teologia para leigos

29 de fevereiro de 2012

JESUS É DEUS? 1/2

Pretende-se apresentar esta obra e aguçar o apetite aos teólogos. E, porque não, aos «leigos em terra de cegos…» como eu!?

I/II





Os primeiros cristãos prestaram culto a Jesus?

 
A pergunta

A característica fundamental que distingue e define o cristianismo reside no estatuto que se concede ou se reconhece a Jesus. Tal facto constitui também o obstáculo principal no diálogo inter-religioso entre cristãos e judeus, bem como entre cristãos e muçulmanos. Os judeus e os muçulmanos, muito simplesmente, não podem aceitar o estatuto divino de Jesus como Filho de Deus, estatuto que os cristãos, no entanto, consideram fundamental para a sua fé. A concepção de Deus como Trindade desconcerta-os. Considerar que Jesus é um ser divino, digno de ser destinatário de culto como Deus é, constitui, para eles, uma clara rejeição da unicidade de Deus. Ou seja, eles pensam que se trata mais de uma forma de politeísmo que de monoteísmo. E, a bem dizer, são inúmeros os cristãos que consideram desconcertante a concepção de Deus como Trindade. A não ser no âmbito das categorias filosóficas gregas que o vocábulo pressupõe, confessar a fé na Trindade, servindo-se da expressão «essência» (ou «substância»), não tem a mais pequena importância para a maioria dos que dizem ou proclamam o credo niceno-constantinoplitano; e, dado o significado que actualmente tem o conceito «pessoa», a distinção entre «pessoas», na natureza divina, faz com que se entenda Deus de uma forma mais triteísta que trinitária, ou seja, como um ser formado por três «pessoas» individuais e diferentes.

Diante de isto, talvez seja útil olhar retrospectivamente o começo do processo que desembocou na formulação da doutrina cristã da Trindade e clarificar, assim, a verdadeira razão que levou que se confessasse Jesus como Filho de Deus recorrendo às categorias trinitárias. Os termos ‘essência/substância’ e ‘pessoa’ foram, seguramente, escolhidos com muito cuidado e o seu uso foi sendo apurado à custa de todas as controvérsias suscitadas pelo exacto estatuto que Jesus tinha, as quais sacudiram os primeiros séculos do cristianismo. Ora, o que se passa é que para a maioria dos cristãos e para aqueles que participam no diálogo inter-religioso tornar-se-ia realmente muito difícil recuperar e apreciar essas subtilezas sem se deixar submergir intensamente nos debates filosóficos da antiguidade (só entendíveis por uma minoria) altamente consumidores de tempo. Sendo assim, talvez seja mais proveitoso ir investigar mais para lá (para trás) desse processo que deu, ao cristianismo, as fórmulas do credo e procurar fazer uma análise mais exaustiva do seu começo, isto é, fazer a pergunta sobre o que aconteceu e o pôs em marcha, porque razão os cristãos quiseram falar de Jesus com terminologia que se aplicava à divindade e o que foi que os levou a prestar culto a Jesus como se fosse Deus.

O título do livro é, certamente, controverso e isso foi intencional já que o tema o é, em si mesmo, inevitavelmente controverso também: ‘os primeiros cristãos prestaram culto a Jesus? A resposta que a maioria dos cristãos está disposta a dar imediatamente é a seguinte: “Claro que sim”. E se desejassem aduzir algum testemunho como prova disso podiam recorrer rapidamente a uma das cenas finais do evangelho de João, aquela em que Tomé, um dos doze apóstolos, se dirige ao Ressuscitado, dizendo-lhe: “Meu Senhor e meu Deus” [Jo 20:28], isto é, usando uma confissão de fé que pressupunha que se lhe rendia culto. Igualmente, poderia citar o grande poema ou hino que Paulo escreveu na Carta aos Filipenses, que culmina proclamando que todos os joelhos no céu e na terra se dobrem e que toda a língua confesse que Jesus Cristo é Senhor [Fl 2:10-11]. Ou poderia recorrer ao Apocalipse, onde o vidente contempla milhares de anjos cantando com voz forte: «Digno é o Cordeiro, que foi imolado, de receber o poder e a riqueza, a sabedoria e a força, a honra, a glória e o louvor.» [Ap 5:11-12]. Não há dúvida que os primeiros cristãos prestaram culto a Jesus.

Mas, ao mesmo tempo, não se pode excluir ou ignorar o elemento que suscita a controvérsia, pois o Novo Testamento inclui também relatos nos quais o próprio Jesus censura a ideia de que se possa dar culto a alguém que não Deus. Ora, aquando do relato das Tentações, quando Satanás lhe diz que lhe dê culto, Jesus responde-lhe explicitamente: «Darás culto ao Senhor teu Deus e só a Ele servirás» [Mt 4:10; Lc 4:8].  A seguinte questão tem, inevitavelmente,  que ser colocada: «Jesus teria igualmente censurado os que tentassem prestar-lhe culto?». Outras passagens recordam-nos que Jesus afirmava a alteridade singular que é exclusiva de Deus. Por exemplo, quando alguém, que busca a vida eterna, se lhe dirige chamando-o de ‘bom mestre’, Jesus responde-lhe: «Porque me chamas de ‘bom’? Só Deus é ‘bom’» [Mc 10:17-18]. Mais uma vez se nos coloca a inevitável questão: «Teria, Jesus, aceite que o considerassem um ser igual a Deus?». Vejamos um outro exemplo, desta vez de Paulo. Uma característica impressionante e que define as suas cartas é a sua habitual referência a Jesus como Senhor, pelo que, como veremos, é o título que com mais claridade reconhece o estatuto divino de Jesus. Sem dúvida, em várias passagens, Paulo fala também de Deus como “o Deus… de nosso Senhor Jesus Cristo” [Rm 15:6; 2Cor 1:3; 11:31; Cl 1:3; Ef 1:3.17; cf também 1 Pe 1:3]. Deus é o Deus de Jesus, inclusivamente, de Jesus como Senhor.

É evidente que os aspectos ligados aos testemunhos neo-testamentários têm que ser analisados com mais exaustão, mas existem, também, outros dados que procedem inclusivamente da primeira ou da segunda geração cristã, que exigem que lhes prestemos atenção se realmente queremos dar uma resposta a uma questão aparentemente simples como é a de saber se os primeiros cristãos prestaram culto a Jesus. Porém, convém que advirtamos desde já que, para responder à pergunta, não bastará que citemos umas quantas passagens. Temos que admitir que o caminho que leva a ela pode tornar-se difícil ou mais desafiante do que pareceria à primeira vista, e que a resposta não é assim tão simples como pressupúnhamos.

