teologia para leigos

25 de setembro de 2015

INDICADORES SOCIAIS, BEM-ESTAR E FELICIDADE - 3/3






COMO A DESIGUALDADE SE ENTRANHA NA PELE


«É bem certo que cada homem traz no olhar
a indicação exacta da posição que ocupa
na imensa escala dos homens.
E estamos sempre a aprender a ler esse olhar.»
(Ralph Waldo Emerson, «A Conduta da Vida»).


Como se explica que sejamos tão fortemente marcados pela desigualdade e pela nossa posição no seio da sociedade, como sugerem os dados apresentados no capítulo anterior [«Pobreza ou Desigualdade?»]? Antes de explorarmos — nos nove capítulos seguintes — as relações entre a desigualdade e uma ampla gama de problemas sociais, nomeadamente os problemas incluídos no nosso índice de problemas sociais e de saúde, tentaremos explicar por que razão os seres humanos são, provavelmente, tão sensíveis à desigualdade.

Como a desigualdade é um aspecto da estrutura ampla das sociedades, as explicações dos seus efeitos implicam mostrar como os indivíduos são afectados pela estrutura social. São as pessoas, e não as sociedades em si, que têm saúde deficiente, que são violentas e se tornam mães adolescentes. Embora as pessoas não usufruam de uma distribuição de rendimentos, dispõem, no entanto, de um rendimento relativo, de um estatuto social ou posição de classe na sociedade em geral. Por conseguinte, neste capítulo iremos mostrar como a nossa sensibilidade individual em relação à sociedade em geral explica por que razão as sociedades mais desiguais talvez tenham efeitos tão profundos.

Compreender a nossa vulnerabilidade à desigualdade implica discutir algumas das nossas características psicológicas comuns. Quando falamos ou escrevemos acerca destas questões, é muito frequente as pessoas interpretarem mal o nosso propósito. Não estamos a sugerir que o problema se reduz a uma questão de psicologia individual, nem que é realmente a própria sensibilidade das pessoas, e não a escala da desigualdade, que deveria ser mudada. A solução para os problemas causados pela desigualdade não radica numa psicoterapia em massa destinada a tornar todas as pessoas menos vulneráveis. A melhor forma de lidar com os danos causados por altos níveis de desigualdade seria reduzir a própria desigualdade. Em vez de se mandar dissolver medicamentos ansiolíticos no sistema público de abastecimento de água ou de recorrer a uma psicoterapia em massa, o elemento mais entusiasmante do quadro que apresentamos é que a redução da desigualdade aumentaria o bem-estar e a qualidade de vida de todos nós. Longe de ser inevitável e imparável, a sensação de deterioração do bem-estar social e da qualidade das relações sociais na sociedade é, de facto, reversível. Compreender os efeitos da desigualdade implica implementar medidas políticas imediatas para fomentar o bem-estar das sociedades como um todo.

Os poderosos mecanismos que tornam as pessoas sensíveis à desigualdade não são passíveis de ser compreendidos apenas em termos de estrutura social ou de psicologia individual. A psicologia individual e a desigualdade social relacionam-se uma com a outra como uma chave e uma fechadura. Uma das razões por que os efeitos da desigualdade não foram anteriormente compreendidos de forma adequada deve-se ao fracasso em compreender a relação entre ambos os factores.


