ou hapiru. Em tratados hititas do segundo milénio a.e.c. encontramos, em extensas listas de nomes de deuses, a expressão «os deuses dos hapiru», que corresponde ao genérico ‘elohe ‘ibrim («deus[es] dos hebreus»)[34] e que volta a aparecer nos textos bíblicos, sobretudo na narração do Êxodo 5,3: «Eles [os israelitas no Egipto] disseram: “O Deus dos hebreus manifestou-se-nos; permite que saiamos ao deserto, por três dias de caminho, para oferecermos sacrifícios a YHWH, nosso Deus, de modo a que ele não nos castigue com a peste ou a espada.”».

Este texto pressupõe a identificação de YHWH, aqui apresentado como um deus violento, com o deus dos hebreus. No entanto, é possível que, na sua origem, esta expressão quisesse designar uma ou várias divindades sem nome determinado, tal como pode ter acontecido com Moisés num momento em que YHWH o manda ir ter com os israelitas que estão no Egipto: «Eis que eu vou ter com os filhos de Israel e lhes digo: “O Deus dos vossos pais enviou-me a vós”. Eles dir-me-ão: “Qual é o nome dele?” Que lhes direi eu?» (Ex 3,13). Tudo indica que este deus dos hebreus possui um santuário no deserto e é um deus guerreiro e temível. A petição que eles fazem ao faraó em Ex 5,3 não se refere a uma partida definitiva, mas a uma espécie de permissão para poderem ir fazer sacrifícios a este deus. Será, então, esta expressão o reflexo da memória de um grupo de shasu/hapiru que tivesse conhecido YHWH durante uma estância no território de Madian/Edom?

O encontro entre este grupo e YHWH reflecte-se eventualmente na história da revelação do Sinai. Esse texto (Ex 19-24), que, na sua forma atual é muito recente, guarda a ideia de que, durante este encontro, os hebreus que tinham saído do Egipto se converteram no ‘am yhwh, ou seja, no «povo de YHWH». A expressão hebraica ‘am, traduzida por «povo», exprime igualmente um vínculo de parentesco muito forte: pode designar um clã ou conter conotações guerreiras, no sentido de «tropa», de «falange». É surpreendente que, nos relatos de encontro entre YHWH e Israel no capítulo 19 e nos do estabelecimento de uma Aliança entre YHWH e Israel no capítulo 24, se utilize sobretudo a expressão ‘am e muito pouco a de Israel para designar os destinatários da teofania e da Aliança.



Ex. 19: Moisés veio e chamou os anciãos do povo […] 8Todo o povo, unânime, respondeu, dizendo: «Tudo o que o YHWH disse a Moisés nós o faremos.» E Moisés transmitiu a YHWH as palavras do povo. 9YHWH disse a Moisés: «Eis que Eu venho ter contigo no coração da nuvem, para que o povo oiça quando Eu falar contigo […].» E Moisés transmitiu a YHWH as palavras do povo. 10YHWH disse a Moisés: «Vai ter com o povo, e fá-los santificar hoje […]; […] porque no terceiro dia YHWH descerá aos olhos de todo o povo sobre a montanha do Sinai. 12Põe limites ao redor do povo, […]» 14Moisés desceu da montanha ao encontro do povo. Ele santificou o povo, e eles lavaram as suas roupas. 15E disse ao povo: «Estai prontos para o terceiro dia. Não vos aproximeis de mulher alguma. (Dt 4,10-14; 5,1-5) - 16E eis que, no terceiro dia, ao amanhecer, houve trovões e relâmpagos e uma nuvem pesada sobre a montanha, e um som muito forte de trombeta, e todo o povo que estava no acampamento tremia. 17Moisés fez sair o povo do acampamento ao encontro de Deus, […] 21YHWH disse a Moisés: «Desce e adverte solenemente o povo para que não se precipite, a fim de ver YHWH; muitos deles morreriam. […] 23Moisés disse ao SENHOR: «O povo não pode subir à montanha do Sinai, […] 24 YHWH disse-lhe: «que os sacerdotes e o povo, porém, que não se precipitem em subir para YHWH, para que Ele não os fira.» 25Moisés desceu ao encontro do povo e comunicou-lhes tudo isto.