Aqueles que estão familiarizados com o debate recente à volta deste tema estão bem conscientes da importante contribuição de eminentes especialistas do Reino Unido. Larry Hurtado (Edimburgo) publicou uma série de estudos nos quais desenvolve a tese de que o culto a Jesus se praticava poucos anos depois do começo do cristianismo (que não se trataria de um desenvolvimento tardio do cristianismo primitivo) e num contexto de devoção exclusiva ao único Deus, tal como a Bíblia defende. [L. W. Hurtado, Lord Jesus Christ: Devotion to Jesus in Earliest Christianity, Eerdmans, Grand Rapids 2003; o objectivo de Hurtado é «demonstrar que deram a Cristo os tipos de devoção que podemos interpretar adequadamente como uma adoração cultual plena, e que podemos descrever correctamente o culto cristão das primeiras décadas como um culto autenticamente ‘binitário’. Dito de outro modo, sustento que, nesta fase surpreendentemente antiga, o culto cristão possui dois destinatários, Deus e Cristo, ainda que os primeiros cristãos se entendem a eles mesmos como monoteístas e não pensem que incluir a Cristo na sua vida de piedade comprometa de modo algum a unicidade do Deus único ao que se converteram mediante o Evangelho.»]

Neste mesmo período, Richard Bauckham (anteriormente, professor no St. Andrews University, Escócia) tem desenvolvido um raciocínio deveras impressionante mediante o qual demonstra que, praticamente desde o começo do cristianismo judeo-palestiniense, Jesus foi venerado como alguém que partilhava ou estava incluído na identidade singular do Deus único de Israel (“monoteísmo cristológico”) [R. Bauckham, Jesus the God of Israel, Paternoster, Milton Keynes 2008; «O predomínio da centralidade do culto dado a Jesus no cristianismo primitivo a partir duma data precoce foi frequentemente desvalorizado tal como a importância disso para compreender o desenvolvimento da cristologia».]

A relevância que, quer Hurtado, quer Bauckham, dão ao culto (ou devoção cultual) a Jesus no cristianismo primitivo e a importância que os dois conferem à prática e à experiência real disso na configuração e na definição da cristologia dos primeiros cristãos, provocaram em mim o desejo de realizar um estudo centrado nesta questão capital: «Os primeiros cristãos prestaram culto a Jesus Atrevo-me a entrar no debate, não tanto porque esteja em desacordo com Hurtado e Bauckham – na verdade, coincidimos substancialmente na interpretação da maioria dos textos e nos temas em discussão –, mas porque me preocupa que seja assegurado o quadro de conjunto e que não se omitam os textos que têm muito maior complexidade e que, eventualmente, podem entrar em choque com os textos de base que configuraram as perspectivas dos dois autores. Se, no final, todo o material que compaginarmos conduz a respostas (à nossa questão central) do género “sim, de facto, mas reparem também que…” e não apenas a um simples e categórico “sim”, então é importante que não se assobie para o ar ou se ignore. É lógico e compreensível que desejemos encontrar um resumo nítido ou uma explicação simples sobre estas profundezas, contudo é provável que a verdade sobre Deus (incluindo o “monoteísmo cristológico”) se esquive a uma expressão tão diáfana. Tendo isso em mente, devemos estar abertos a essa possibilidade, já que, ao contrário, podemos correr o risco de pensar que conseguimos exprimir real e adequadamente o inexprimível.

O alcance da nossa investigação é muito limitado – limitado, principalmente, à primeira geração cristã (incluindo em particular, inevitavelmente, Paulo) −, reconhecendo, contudo, que não podemos excluir o resto do Novo Testamento. Mesmo assim, será um grande desafio, sobretudo porque tentaremos ouvir como foram escutados (e como se supunha que deveriam ter sido escutados) estes textos pelos seus primeiros destinatários, antes que aquela voz chegasse a ser afogada pelo modo como foram escutadas os textos no turbilhão das controvérsias havidas entre os séculos II e IV.

Avançaremos do seguinte modo:

1.   Necessitamos de saber se o «culto» se devia somente a Deus (ou aos deuses). Precisamos de definir o que é o culto e se o culto oferecido a Deus (ou a um deus) é o que o(a) define como “Deus” ou “deus”/”deusa”.
2.   Precisamos de perguntar que consequências tinha prestar culto ao Deus de Israel. Que significado tinha «prestarás culto ao Senhor, teu Deus, e somente a Ele servirás»?
3.   Já que o culto é a resposta humana àquilo que é percebido como auto-revelação de Deus, indagaremos como é que esta auto-revelação era entendida em Israel e na religião na qual se formou Jesus e, bem entendido, os primeiros cristãos (que eram todos judeus).
4.   Enfrentaremos a questão de saber se Jesus era monoteísta. Jesus afirmou a unicidade de Deus tal como a sua ancestral religião insistia?
5.   Analisaremos a convicção de que Deus exaltou Jesus à sua direita, e o modo como isso contribuiu para o seu reconhecimento como ser divino. Que sentido tinha isso para os primeiros cristãos? Terá implicado uma redefinição e uma recolocação da questão da natureza de Deus e uma nova apreciação acerca do estatuto de Jesus?


Espero deixar bem claro que os primeiros cristãos não prestaram culto a Jesus em alternativa ao culto de Deus, mas que aquele era um modo de prestar culto a Deus, ou seja, que o culto a Jesus é apenas possível e aceitável dentro daquilo que actualmente concebemos como marco trinitário. Não é cristão prestar culto a Jesus que não seja um culto a Deus mediante Jesus, ou, dito com mais rigor, um culto a Deus mediante Jesus no Espírito. (…)


James D. G. Dunn, director emérito da Cátedra Lighfoot do Departamento de Teologia da Universidade de Durham (Inglaterra)

“Dieron culto a Jesus los primeros cristianos? Los testimonios del Nuevo Testamento”, Verbo Divino, Estella (Navarra) 2011, Espanha. ISBN 978-84-9945-234-0  [pp.7-13]



28 de fevereiro de 2012

JESUS É DEUS? 2/2

Pretende-se apresentar esta obra e aguçar o apetite aos teólogos. E, porque não, aos «leigos em terra de cegos…» como eu!?


II/II





Os primeiros cristãos prestaram culto a Jesus?

 
Resultados


Os resultados deste estudo são assombrosos.