O aumento da ansiedade

Tendo em conta o conforto material e a comodidade física sem precedentes das sociedades modernas, talvez seja sensato adoptar um certo cepticismo em relação à forma como todas as pessoas falam do stresse, como se a vida fosse dificilmente suportável. No entanto, Jean Twenge, uma psicóloga da Universidade Estadual de San Diego, compilou provas impressionantes de que somos hoje realmente muito mais ansiosos do que costumávamos ser. Ao analisar o vasto número de estudos sobre os níveis de ansiedade na população realizados em datas diferentes, foi capaz de documentar tendências muito claras. Descobriu 269 estudos amplamente comparáveis que mediam os níveis de ansiedade nos EUA em vários períodos entre 1952 e 1993[1]. O conjunto desses estudos abrangeu mais de 52 mil indivíduos e revelou uma contínua tendência ascendente ao longo desse período de quarenta anos. Os resultados de Jean Twenge para os homens e para as mulheres são apresentados na figura 3.1. Cada ponto no gráfico mostra o nível médio de ansiedade apurado num estudo posterior à data da sondagem efectuada. A tendência ascendente presente em tantos estudos é inequívoca. Twenge descobriu o mesmo padrão tanto em estudantes universitários como em crianças: o estudante universitário médio estava no final desse período mais ansioso do que 85% da população no início desse mesmo período; e, mais impressionante ainda, no final da década de 1980 a criança norte-americana média estava mais ansiosa do que as crianças que eram pacientes psiquiátricos na década de 1950.

Estas provas resultaram da aplicação de medidas padronizadas da ansiedade às amostras da população. E não podem ser facilmente explicadas dizendo que as pessoas se tornaram mais conscientes da ansiedade. Esta tendência de agravamento também se encaixa nos resultados relativos a condições médicas similares como a depressão. A depressão e a ansiedade estão intimamente relacionadas: as pessoas que sofrem de uma também sofrem amiúde da outra e os psiquiatras tratam por vezes as duas condições médicas de forma similar. Existe hoje um enorme conjunto de estudos que mostram aumentos substanciais nas taxas de depressão nos países desenvolvidos. Alguns estudos analisaram as mudanças ocorridas ao longo dos últimos cinquenta anos por via da comparação das experiências das diferentes gerações, mas tentando sempre evitar a armadilha de atribuir essa maior consciência da depressão ao número crescente de relatos relativos a estados de depressão[2]. Outros investigadores compararam as taxas incluídas em estudos que acompanharam amostras representativas da população nascida em anos diferentes. Na Inglaterra, por exemplo, a taxa da depressão entre pessoas com cerca de 25 anos era o dobro da taxa de depressão num estudo de cerca de 10 mil nascidas em 1970 em comparação com um estudo similar realizado anteriormente entre pessoas com cerca de 25 anos nascidas em 1958[3].

As análises das investigações concluíram que em muitos países desenvolvidos as pessoas experienciaram aumentos substanciais na ansiedade e na depressão. Entre os adolescentes, a ansiedade e a depressão vinham também acompanhadas de aumentos na frequência de problemas comportamentais – nomeadamente criminalidade, alcoolismo e toxicodependência[4],[5]. Estes problemas afectavam adolescentes do «sexo masculino e feminino de todas as classes sociais e de todos os tipos de famílias»[6].

É importante compreender o que significam estes aumentos na taxa de ansiedade antes de a sua relevância se tornar clara para a desigualdade. Não estamos a sugerir que tais aumentos foram desencadeados pelo aumento da desigualdade. Essa possibilidade pode ser descartada, porque os aumentos nas taxas de incidência da ansiedade e da depressão parecem ter começado muito antes dos aumentos na desigualdade que ocorreram em muitos países durante o último quarto do século XX. (É no entanto possível que as tendências de 1970 e 1990 possam ter sido agravadas pelo aumento da desigualdade.)


Auto-estima e insegurança social

Uma pista importante sobre os factores subjacentes às tendências na saúde mental provém de provas que referem que tais factores vieram acompanhados de um aumento surpreendente naquilo que de início se pensou ser a auto-estima. Quando comparadas ao longo do tempo (muito à semelhança da forma como as tendências na ansiedade são mostradas na figura 3.1), as medidas-padrão da auto-estima revelaram também uma clara tendência ascendente a longo prazo. Como se, apesar dos crescentes níveis de ansiedade, as pessoas também estivessem a encarar-se de forma mais positiva no decurso do tempo. Por exemplo, havia mais probabilidades de se afirmarem orgulhosas de si próprias; de concordarem com afirmações como «Sou uma pessoa com valor»; e pareciam ter posto de lado questões de insegurança pessoal e sentimentos de que eram pessoas «inúteis» ou «sem nenhum valor». Twenge refere que na década de 1950 apenas 12% dos adolescentes concordavam com a afirmação «Sou uma pessoa importante», mas que, no final da década de 1980, esta proporção tinha subido para 80%.