Ex. 24: 2[…] e o povo não subirá com ele.» 3Moisés veio e relatou ao povo todas as palavras de YHWH e todas as normas, e todo o povo respondeu a uma só voz, e disse: «Poremos em prática todas as palavras que YHWH pronunciou.» […] 7Tomou o Livro da Aliança e leu-o na presença do povo, […] 8Moisés tomou o sangue e aspergiu com ele o povo, dizendo: «Eis o sangue da aliança que YHWH concluiu convosco, mediante todas estas palavras.»



Esta utilização redundante da expressão ‘am (povo), que além do mais também se encontra em passagens atribuídas com frequência a diferentes «fontes» ou estratos, poderia provir de uma tradição pré-literária[35]. A partir daqui seria possível deduzir que o grupo que venerava o deus YHWH se chamava ‘am yhwh. Aparentemente, o ‘am yhwh constituiu-se mediante uma aliança, um pacto e um ritual de sangue 'exageradamente único' na Bíblia hebraica[36]. O ritual serve para criar um vínculo de sangue entre o «povo» e YHWH. Semelhantes rituais eram frequentes na Arábia pré-islâmica, tal como sublinha William Robertson Smith:

Na literatura árabe antiga encontramos numerosas referências a uma aliança de sangue, mas em vez do sangue humano utiliza-se o sangue de uma vítima sacrificada no santuário. O ritual implica que todos os que nessa aliança participam devem molhar as suas mãos no sangue, o qual também se espalha sobre as pedras sagradas que representam a divindade ou simplesmente é vertido na base da pedra[37].”

Estes textos do Êxodo poderiam conservar, pois, as memórias de um ritual através do qual o grupo dos shasu/hapiru se constituiu - através de um mediador - no ‘am Yhwh, no povo de um deus guerreiro a quem se atribui a vitória contra o Egipto. Este grupo, mais tarde, introduziu este deus YHWH na região de Benjamin e Efraim, onde se localizava Israel. É provável que no poema de Deuteronómio 33,2-5 ainda se reflictam memórias desse encontro: «YHWH veio do Sinai, amanheceu para eles no horizonte de Seir! Resplandeceu do monte Paran, […] Ele ama[38] o seu povo (‘am)[39]; […] Ele converteu-se em rei de Jechurun[40], quando se reuniram os chefes do povo com todas as tribos de Israel.» Este último versículo parece indicar uma espécie de reunião entre os chefes do ‘am yhwh e as tribos reagrupadas sob o nome de Israel. Os chefes do ‘am encontram-se com as tribos de Israel e YHWH converte-se, assim, no deus de Israel. Será que, nesta passagem, estamos perante a memória da passagem de YHWH a deus de Israel?

Tudo indica que esta promoção teve lugar nos começos da realeza, ou seja, na transição do segundo para o primeiro milénio antes da nossa era. Foi assim como YHWH se converteu num deus tutelar de Saúl e de David, David esse que depois o introduziu em Jerusalém.



Thomas Römer, «La Invención de Dios», Sígueme 2022, cap. 4, pp. 83-99.



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A RELIGIÃO



“Definir a Religião como a «crença em deuses» também levanta problemas. Costumamos dizer que um cristão devoto é religioso porque acredita em Deus, enquanto que um comunista fervoroso não é religioso, porque no comunismo não há deuses.