Em primeiro lugar, Jesus de Nazaré existiu historicamente. Foi executado no período de tempo em que viveu a maioria dos autores que escreveram os livros do Novo Testamento. Teve uma grande influência como profeta e mestre excepcional durante a sua missão. Os seus seguidores pensaram que ele era o Messias que Israel ansiosamente esperava, mas ao mesmo tempo estavam convencidos de que a ressurreição aguardada para os finais dos tempos tinha acabado de acontecer nele e que Deus o havia exaltado à sua direita. Consideraram-no o seu Senhor e não duvidaram em atribuir-lhe aquilo que diversas passagens das Escrituras haviam atribuído somente ao Senhor Deus. Invocavam o seu nome na súplica e na oração. Associaram-lhe as funções que os sábios e os teólogos de Israel tinham atribuído à Sabedoria e à Palavra de Deus, inclusivamente, aquelas funções que tinham tido como agentes divinos no acto da criação; a personificação fez-se pessoa em Cristo. Atribuíram-lhe a efusão do Espírito e seu poder vivificante. O vidente do Apocalipse teve visões sobre o culto universal dado ao Cordeiro. Aplicou-se-lhe o título ou a posição de Deus/deus.

Mas, em segundo lugar e ao mesmo tempo, os seus seguidores recordavam que este personagem não era outro senão Jesus de Nazaré, que compartilhava com eles o mesmo credo monoteísta, que proibia que se prestasse culto a quem quer que seja que não fosse Deus e que orava a Deus como expressão da sua necessidade e dependência face a Deus. Consideravam que Jesus exaltado era o mediador através do qual se abeiravam de Deus, aquele em cujo nome e mediante o qual davam graças e glória a Deus, aquele que sentado à direita de Deus intercedia por eles. Reconheciam que Deus continuava a ser o Deus de Jesus, inclusivamente, o Deus de Jesus enquanto Senhor. É provável que lhe tivessem aplicado deliberadamente as metáforas da Sabedoria e do Logos, como extensão e reelaboração criativa das imagens expressivas usadas pelos sábios e teólogos de Israel, como fruto de uma «mutação», na expressão de Hurtado. De igual modo, a aplicação de theos tinha uma restrição semelhante, ou seja, pretendia afirmar que Deus era sempre maior do que aquilo que se poderia ver em Jesus e através dele. Em suma, Jesus é o último Adão mas também Senhor, mediador e Salvador, o que orava por eles e aquele cujo nome invocavam.

Mas as nossas descobertas não se resumem adequadamente a estes dois tipos de listagem aparentemente divergentes, pois a impressão geral com que ficamos, depois da nossa investigação, é que Jesus era entendido como a encarnação da cercania do próprio Deus; que Jesus era, num sentido real, o próprio Deus abeirando-se da humanidade; que, enquanto Senhor, Jesus participava plenamente no único senhorio de Deus; que, à semelhança da Sabedoria e da Palavra, e como Sabedoria e Palavra deveria ser entendido como sendo o próprio Deus dando-se a conhecer aos seus; que o Espírito de Deus deveria ser reconhecido, a partir de agora, como Espírito de Cristo. Tal como nos dois primeiros capítulos vimos que Cristo era, para os primeiros cristãos, o meio e o caminho através do qual podiam chegar a Deus, agora provamos que se foi consolidando a impressão de que também o viram como o meio e o caminho através do qual Deus se aproximava imensamente da humanidade. Jesus, enquanto mediador, mediava nas duas direcções: não somente em direcção a Deus, mas também a partir de Deus. Jesus era para eles a síntese e a encarnação divina.

Ao apresentar os nossos dados diante da pergunta fundamental que fazemos a nós próprios, ou seja, se os primeiros cristãos prestaram culto a Jesus, a resposta que se impõe parece ser negativa, ou seja, eles não sentiam que deviam prestar culto a Jesus em si mesmo, nem por si mesmo. Jesus não tinha que ser destinatário de culto como se ele fosse totalmente Deus ou como se ele se identificasse plenamente com Deus, nem muito menos por ser um deus.

A sua veneração entendia-se como culto prestado a Deus n’Ele e mediante Ele, o culto de Jesus-em-Deus e de Deus-em-Jesus. E, por conseguinte, o monoteísmo cristão, se quer ser monoteísmo verdadeiro, tem que continuar a afirmar que só Deus, só o  Deus único, deve ser o destinatário do culto. No conjunto das religiões monoteístas, a especificidade cristã encontra-se na sua afirmação de que a Deus se presta o mais efectivo culto em Jesus e mediante Jesus, e, num sentido real, mas definitivamente inquantificável, como (revelado em) Jesus.


A resposta

A investigação clarificou uma série de questões importantes que contribuíram para responder à pergunta fundamental sobre se os primeiros cristãos prestaram culto a Jesus.

O primeiro ponto é que existem alguns problemas e, inclusivamente, alguns perigos no culto cristão se este se definir com excessiva simplicidade como um culto prestado a Jesus. Porque se dermos como sério aquilo que emerge desta investigação, como consequência aparecerá, como evidente, que ele pode degenerar naquilo que poderíamos denominar uma ‘jesuolatria’, ou seja, não simplesmente um culto a Jesus, mas um culto que nele não será referido ao Deus único e ao Pai de Nosso Senhor Jesus Cristo.

Utilizo o termo ‘jesuolatria’ num sentido paralelo ou próximo de ‘idolatria’. Tal como os profetas de Israel advertiram várias vezes, o desastre da idiolatria acontece quando o ídolo é visto como o deus ao qual se deve prestar culto, de modo que o ídolo substitui o deus, ocupa o lugar de Deus e o culto devido a ele é absorvido pelo primeiro. O perigo da jesuolotria é parecido: Jesus substitui Deus, ocupa o lugar único do Criador e absorve o culto que só se deve a ele. Eis o perigo que ajuda a explicar porque é que o Novo Testamento se refere a Jesus usando o termo “ícone” (eikõn): o ícone do Deus invisível. O longo debate que se produziu no cristianismo do Oriente deixou claro o quanto importante é distinguir entre ídolo e ícone. O ídolo é uma imagem na qual o olho se fixa, é um muro sólido no qual o culto chega e aí termina. O ícone, por seu turno, é uma janela que o olho atravessa, uma janela através da qual se pode ver o que está para além dela, através da qual se pode vislumbrar a realidade divina. Por conseguinte, o perigo de um culto convertido predominantemente num culto a Jesus acontece quando o culto a Deus se detém em Jesus e se afoga e curto circuita a revelação de Deus através de Jesus e do próprio culto que mediante ele se dá a Deus. Por isso, uma das mais destacadas personalidades (e teólogo) dos começos do movimento carismático no Reino Unido escreveu um livro intitulado ‘The Forgotten Father’. [T. A. Smail, The Forgotten Father, Hodder & Stoughton, Londres 1980; «Existe uma jesuologia que pode ofertar um amor muito humano a um Jesus muito humano e reenviar Deus para uma transcendência tão remota que nos voltaremos a encontrar com a ideia que temos que nos agarrar a um Jesus bondoso que nos justifique face a um Deus longínquo e talvez enfadonho… Orar a Jesus em vez de fazê-lo, mediante Ele, ao Espírito, em vez de orar em Ele, como é tão habitual entre nós, aumenta a nossa desconfiança no Pai» (p.169). Hurtado expressa uma preocupação semelhante com o culto que confunde Deus com Jesus [‘Origins’, pp. 103-106] e conclui dizendo: «O culto verdadeiro a Jesus é o culto ao único Deus mediante Jesus Cristo que o revelou de um modo único»]. Devemos ir adiante tendo em conta esta advertência.