Sendo assim, o que teria acontecido durante esse período intermédio entre as décadas de 1950 e 1980? O facto de as pessoas (…)»

Richard Wilkinson & Kate Pickett, in «O Espírito da Igualdade – por que razão sociedades mais igualitárias funcionam quase sempre melhor», Editorial Presença 1ª Edição Lisboa, Abril 2010.

Richard Wilkinson – professor de História Económica e de Epidemiologia [Universidade de Nottingham/Medical School e na University College London]
Kate Pickett – antropóloga-bióloga, cientista em Nutrição e em Epidemiologia [professora na Universidade de York, investigadora no National Institute for Health Research]


[pp. 15]






[1]  J. M. Twenge, «The age of anxiety? Birth cohort change in anxiety and neuroticism, 1952-1993», Journal of Personality and Social Psychology (2007), 79 (6): 1007-21.
[2] M. Rutter e D. J. Smith, «Psychosocial Disorders in Young People: Time Trends and Their Causes», Chincester: Wiley, 1995.
[3] S. Collishaw, B. Maughan, R. Goodman e A. Pickles, «Time trends in adolescent mental health», Journal of Child Psychology and Psychiatry (2004), 45 (8): 1350-62.
[4] Ibidem, M. Rutter e D. J. Smith, «Psychosocial Disorders in Young People: (…)
[5] B. Maughan, A. C. Iervolino e S. Collishaw, «Time trends in adolescent mental disorders», Current Opinion in Psychiatry (2005), 18 (4): 381-5.
[6] Ibidem, S. Collishaw, B. Maughan, R. Goodman e A. Pickles, «Time trends in adolescent mental health», (…)

18 de setembro de 2015

INDICADORES SOCIAIS, BEM-ESTAR E FELICIDADE - 2/3



POBREZA OU DESIGUALDADE?


«A pobreza não se reduz a uma determinada pequena quantidade de bens,
nem a uma simples relação entre meios e fins;
é acima de tudo uma relação entre pessoas.
A pobreza é um estatuto social…
E tem crescido
como uma distinção discriminatória entre as classes…»

MARSHALL SAHLINS, «STONE AGE ECONOMICS»



[…] A visão de que os problemas sociais são directamente causados por más condições materiais, tais como habitações degradadas, dietas pobres, ausência de oportunidades escolares e assim por diante, pressupõe que as sociedades mais desenvolvidas e mais ricas funcionam melhor do que as outras. Mas esta visão está muito longe de ser verdadeira: alguns dos países mais ricos funcionam pior ainda.

É notável que estes indicadores dos problemas sociais e de saúde em dois cenários diferentes, e do bem-estar da criança em dois países ricos, narram todos praticamente a mesma história. Os problemas nos países ricos não são causados pelo facto de a sociedade não ser suficientemente rica (nem sequer por ser demasiado rica), mas sim pelo facto de a escala das diferenças materiais entre pessoas no seio de cada sociedade ser demasiado grande. O que é relevante é a posição que cada um ocupa em relação aos outros no seio de cada sociedade.

Obviamente que, mesmo nos países mais ricos, uma pequena proporção das pessoas menos ricas não dispõe, por vezes, de dinheiro suficiente para se alimentar. Contudo, sondagens relativas aos 12,6% dos Norte-Americanos a viverem abaixo da linha da pobreza federal (um nível de rendimento absoluto e não um padrão relativo como metade do rendimento médio) revelam que 80% possuem ar condicionado, quase 75% possuem pelo menos um carro ou uma carrinha e cerca de 33% têm um computador, uma máquina de lavar louça ou um segundo carro. Isso significa que quando as pessoas não têm dinheiro para comprar coisas essenciais, como p. ex. comida, essa falta de dinheiro é geralmente um reflexo da força do seu desejo de viver à altura dos padrões prevalecentes na sociedade. As pessoas podem sentir, por exemplo, que é mais importante manter as aparências e gastar dinheiro em roupa do que investir na alimentação. Conhecemos um caso de um jovem que estava desempregado e tinha gasto o seu rendimento mensal num telemóvel novo porque, segundo ele, as raparigas não faziam caso daqueles que não tivessem os acessórios certos. Tal como Adam Smith frisou, é importante sermos capazes de nos apresentar de forma credível na sociedade sem incorrer na vergonha e no estigma da pobreza aparente.