Porém, as religiões são criadas pelos humanos e não pelos deuses, e o que as define é a função social que desempenham e não a existência de divindades. Religiões são todas as histórias abrangentes que conferem uma ‘legitimidade sobre-humana’ às leis, às normas e aos valores humanos. As religiões legitimam as estructuras sociais humanas na medida em que se apresentam como originadas a partir de leis sobre-humanas.” (Yuval Noah Harari, «Homo Deus – História Breve do Amanhã», Elsinore-PRH Grupo Editorial Portugal, Lda, 162023, p. 204)



“A religião interessa-se acima de tudo pela ‘ordem’. O seu desiderato é o de criar e manter a estrutura social. Quanto à ciência, a esta interessa-lhe sobretudo ‘o poder’. Através da investigação, a ciência pretende adquirir o poder de curar doenças, evitar guerras e produzir alimentos. Como indivíduos, os cientistas e os sacerdotes podem conferir uma imensa importância à verdade. No entanto, como instituições colectivas, a ciência e a religião opõem a ordem e o poder à verdade. A procura intransigente da verdade só muito raramente poderá permanecer confinada às Instituições, sejam elas religiosas ou científicas” (Y. N. Harari, «Homo Deus, p. 223)



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“Hoje sabemos que as Religiões nem sempre existiram. Através das Ciências Humanas sabemos que os seres humanos viveram sem Religiões durante a maior parte da sua presença neste planeta. (…) As Religiões formaram-se no Neolítico. A partir do Neolítico e até aos tempos modernos, as sociedades foram fundamentalmente «religiosas». (…) podemos afirmar que as Religiões, com a sua estrutura ideológica e cultural que hoje conhecemos, surgiram durante o Neolítico com a sedentarização das populações, a agricultura, com a domesticação e criação de animais, com a propriedade privada, a acumulação de bens, a formação de riqueza e o poder que esta outorga. Todas estas transformações mais os inúmeros problemas que elas criaram (desigualdade, injustiça, exploração, delinquência, violência, etc.) exigiram que se introduzissem normas de conduta de modo a tornar viável a vida social. Naquela época, as Religiões contribuíram sobretudo com uma normativa social e política e só depois religiosa. (…) as Religiões não acrescentaram apenas normas de conduta e leis políticas que visavam regulamentar o comportamento moral e civil dos indivíduos, tornando assim possível uma convivência humana ordenada e relativamente pacífica: impuseram e reforçaram a observância dessas normas e leis dando-lhes a configuração de «mandamentos divinos», expressão da vontade divina, cuja desobediência provocaria castigo e rejeição por parte dos deuses (Código de Hamurabi; Tábuas da Lei ou os Dez Mandamentos dados por Deus a Moisés no Sinai). (…) Na época das Grandes Civilizações, ou seja, a partir do ano 5000 a.e.c., as Religiões já tinham adquirido a sua configuração típica de estruturas sagradas funcionando não apenas como intermediárias entre o ser humano e a divindade, mas sobretudo como porta-vozes das exigências e da vontade dos deuses. (…) A função normativa e reguladora que as Religiões desenvolveram no Neolítico contribuiu em grande medida para a consolidação da ‘autoridade’ e do ‘poder’.

(…) para pessoas ingénuas, temerosas, indigentes, continuamente ameaçadas e expostas a perigos (…), a Religião oferecia-lhes inúmeras histórias (narrativas mitológicas) que falavam de façanhas extraordinárias de heróis divinos procedentes do mundo dos céus (…) inacessíveis aos miseráveis mortais, mas que poderiam resgatar as angústias humanas de cá de baixo. Deste modo, as Religiões apresentam-se como uma estrutura organizativa, inventada por humanos, que possui autoridade e poder reconhecidos.

Ou seja, a Religião não vem de Deus, não é eterna e não se pode impor como autoridade última e absoluta. A Religião existe sempre em função do ser humano e para o ser humano, de modo que ele possa atravessar mais fácil e tranquilamente os desafios, as dificuldades e as obscuridades da existência: problemas e questões existenciais como é o caso do sentido da presença do ser humano neste mundo, o seu lugar e papel na ordenação global do Universo, os valores que deve perseguir, as razões da presença do mal e do sofrimento, como escapar das suas próprias limitações e da inexorabilidade do seu próprio fim, etc.” (Bruno Mori, «Por un cristianismo sin religión», NTA-4, pp. 45-48)