Dito de outro modo, na valorização que o Novo Testamento faz de Jesus ocorre tal gama de matizes que a pergunta sobre se os primeiros cristãos prestaram culto a Jesus pode facilmente ficar obscurecida. O Jesus cujo nome é invocado na oração é também o Jesus que intercede pelos seus. O Jesus que é Senhor e imagem de Deus é também o último Adão e o modelo com quem se conformam os crentes, o irmão maior na família da nova criação. O Jesus mediante o qual Deus se fez francamente mais próximo da humanidade é também o Jesus mediante o qual os que prestam culto se aproximam de Deus: ele é o mediador.

Um segundo ponto que deve assinalar-se trata do tema que lhe corresponde, a saber, se o culto a Jesus constitui uma negação da reivindicação que o cristianismo faz de ser uma religião monoteísta. Como já dissemos na introdução («a pergunta»), as outras duas grandes religiões monoteístas, o Judaísmo e o Islão, fazem essa crítica ao culto cristão. Mas, tal como foi ficando claro ao longo desta investigação, a concepção de Deus como uno, a concepção da unidade de Deus, não é assim tão fácil de definir como pressupõem essas críticas. A Unidade ou a unicidade de Deus não é uma simples unidade matemática. Um conhecimento mínimo das matemáticas, desde a antiguidade até ao presente, será suficiente para lembrar que o conceito de ”número” é mais complexo do que provavelmente parece à primeira vista, uma vez que vai além duma mera contagem de maçãs e laranjas, euros e cêntimos. Recordemos, por exemplo, que quando Paulo fala do corpo de Cristo insiste em que o corpo é uno, que o corpo constitui uma unidade, mas igualmente sublinha que o corpo é formado por numerosos e diversos membros.

 A unicidade não é necessariamente uma entidade singular em todos os elementos que a tornam una, que constituem a sua unicidade. Dito de outro modo, uma entidade singular pode ser demasiado grande ou demasiado complexa (o cosmos, por exemplo) para que possa ser abarcada na sua singularidade. Tudo quanto se pode perceber são aspectos diferentes, aspectos que não se podem integrar num só (por exemplo, na física fundamental ninguém conseguiu até agora construir uma teoria de campo unificado); pois bem, as insuficiências da nossa conceptualização não constituem uma negação da singularidade da entidade. Do mesmo modo, não se deveria dar por assente que a unicidade de Deus se pode definir como uma unidade matemática no seu sentido estrito.

Desde que Israel conceptualizou a unicidade de Deus também se admitiu a diversidade de modos segundo os quais ele se dava a perceber ou se dava a conhecer. O Deus único deu-se a conhecer na, ou mediante a forma angélica, deu-se a conhecer como Espírito, como Sabedoria ou como Palavra sem minguar em nada a sua alteridade, a sua transcendência, o seu ser como Deus único. Por conseguinte, as definições de monoteísmo, da unicidade de Deus, não devem ser formuladas tão estritamente ao ponto de excluir a reflexão que sobre este tema encontramos na Bíblia hebraica ou no Antigo Testamento e no Judaísmo primitivo. O cristianismo pode sempre justificar que a sua valorização de Jesus começa com essa reflexão e se desenvolve a partir dela, mas sem pôr em causa o monoteísmo cuja realidade complexa essa reflexão tratava de explicar, por mais inadequada que seja e por mais permeável que estivesse a uma interpretação errónea do monoteísmo que queria defender.

Um terceiro ponto que emergiu é que a reflexão cristã sobre a importância e a posição de Jesus surge a partir do magno esforço, por parte do cristianismo, em dar uma resposta ao modo como se poderia atravessar o abismo existente entre o divino e o humano. Cada uma a seu modo, todas as religiões são tentativas de afirmar que é possível atravessar o abismo infinito entre o Criador e a criação e de mostrar o modo como isso pode ser feito. Em cada uma delas jogam um papel essencial o lugar e o tempo sagrado, a liturgia e o ritual, as escrituras e as personagens sagradas (sacerdotes e legisladores, profetas e sábios). Mas o cristianismo deu um salto para a frente ao declarar que Deus cruzou o abismo, não só na escritura e no templo, nem somente graças ao sacerdote e ao profeta, mas num indivíduo determinado mediante o qual se revelou e que se constitui em ponte sobre o abismo. Os judeus e os muçulmanos continuam a pensar que esta afirmação vai longe demais, mas os cristãos sustentam que nunca se revelou tão plena e profundamente a natureza de Deus como em Jesus – na sua missão, na sua brutal morte de cruz, na sua ressurreição e exaltação. A morte de Jesus levou a que os cristãos sentissem a necessidade de falar dum Deus que sofre – até dum “Deus crucificado” −, de que Deus conhece, a partir de dentro, a debilidade e as tentações da condição humana e pode, portanto, apoiar as pessoas e os povos nos seus desconcertos e nas suas dúvidas, nas tribulações e sofrimentos. Esta concepção acerca do modo de atravessar o abismo é demasiado controversa para que outras religiões a aceitem, mas é a contribuição que o cristianismo oferece para a resolução da angústia e do enigma existencial que se encontra na raiz de todas elas. Os cristãos sentem tal confiança no facto de, em Jesus e mediante Jesus, Deus se ter revelado com tal claridade, que recomendam esta concepção ao mundo mais vasto das religiões como sendo a visão mais profunda acerca da realidade divina à qual a humanidade pode aceder.