No entanto, e tal como o gradiente da saúde afecta todos os escalões da sociedade, também as pressões da desigualdade e de tentar viver à altura dos padrões sociais prevalecentes não se confinam a uma minoria que é pobre. Pelo contrário, os efeitos encontram-se generalizados na população, como veremos mais adiante.


Problemas diferentes – causas comuns

Os problemas sociais e de saúde que descobrimos estarem relacionados com a desigualdade tendem a ser tratados pelos responsáveis políticos como se estivessem bastante separados uns dos outros, necessitando cada um soluções e serviços separados. Pagamos a médicos e a enfermeiros para tratar os problemas de saúde, pagamos à polícia e às prisões para lidar com a criminalidade, a educadores terapeutas e a psicólogos escolares para lidar com problemas educativos, a assistentes sociais, a centros de reabilitação de toxicodependentes, a serviços psiquiátricos e a especialistas de saúde para lidar com toda uma série de outros problemas. Todos estes serviços são dispendiosos e apenas parcialmente eficazes. Por exemplo, as diferenças na qualidade dos cuidados médicos têm menos peso na esperança de vida das pessoas do que as diferenças sociais nos riscos de contraírem alguma doença potencialmente fatal. E mesmo quando os vários serviços conseguem impedir que alguém volte a reincidir ou quando conseguem curar um cancro, reabilitar um toxicodependente ou lidar com um insucesso escolar, sabemos que as nossas sociedades continuam a recriar infinitamente estes problemas, geração após geração. Entretanto, todos estes problemas são mais comuns nas áreas mais carenciadas da nossa sociedade e são muito mais comuns ainda nas sociedades desiguais.


O que nos diz a desigualdade de rendimentos?

Antes de continuarmos a analisar, nos capítulos seguintes, de que modo a escala das diferenças de rendimento pode estar relacionada com outros problemas, deveríamos dizer algumas palavras sobre o que pensamos que as diferenças de rendimento nos revelam acerca de uma sociedade. Os seres humanos viveram já em todos os tipos de sociedade, desde as sociedades pré-históricas de caçadores-recolectores mais igualitárias até às ditaduras mais plutocráticas. Embora as modernas sociedades de mercado não pertençam a nenhum destes extremos, é razoável supor que existam diferenças no seu grau de hierarquização. Acreditamos que é precisamente isto o que a desigualdade está precisamente a medir: nas sociedades em que as diferenças de rendimento são maiores, também as distâncias sociais são maiores e a estratificação social é mais importante.

Seria profícuo dispor de muitos indicadores diferentes relativos à escala de hierarquização nos diferentes países que permitissem assim comparar as desigualdades, não só de rendimento mas também na saúde, na educação e no poder. Também seria interessante verificar como todas estas desigualdades estão relacionadas com distâncias sociais, com indicadores de estatuto, como a escolha que as pessoas fazem do vestuário, música e filmes, ou como a importância da hierarquia e da posição social. Embora no futuro talvez venhamos a dispor de indicadores adicionais que possam ser comparados entre países, de momento só podemos contar com a desigualdade de rendimentos. Mas o mais surpreendente é a quantidade de informação que este indicador nos revela quando analisado separadamente. […]

Richard Wilkinson & Kate Pickett, in «O Espírito da Igualdade – por que razão sociedades mais igualitárias funcionam quase sempre melhor», Editorial Presença 1ª Edição Lisboa, Abril 2010, Depósito Legal nº 307 171/10. E-mail: info@presença.pt