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RTP-PLAY, Canal 2 – Documentário «QUEM ESCREVEU A BÍBLIA»:

https://www.rtp.pt/play/p12193/qui-a-ecrit-la-bible

 

 

 

 



[1] M. Görg, «Israel in Hieroglyphen»: Biblische Notizen 106 (2001) 26; P. van der Veen et al., «Israel in Canaan. (Long) Before Pharaoh Merenptah? A fresh look at Berlin statue pedestal relief 21687»: Journal of Ancient Egyptian Interconnections 2 (2010) 24, n. 66. Outros relacionam o nome com a raiz «ser justo» ou também «proteger». Nota: Merenptah ou Merneptah, nome do 4º Faraó da IX Dinastia do Egipto Antigo.

[2] Cf. também Isaías 44,2.

[3] UT 2069:3 = KTU 4.623:3.

[4] P. R. Davis, «In Search of “Ancient Israel”», Shefield 1992, 57-58.

[5] O que, gramaticalmente, não deixa de levantar problemas. Os massoretas não colocaram (e deviam ter colocado…) um ‘et como marca do complemento directo…

[6] Cf. C. Lalouette, «L’Empire des Ramsès», Paris 2000 [1985], 267.

[7] Os «líbios» (tjehenu ou Tehenu) é uma expressão que designa os povos ocidentais e meridionais que marginam o vale do Nilo, pelo flanco Oeste.

[8] A expressão «nove arcos» é usada para referir os tradicionais inimigos do Egipto.

[9] Designa os hititas da Anatólia.

[10] Identificação incerta. O nome está atestado em vários documentos egípcios. Josué 16,6 menciona uma cidade chamada Janoa como fazendo fronteira com Efraim, mas não é seguro que possamos relacioná-la com o nome inscrito na estela egípcia. Aparentemente, Janoa designa uma região situada no norte da Palestina ou na Transjordânia (M. Weippert, «Historisches Textbuch zum Alten Testament», Göttingen 2010, 102, n. 136).

[12] Manfred Görg, «Weitere Beobachtungen und Aspekte zur Genese des Namens ‘Israel’»: Biblische Notizen 154 (2012) 57-68.

[13] Essa é a opinião do egiptólogo Yuri Volokhine, da Universidade de Genebra. O seu colega Thomas Schneider, da Universidade de San Diego, é mais categórico e considera que a relação com Israel é uma especulação sem fundamento. Agradeço a estes dois colegas os seus comentários e a ajuda.-

[14] L. D. Morenz, «Wortwitz – Ideologie – Geschichte: ‘Israel’ im Horizont Mer-en-ptahs»: Zeitschrift für die Alttestamentliche Wissenschaft 120 (2008) 1-13.

[16] K. L. Sparks, «Ethnicity and Identity in Ancient Israel. Prolegomena to the Study of Ethnic Sentiments and Their Expression in the Hebrew Bible», Winona Lake 1998, 105-108.

[18] O livro dos Juízes, ainda que contenha vários relatos de chefes carismáticos provenientes de diversas tribos de Israel, retrata a época anterior à monarquia como um período temporal sem poder centralizado nem permanente. (Anfictionia?)

[19] Estes livros, que estão muito ligados entre si pela mesma trama narrativa, são frequentemente designados como «Eneateuco».

[20] Esta estatística não faz distinção entre as ocasiões em que ‘El surge como nome próprio e as situações em que se utiliza ‘el como nome comum.

[21] Alusão a Jerusalém.

[22] Abraão chamava-se Abrão, até que muda o seu nome em Génesis 17.

[23] Este termo está ausente na Septuaginta, na versão siríaca e no apócrifo do Génesis de Qümran. É provável que o texto primitivo não contivesse o nome de YHWH e que tenha sido acrescentado por uns quantos copistas com a finalidade de afirmar a identidade entre YHWH e El.

[24] Na Bíblia, isto surge em Dt 32,8; Is 14,14; Salmo 9,3.