À luz desta reflexão e desta conclusão pode dar-se o caso que a pergunta se ‘os primeiros cristãos prestaram culto a Jesus’ seja menos relevante, menos importante e seja potencialmente enganadora. A ela pode-se responder de forma simples ou de forma simplista, com desdém ou com uma resposta essencialmente negativa. Em termos gerais, os primeiros cristãos não prestaram culto a Jesus como tal. É certo que o vocabulário e a realização de culto surgem aplicados, em certas ocasiões, no Novo Testamento a Jesus, mas, tendo em conta o conjunto na sua totalidade, constata-se uma certa reserva especial face a este tema. Cristo é sobretudo o tema dos louvores e dos hinos, o conteúdo do culto cristão primitivo, mais do que o destinatário do culto e do louvor.  Mais frequente (na investigação) é a convicção de que o culto mais efectivo (o único?) ou a oração mais efectiva realiza-se em Cristo e mediante ele, o que também quer dizer que encontramos uma clara convicção (a qual se expressa de formas várias) de que Jesus é quem torna possível o culto, isto é, que Jesus é, num sentido profundo, o lugar e o meio através do qual se leva a cabo o culto. Assim, ficou claro que os primeiros cristãos não concebiam Jesus somente como aquele através do qual chegavam a Deus, mas também aquele através de quem Deus havia chegado aos crentes. Mesmo a convicção de que Deus se expressava imanentemente no Espírito, na Sabedoria e na Palavra isso também foi experienciado de forma muito mais plena em Cristo e através dele. Ele trouxe a presença divina até à experiência humana de modo muito mais pleno, de um modo jamais conhecido até então.

Por conseguinte, pode-se – e talvez se deva – responder com um «não» à nossa pergunta fundamental, mas nunca se o resultado é um culto menos adequado a Deus, na medida em que o culto que o cristianismo representa e que constitui a sua contribuição específica ao diálogo religioso, é o culto a Deus tal como o tornou possível Jesus, isto é, o culto a Deus tal como se revela em Jesus e mediante ele. O cristianismo continua a ser uma religião monoteísta, na medida em que afirma que o único destinatário do culto é Deus. Mas, como podem os cristãos recusar a honra àquele mediante o qual crêem que o Deus único se revelou mais plenamente, àquele mediante o qual o Deus único se acercou radicalmente da condição humana?

Jesus não pode deixar de estar presente no culto, nos hinos de louvor e nas petições dirigidas a Deus. Mas este culto é e deve ser sempre oferecido para a glória de Deus Pai. Este culto é e deve oferecer-se sempre com o reconhecimento de que Deus é tudo em todos e de que a grandeza do Senhor Jesus exprime e afirma a grandeza do Deus único com uma claridade que qualquer outra realidade do mundo não é capaz.


James D. G. Dunn, director emérito da Cátedra Lighfoot do Departamento de Teologia da Universidade de Durham (Inglaterra)

“Dieron culto a Jesus los primeros cristianos? Los testimonios del Nuevo Testamento”, Verbo Divino, Estella (Navarra) 2011, Espanha. ISBN 978-84-9945-234-0 [pp.180-188]



27 de fevereiro de 2012

O DEUS DE JESUS DE NAZARÉ

antigo 'Mercado do Anjo'_Porto
Em que Deus acreditava Jesus?


 
Introdução

«Antes de começar a narrar a actividade profética de Jesus, Marcos escreve estes breves versículos: "O Espírito levou Jesus para o deserto. Ficou no deserto quarenta dias deixando-se tentar por Satanás; vivia entre as feras, e os anjos serviam-no". [Marcos 1:12-13] Essas breves linhas são um resumo das experiências básicas vividas por Jesus até a sua execução na cruz.» [J.A. Pagola]

Primeira questão: que «espírito» é esse? Hoje, século XXI, pensamos imediatamente em «espíritos», em magia, em forças imateriais obscuras que podem condicionar a vontade dum ser humano e sujeitá-la a inevitabilidades.

Mas Jesus é um judeu nascido no caldo cultural (político, económico e religioso) que o Antigo Testamento nos revela. Jesus foi educado e sensibilizado para a história do seu povo. Nela, Deus ocupa um espaço único. Mas que Deus é esse? Provavelmente, a mãe de Jesus lho ensinou: um Deus terno, materno!, mas não ingénuo… Os tempos não eram fáceis e a mãe de Jesus, aliás, como todas as mães, colocou-o de sobreaviso: ‘Cuidado com Herodes, com o império romano e os revoltosos: chacinam-se uns aos outros, meu filho! Cuidado com os padres e os bispos! Cuidado com os ricos e os religiosos fanáticos! Vê lá o queres da tua vida!’ Jesus amadureceu observando meticulosamente a realidade à sua volta, comparando as alternativas ao que via, ouvindo os velhos sábios, escapando-se para fora do seu pequeno mundo rural, por exemplo, visitando um afamado profeta do deserto, de nome João, que apelava a uma «mudança radical de vida» - João Baptista. Foi assim – de modo multifactorial! − que Jesus configurou o seu «espírito», o seu «projecto de vida». ‘Retomar o anúncio dos Profetas de Israel!’, provavelmente terá sido o impulso íntimo de Jesus, opção tomada alagado em suores frios. Jesus deixou-se tomar pela profecia a partir das entranhas.

Mas o que é que estava por trás de tal decisão? Com base em quê se terá começado a desenvolver tal convicção em Jesus? Que pressupostos o antecedera? Ou será que Jesus foi um fenómeno sui generis?


A denúncia dos «profetas»

Quando, em Israel, a realeza se corrompeu e a injustiça se tornou insuportável, entraram em cena os profetas, que levantaram a voz contra a acumulação de capital em poucas mãos, contra a ostentação insultuosa do poder instalado:

«Ai de vós os que juntais casas e mais casas, e que acrescentais campos e mais campos, até que não haja mais terreno, e até que fiqueis os únicos proprietários em todo o país! Aos meus ouvidos chegou este juramento do Senhor do universo: «As suas muitas casas  serão arrasadas, os seus palácios magníficos ficarão desabitados» [Isaías 5:8-9]

Os profetas gritavam contra a redução do povo à miséria na sequência do enriquecimento das classes poderosas:

«Ouvi isto, vós que esmagais o pobre e fazeis perecer os desvalidos da terra,  dizendo: «Quando passará a Lua-Nova, para vendermos o nosso trigo, e o sábado, para abrirmos os nossos celeiros, diminuindo o efá, aumentando o siclo e falseando a balança para defraudar? Compraremos os necessitados por dinheiro e o pobre por um par de sandálias, e venderemos até as alimpas do nosso trigo.» O Senhor jurou contra a soberba de Jacob: «Não esquecerei jamais nenhuma das suas obras.» [Amós 8:4-7]