Richard Wilkinson – professor de História Económica e de Epidemiologia [Universidade de Nottingham/Medical School e na University College London]
Kate Pickett – antropóloga-bióloga, cientista em Nutrição e em Epidemiologia [professora na Universidade de York, investigadora no National Institute for Health Research]


[pp. 16]




11 de setembro de 2015

INDICADORES SOCIAIS, BEM-ESTAR E FELICIDADE - 1/3



O FIM DE UMA ERA



«Nestas condições é que eu penso no grande poder da riqueza,
que nos permite receber os hóspedes e salvar-nos na doença.
Mas também serve para a nutrição de cada dia,
porque toda a criatura humana, seja pobre ou seja rica,
se sacia da mesma maneira.»

EURÍPEDES, "ELECTRA"





É um paradoxo notável que, no auge da realização material e técnica, continuemos a ser assolados pela ansiedade, sujeitos à depressão, preocupados com a opinião que os outros têm de nós, inseguros das nossas amizades, impelidos a consumir, e com pouca ou nenhuma vida comunitária. Faltando-nos o contacto social descontraído e a satisfação emocional de que todos precisamos, procuramos a consolação comendo em excesso, fazendo compras e gastando de forma obsessiva ou tornando-nos vítimas do consumo excessivo de álcool, de medicamentos psicoactivos e de drogas ilegais.

Como criámos um tal sofrimento mental e emocional apesar dos níveis de riqueza e conforto sem precedentes em outros períodos da história humana? É muito frequente sentirmos, sobretudo, falta de tempo para o passar na companhia dos amigos, mas até esse simples prazer pode parecer-nos inalcançável. Falamos como se as nossas vidas fossem uma batalha constante pela sobrevivência psicológica, sempre a combater o stresse e o esgotamento emocional, mas a verdade é que o luxo e a extravagância das nossas vidas são tão acentuadas que ameaçam a própria existência do planeta.





Uma investigação do Instituto Harwood para a Inovação Pública (encomendada pela Fundação Família Merck) nos EUA revela que as pessoas sentem que o «materialismo» se interpõe de alguma forma entre elas e a satisfação das suas necessidades sociais. Um relatório intitulado Yearning for Balance [Ansiando pelo Equilíbrio], baseado numa sondagem nacional realizada nos EUA, conclui que os Norte-Americanos eram «profundamente ambivalentes em relação à riqueza e aos ganhos materiais»[1]. Uma grande maioria das pessoas desejava que a sociedade «se afastasse da ganância e do excesso e favorecesse um tipo de vida mais centrado nos valores, na comunidade e na família». Mas essas pessoas também sentiam que estas prioridades não eram partilhadas pela maioria dos seus concidadãos norte-americanos, que, segundo elas, se tinham tornado «cada vez mais fragmentados, egoístas e irresponsáveis». E, em resultado disso, sentiam-se muitas vezes isolados. No entanto, o relatório refere também que, quando as pessoas se juntavam em grupos de discussão para debater estas questões, ficavam «surpreendidas e entusiasmadas ao verificar que os outros partilhavam das suas opiniões». Em vez de nos unirmos uns aos outros numa causa comum, a ansiedade que sentimos em relação à perda dos valores sociais e à forma como somos impelidos a procurar ganhos materiais é muitas vezes vivida como se fosse uma ambivalência puramente privada que nos separa dos outros.

As políticas vigentes já não se debruçam sobre estas questões e desistem de tentar fornecer uma visão comum capaz de nos motivar a criar uma sociedade melhor. Como eleitores, já perdemos de vista qualquer crença colectiva de que a sociedade poderá ser diferente. Em vez de uma sociedade melhor, a única coisa que quase todos nós ansiamos por alcançar é melhorar a nossa própria posição – como indivíduos – no seio da sociedade existente.

O contraste entre o sucesso material e o insucesso social existente, em muitos países ricos, é um indicador muito importante, pois sugere que, se quisermos alcançar mais melhorias na verdadeira qualidade da vida, então precisamos de deixar de focar a nossa atenção nos padrões materiais e no crescimento económico, e concentrarmo-nos, antes, nas formas de melhorar o bem-estar psicológico e social das sociedades como um todo. No entanto, assim que se menciona algum factor psicológico, a discussão tende a concentrar-se quase exclusivamente em formas individuais de remediação e tratamento. Quanto a este aspecto, o pensamento político falha rotundamente.