[25] A. Dupont-Sommer – J. Starcky, «Les inscriptions araméennes de Sfiré (Stèles I et II)»: Mémoires preséntés par différents savants à l’Académie des Inscriptions et Belles-Lettres 15 (1958) 197-351. Cf. Wikipedia: «The inscriptions may, under one possible interpretation, record the names of ‘El’ and ‘Elyon’, "God, God Most High" [o Altíssimo] possibly providing prima facie evidence for a distinction between the two deities first worshipped by the Jebusites in Jerusalem, and then elsewhere throughout the ancient Levant».

[26] Face A, linha 11; cf. a expressão paralela: «Shamash [sol] e Nur [luz]».

[27] KTU 1.16 III:5-8.

[28] E. A. Knauf, «El Saddai – der Gott Abrahams?», Bibblische Zeitschrift (1985) 97-105.

[29] F. Gröndahl, «Die Personennamen der Texte aus Ugarit», Roma 1967.

[30] KTU 1.108.12. Pode ser lido como: «El, no deserto, caça».

[31] Cf. também «El-Berit» («El do Contrato») em Juízes 9,46. Contudo, a versão primitiva da tradução grega escreve Baal, tal como em 8,33 e 9,4, v.2. E. A. Knauf, «Esau», Neues Bible-Lexikon 4 (1990), 5.

[32] E. A. Knauf, «Esau», Neues Bible-Lexikon 4 (1990), 587-588.

[34] Cf. «Ancient Near Eastern Texts relating to the Old Testament», 548.

[35] É isso que sugere K. Koch, «Jahwäs Übersiedlung vom Wüstenberg nach Kanaan. Zur Herkunft von Israels Gottesverständnis», in F. Hartenstein – M. Rösel (org.), “Der Gott Israels und die Götter des Orients: Religionsgeschichtliche Studien zum 80. Geburtstag von Klaus Koch”, Göttingen 2007, 171-209, mas, quanto ao referido aqui, cf. p. 194.

[36] «Moisés tomou metade do sangue e colocou-o em bacias, e metade do sangue espalhou-o sobre o altar. Tomou o Livro da Aliança e leu-o na presença do povo, que disse: «Tudo o que YHWH disse, nós o faremos e obedeceremos.» Moisés tomou o sangue e aspergiu com ele o povo, dizendo: «Eis o sangue da aliança que YHWH concluiu convosco, mediante todas estas palavras.» (Ex. 24,6-8).

[37] W. R. Smith, «Lectures on the Religion of the Semites: The Fundamental Institutions», Edinburgh 31927, 314. Smith «… created the ritualist theory of myth. Since Smith's time, the ritualist theory of myth has found adherents not only in biblical studies but in classics, anthropology, and literature as well. (…) Religion of the Semites combines extraordinary philological erudition with brilliant theorizing. Among the fundamental emphases of the book are the foci on sacrifice as the key ritual and non-ancient sacrifice as communion with God rather than as penance for sin. Most important is Smith's use of the comparative method: he uses cross-cultural examples from other "primitive peoples" to confirm his reconstruction from Semitic sources. Smith combines pioneering sociology and anthropology with a staunchly Christian faith. For him, Christianity is an expression of divine revelation. For Smith, only continuing revelation can account for the leap from the collective, ritualistic, and materialistic nature of ancient Semitic religion to the individualistic, creedal, and spiritualized nature of Christianity. Lectures on the Religion of the Semites manages to meld social science with theology, and remains a classic work in the social scientific study of religion.»

[38] O verbo aqui utilizado para «amar» é um hápax (h-b-b; cf. a palavra árabe Habib, «amigo»); na Bíblia, também é utilizado como nome próprio, «Hobab», para o sogro de Moisés ou como nome de um quenita, «Héber» (Números 10,29; Juízes 4,11).

[39] No texto massorético está no plural; na Septuaginta está no singular.

[40] Como já vimos atrás, ‘Jechurún’ é uma expressão poética do nome ‘Israel’.