Especialmente dura é a profecia de Amós contra as senhoras aristocráticas que viviam rodeadas de riqueza e luxo:

«Ouvi esta palavra, vacas de Basan, que viveis na montanha da Samaria, vós, que oprimis os fracos e maltratais os pobres, vós, que dizeis a vossos maridos: «Traz e bebamos!» O Senhor Deus jurou pela sua santidade: «Eis que virão dias, para vós, em que vos arrastarão com ganchos, e à vossa posteridade, com arpões.» [Amós 4:1-2] (‘Basan’, fértil planalto na região oriental do Jordão de pastos famosos – cf. Miqueias 7:14; Jeremias 50:19; Naum 1:4 – onde pastava gado bem cevado – cf. Ezequiel 39:18)

Os profetas não poupavam em críticas os próprios juízes corruptos que se deixavam subornar pelos culpados, condenando os inocentes:

«Por isso, tornam-se ricos e poderosos; apresentam-se nédios e bem nutridos. Ultrapassam mesmo os limites do mal. Não procedem de acordo com o direito, não defendem a causa do órfão e não fazem justiça em favor dos pobres! Como não hei-de punir tais crimes e não me hei-de vingar de um povo como este? - oráculo do Senhor.» [Jeremias 5:28-29]

Os profetas denunciavam quando se anulavam as velhas leis feitas para proteger os pobres e se editavam novas leis para beneficiar os poderosos:

«Ai dos que decretam leis injustas, e dos que redigem prescrições opressoras, dos que afastam os pobres do tribunal, e zombam dos direitos dos fracos do meu povo, fazendo das viúvas a sua presa e roubando os bens dos órfãos! Que fareis vós no dia do ajuste de contas, quando o furacão vier de longe? A quem acudireis em busca de auxílio, e onde escondereis as vossas riquezas?» [Isaías 10:1-3]

Os profetas afirmavam que se perverteu a finalidade da justiça que passou a estar ao serviço da injustiça:

«Porventura correm os cavalos por entre os rochedos? Ou pode lavrar-se o mar com bois? Entretanto, converteis o direito em veneno, e o fruto da justiça em absinto (=’amargura’).» [Amós 6:12]

Os profetas chegaram ao extremo de dizer que Deus prefere a mispãtjustiça LAICA, inter-humanos – ao culto!

«De que me serve a mim a multidão das vossas vítimas?- diz o Senhor. Estou farto de holocaustos de carneiros, de gordura de bezerros. Não me agrada o sangue de vitelos, de cordeiros nem de bodes. Quando me viestes prestar culto, quem reclamou de vós semelhantes dons, ao pisardes o meu santuário? Não me ofereçais mais dons inúteis: o incenso é-me abominável; as celebrações lunares, os sábados, as reuniões de culto, as festas e as solenidades são-me insuportáveis. Abomino as vossas celebrações lunares, e as vossas festas; estou cansado delas, não as suporto mais. Quando levantais as vossas mãos, afasto de vós os meus olhos; podeis multiplicar as vossas preces, que Eu não as atendo. É que as vossas mãos estão cheias de sangue. Lavai-vos, purificai-vos, tirai da frente dos meus olhos a malícia das vossas acções. Cessai de fazer o mal, aprendei a fazer o bem; procurai o que é justo, socorrei os oprimidos, fazei justiça aos órfãos, defendei as viúvas.» [Isaías 1:11-17]

O profeta Amós clamava no mesmo sentido:

«Eu detesto e rejeito as vossas festas;e não sinto nenhum gosto nas vossas assembleias (‘religiosas’). Se me ofereceis holocaustos e oblações (‘oferendas religiosas’), não as aceito, nem ponho os meus olhos nos sacrifícios das vossas vítimas gordas. Afastai de mim o vozear dos vossos cânticos, não quero ouvir mais a música das vossas harpas. Antes, jorre a equidade como uma fonte, e a justiça como torrente que não seca.» [Amós 5:21-24; cf. Miq 6:6-8; Os 6:6]

Por fim, no célebre «Sermão do Templo», o profeta Jeremias apostrofava nestes termos aqueles que entravam no templo do Senhor:

«Coloca-te à porta do templo do Senhor e proclama aí este discurso: «Escutai a palavra do Senhor, habitantes de Judá, que entrais por estas portas para adorar o Senhor. Assim fala o Senhor do universo, o Deus de Israel: ‘Endireitai os vossos caminhos e emendai as vossas obras e Eu habitarei convosco neste lugar. Não vos fieis em palavras de mentira, dizendo: 'Templo do Senhor, templo do Senhor! Este é o templo do Senhor'. Mas, se endireitardes os vossos caminhos e emendardes as vossas obras, se verdadeiramente praticardes a justiça uns com os outros, se não oprimirdes o estrangeiro, o órfão e a viúva, nem derramardes neste lugar o sangue inocente, se não seguirdes, para vossa desgraça, deuses estrangeiros, então, Eu permanecerei convosco neste lugar, nesta terra que dei desde sempre e para sempre a vossos pais. Contudo, eis que vos enganais a vós mesmos, confiando em palavras vãs (‘orações’), que de nada vos servirão. Roubais, matais, cometeis adultérios, jurais falso, ofereceis incenso a Baal e procurais deuses que vos são desconhecidos;  e depois, vindes apresentar-vos diante de mim, neste templo, onde o meu nome é invocado, e exclamais: 'Estamos salvos!' Mas seguidamente voltais a cometer todas essas abominações. Porventura, este templo, onde o meu nome é invocado, é a vossos olhos, um covil de ladrões? Ficai sabendo que Eu vi todas estas coisas - oráculo do Senhor.» [Jeremias 7:2-11]

É curioso verificar que em nenhum destes textos existe qualquer “predicção do futuro”. Porém, para o comum dos mortais, ‘profeta’ é alguém que é capaz de prever o futuro, alguém que adivinha o porvir. Profeta é uma palavra que advém de ‘phemi’, ‘dizer’. Mas, o advérbio ‘pró’ que o precede não significa ‘antes’ (no sentido temporal; ‘antes que ocorra’), mas no sentido de ‘em vez de’ (‘na vez de outro’). É um ‘pró’ substitutivo, como acontece em pronome, procurador, proconsul, etc. Portanto profeta é «alquele que fala em vez doutro», neste caso, «fala na vez de Deus», «fala por Deus», é Deus que fala na fala humana!