É possível compor, hoje em dia, um quadro novo, convincente e coerente de como podemos libertar as sociedades da pesada influência de tantos comportamentos disfuncionais. Uma melhor compreensão daquilo que está a acontecer poderia transformar a política e a qualidade de vida de todos nós. Poderia mudar a forma como vivemos a experiência do mundo à nossa volta, a nossa intenção de voto e aquilo que exigimos aos dirigentes políticos.

Neste livro demonstramos que a qualidade das relações sociais numa sociedade baseia-se em alicerces materiais. A escala das diferenças de rendimento tem um efeito poderoso na forma como nos relacionamos uns com os outros. Em vez de culparmos os pais, a religião, os valores, a educação ou o sistema penal, demonstraremos que a escala da desigualdade fornece uma poderosa alavanca política que afecta o bem-estar psicológico de todos nós. Assim como outrora foram necessários estudos sobre o aumento de peso em bebés para mostrar que a interacção com um prestador da cuidados carinhoso é crucial para o desenvolvimento da criança, de igual forma também foram necessários estudos sobre as taxas de mortalidade e da distribuição de rendimentos para mostrar as necessidades sociais dos adultos e indicar como as sociedades poderiam satisfazê-las.

Muito antes do surgimento da crise financeira que começou a impor-se nos meses finais de 2008, políticos ingleses que estavam a debater o declínio da comunidade ou o aumento de várias formas de comportamento antissocial referiam-se, por vezes, àquilo que denominavam «a nossa arruinada sociedade». O colapso financeiro desviou as atenções para a economia arruinada e, embora a sociedade arruinada fosse por vezes culpabilizada pelo comportamento dos pobres, a economia arruinada foi largamente atribuída aos ricos. Estimulados pelas perspectivas de salários e bónus cada vez mais elevados, os administradores de algumas das instituições financeiras mais dignas de confiança lançaram a cautela às urtigas e construíram castelos de cartas que só conseguiam manter-se de pé no âmbito da protecção de uma fina bolha de especulação. Mas a verdade é que tanto a sociedade arruinada como a economia arruinada resultaram do crescimento da desigualdade.


O que nos sugerem as provas

Iremos começar por salientar as provas que demonstram que estamos a chegar ao fim daquilo que o crescimento económico pode fazer por nós. A melhor forma de promover a qualidade de vida humana foi, durante milhares de anos, melhorar os padrões de vida material. Quando o lobo rondava e nunca estava muito longe da porta, "bons tempos" eram simplesmente tempos de fartura, abundância. Mas para a vasta maioria dos habitantes dos países ricos, as dificuldades da vida já não têm a ver com encher o estômago, dispor de água limpa e manter-nos quentes. A maior parte de nós actualmente deseja comer menos, curiosamente, e não mais. E, pela primeira vez na História, os pobres são, em média, mais gordos que os ricos. O crescimento económico, que foi durante muito tempo o grande motor do progresso, alcançou largamente as suas metas nos países ricos. Não só os indicadores de (…).



Richard Wilkinson & Kate Pickett, «O Espírito da Igualdade – porque razão sociedades mais igualitárias funcionam quase sempre melhor», Editorial Presença 1ª Edição Lisboa, Abril 2010, Depósito Legal nº 307 171/10. E-mail: info@presença.pt

Richard Wilkinson – professor de História Económica e de Epidemiologia [Universidade de Nottingham/Medical School e na University College London]
Kate Pickett – antropóloga-bióloga, cientista em Nutrição e em Epidemiologia [professora na Universidade de York, investigadora no National Institute for Health Research]


[pp. 12]







[1] The Harwood Group, «Yearning for Balance: Views of Americans on Consumption, Materialism, and the Environment». Takoma Park, MD: Merck Family Fund, 1995.