Isto é determinante!
A relevância teológica dos profetas de Israel não está no conteúdo das suas denúncias, mas pelo facto de serem feitas em nome de Deus! Recordemos os famosos estribilhos: «palavra de Deus», «oráculo do Senhor», «assim disse o Senhor», etc. (das 230 vezes que estes estribilhos aparecem na Bíblia, em 221 vezes surgem nos livros proféticos)

«Existem reivindicações sociais fora do âmbito da Bíblia. O que nelas impressiona é que não se tratam propriamente de profetismo. Nem no autor egípcio das «Lamentações do camponês», nem em Hesíodo tal se atribui a inspiração profética. Essas lamentações e essas críticas emanam de reflexões e de experiências puramente humanas. Nelas, os deuses são invocados unicamente a título de testemunhas ou de árbitros. Não são os deuses os inspiradores da indignação e da rebeldia que, dentro das suas almas, os escritores e os poetas experimentam. (…) Na Antiguidade, a justiça sempre foi uma conquista do espírito laico, uma conquista da razão[André Neher, La esencia del profetismo, Sígueme, Salamanca 1975, p. 49]

O profeta não fala por iniciativa própria: antes de tudo, interiorizou a vontade divina. Deus disse a Ezequiel (3:10-11): «Filho de homem, todas as palavras que Eu te disser, guarda-as no teu coração, escuta-as com toda a atenção. Levanta-te e vai ter com os deportados, os teus compatriotas. Fala com eles e diz-lhes: ‘Assim fala o Senhor Deus’».

A Bíblia expressa esta assimilação da mensagem divina com o símbolo da logofagia. O que o profeta proclama não são opiniões suas. Primeiro, necessita de «comer» a palavra de Deus para a converter em substância própria: só depois disso é que pode falar. Ezequiel tinha que comer um rolo escrito: «Tu, porém, filho de homem, escuta o que te digo. Não sejas rebelde como aquela gente rebelde. Abre a boca e come o que te vou dar. (…) «Disse-me: «Filho de homem, come aquilo que te é apresentado, come este manuscrito e vai falar à casa de Israel.» [Ez 2:8;3:] Jeremias dizia o mesmo: «Quando eu encontrava as tuas palavras eu as devorava; as tuas palavras eram para mim pura delícia e a alegria do meu coração.» [Jer 15:16]

Um judeu estudioso do profetismo definiu assim o símbolo da logofagia: «Uma análise das declarações proféticas mostram-nos que a experiência fundamental do profeta é a sua comparticipação com os sentimentos de Deus, uma simpatia com o pathos divino, uma comunicação com a consciência divina». [Abraham J. Heschel, Los profetas, t. 1, Paidós, Buenos Aires 1973, p.71] Isto quer dizer que o profeta faz uma experiência mística profunda. Durante uma experiência de arrebatamento místico [Ap 4:1-2], João, porém não um místico desenraizado das lutas políticas («irmão na perseguição» sob o império romano; Ap 1:9), afirma que ouviu uma voz do céu a dizer-lhe: “Vai toma o livro e come-o. Ele vai amargar-te nas entranhas, mas na tua boca será doce como o mel” [Ap 10:8-11]. No Pentateuco se diz, por três vezes, que Deus falava com Moisés «cara a cara, como um homem fala com o seu amigo». [Ex 33:11; Dt 34:10; Nm 12:8]  E foi, precisamente, essa intimidade com Deus que fez de Moisés um profeta por antonomasia. Cinco séculos depois da sua morte, diz o livro do Deuteronómio (34:10): «Nunca mais surgiu em Israel um profeta semelhante a Moisés, com quem o Senhor falava face a face.»

Jesus nasceu neste caldo cultural (religioso e político) de penúria espiritual, carente de líderes proféticos. Conheceu João Baptista, que o não satisfez totalmente, e decidiu-se a começar sozinho. Primeira decisão: regressou à sua região, voltou ao norte e fez de Cafarnaúm o seu ponto de referência. Virou as costas à capital politico-religiosa (Jerusalém) e aos ascetas do deserto (João Baptista e Qümran). Optou por viver perto dos mais pobres, dos camponeses e pescadores.


Jesus de Nazaré, esperança para os pobres

Logo no início, os evangelhos sinópticos dizem o que vêm anunciar: a «Boa Notícia de Jesus Cristo, o Filho de Deus» (Marcos 1:1); a «Boa Notícia do Reino» (Mateus 4:23); a «Boa Notícia do Reino de Deus» (Lucas 4:43).

A mãe de Jesus diz como sente essa «boa notícia»: Deus «Manifestou o poder do seu braço e dispersou os soberbos. Derrubou os poderosos de seus tronos e exaltou os humildes. Aos famintos encheu de bens e aos ricos despediu de mãos vazias.» [Lucas 1:51-53], apetitosas «expressões para o lápis vermelho de qualquer censor». [JI González Faus]

E, Jesus, na Sinagoga de Nazaré (sua terra natal), diz de si mesmo ‘trago comigo o espírito de Deus que quero compartilhar’: «Segundo o seu costume, entrou em dia de sábado na sinagoga e levantou-se para ler. Entregaram-lhe o livro do profeta Isaías e, desenrolando-o, deparou com a passagem em que está escrito: «O Espírito do Senhor está sobre mim, porque me ungiu para anunciar a Boa-Nova aos pobres; enviou-me a proclamar a libertação aos cativos e, aos cegos, a recuperação da vista; a mandar em liberdade os oprimidos, a proclamar um ano favorável da parte do Senhor.» Depois, enrolou o livro, entregou-o ao responsável e sentou-se. Todos os que estavam na sinagoga tinham os olhos fixos nele. Começou, então, a dizer-lhes: «Cumpriu-se hoje esta passagem da Escritura, que acabais de ouvir.» Todos davam testemunho em seu favor e se admiravam com as palavras repletas de graça que saíam da sua boca. Diziam: “Não é este o filho de José?”» [Lucas 4:18-19]

Depois desta cena, as coisas não tardaram a complicar-se para Jesus: «Acrescentou, depois: «Em verdade vos digo: Nenhum profeta é bem recebido na sua pátria. Posso assegurar-vos, também, que havia muitas viúvas em Israel no tempo do profeta Elias, quando houve uma grande seca durante três anos e seis meses e por isso houve uma grande fome em toda a terra; contudo, Elias não foi enviado a nenhuma delas, mas sim a uma viúva que vivia em Sarepta de Sídon. Havia muitos leprosos em Israel, no tempo do profeta Eliseu, mas nenhum deles foi purificado senão (um ateu, um pagão) o sírio Naaman.» Ao ouvirem estas palavras, todos, na sinagoga, se encheram de ódio (contra Jesus, claro!). E, erguendo-se, lançaram-no fora da cidade e levaram-no ao cimo do monte sobre o qual a cidade estava edificada, a fim de o matarem. Mas, passando pelo meio deles, Jesus seguiu o seu caminho.» [Lc 4:24-30]

O Deus de Jesus é o mesmo Deus dos Profetas do Antigo Testamento: prefere os pagãos, os excluídos! O «espírito» que repousa, agora, em Jesus é o mesmo Espírito de Deus que sempre tentou intervir na história da humanidade para proteger os fracos e alentar os sem-valor, para colocar o dedo na ferida do povo, para fazer o diagnóstico certeiro da doença.

Porque é que, na Sinagoga de Nazaré, os responsáveis se encheram de ódio contra Jesus? Porque Jesus não leu todo o texto do profeta Isaías: pura e simplesmente, recusou-se a ler o versículo que destilava «condenação», o versículo que revelava um deus vingativo, juiz implacável, um deus algoz: «anunciar o dia da vingança da parte do nosso Deus» [Isaías 61:2b], o qual, no Dia do Juizo Final, deveria cair sobre todos os que tivessem cometido pecados. Jesus saltou este versículo… Com este gesto insolente e revolucionário, Jesus quiz dizer que não vinha anunciar vinganças divinas (religiosas), mas acolhimento e libertação humanos (laicos)!

Mais uma vez, o Espírito de Jesus está em concordância com o Espírito dum Deus Misericordioso, um Deus bom para todos, sem barreiras nem estigmas, um Deus inimigo do ódio, mas denunciador dos odiosos (para seu bem…), um Deus tolerante, excepto para os intolerantes!, um Deus que faz cair a chuva sobre bons e maus. [Mateus 5:43-48: «…vosso Pai que está no Céu, pois Ele faz com que o Sol se levante sobre os bons e os maus e faz cair a chuva sobre os justos e os pecadores. Porque, se amais os que vos amam, que recompensa haveis de ter? Não fazem já isso os cobradores de impostos? E, se saudais somente os vossos irmãos, que fazeis de extraordinário? Não o fazem também os pagãos? Portanto, sede perfeitos como é perfeito o vosso Pai celeste.»] O espírito de Jesus é o mesmo espírito do Deus fundador de Israel: um espírito que perdoa muito mais do que castiga [Dt 5:8-10; milésima vs terceira e quarta geração], mas sobretudo que liberta [v.15] da opressão.

Jesus «vê-se» a si mesmo como um profeta, e tal como todos os profetas, Jesus é um ‘homem’ plantado nas questões do seu tempo, mas pressionado pelo memorial de intervenções de Deus no passado. Jesus é um profeta igual aos Profetas de Israel que se deixaram ‘apanhar’ pelos planos de Deus: ‘comeu’ Deus, digeriu Deus, ‘engoliu’ Deus – consubstanciou-se com os planos de Deus. No passado (AT), 99,9% dos profetas de Israel tinham sido eliminados ou assassinados pelo seu próprio povo. Apesar disso, Jesus não vira as costas ao desafio dos desafios: «dar a vida por uma causa extrema»… Jesus acabava de vir a este mundo e sobre ele pendia já a espada da rejeição: «Depois de partirem, o anjo do Senhor apareceu em sonhos a José e disse-lhe: «Levanta-te, toma o menino e sua mãe, foge para o Egipto e fica lá até que eu te avise, pois Herodes procurará o menino para o matar.» E ele levantou-se de noite, tomou o menino e sua mãe e partiu para o Egipto, permanecendo ali até à morte de Herodes. Assim se cumpriu o que o Senhor anunciou pelo profeta: ‘Do Egipto chamei o meu filho’.» [Mateus 2:13-15]

Quem alguma vez foi ou sentiu o que é ser refugiado político pode entender a dramaticidade deste relato. Algum de nós o aceitaria representar em carne viva? O ambiente é de cortar à faca (‘permaneceram escondidos aguardando a morte do ditador Herodes’), porém, nada disso fez azedar ou acidificar de ódio os planos de Jesus. De facto, a expressão ‘Do Egipto chamei o meu filho’ refere-se a uma das mais comoventes declarações de amor do AT: o projecto de Jesus estava, de veras, preenchido de compaixão! (leia PF todo o Oseias 11; p. ex., ‘Como poderia Eu esquecer-te? O meu coração dá voltas dentro de mim, comovem-se as minhas entranhas. Não desembainharei o furor da minha cólera, não voltarei a destruir Efraim; porque sou Diferente (=um Deus Santo) e não sou como um homem comum, sou o Santo no meio de ti, e não me deixo levar pela ira.’). Como poderia, Jesus, esquecer todo o passado do seu povo e tanta misericórdia divina para com o seu povo? Aquilo que parecia bebedeira, ‘loucura divina’ («Segurava-os com laços humanos, com laços de amor os atava, fui para eles como os que erguem ao ar uma criancinha, face-a-face, ao nível do seu rosto»), aquilo que parecia bebedeira, ‘loucura divina’ para Jesus era ‘desperdício’ divino, excesso, esbanjamento transbordante de amor, «vida em plenitude». [Dt 4:29-31] O coração de Jesus batia, as suas entranhas davam voltas e mais voltas, o fogo da paixão começava a abrasá-lo. Em Israel nascia (mais) um profeta de Deus!


O Deus de Jesus não ‘debatido’, nem ‘explicado’…

Jesus nunca fundou uma ‘escola de filosofia’ (naquele tempo, líder que era líder fundava escola), Jesus nunca ‘estudou para padre’, Jesus nunca frequentou a Universidade Católica-Curso de Teologia-Curso de Ciências Religiosas, Jesus nunca fundou uma Religião ou uma Igreja (ou uma seita), Jesus nunca foi ordenado sacerdote, Jesus nunca revelou pretensões de reconquista para a Fé dos povos pagãos (‘nova evangelização’, ‘luta contra o secularismo’, etc.), Jesus viveu mal acompanhado («Jesus em más companhias») e morreu absolutamente só (verdadeira parábola dos nossos últimos telejornais…). Jesus foi um fracasso absoluto! Morreu como um marginal, um sem-abrigo, um «drogado arrumador de carros» dos nossos dias, como um farrapo e, por isso, tinha à sua espera o género de morte que estava reservado aos insurrectos, aos odiados pelas pessoas muito religiosas, aos «malditos»: o madeiro, a cruz! [«o dependurado do madeiro é um maldito de Deus»; Dt 21:22-23]

Jesus levou uma vida itinerante, viveu para o essencial (ou seja, para anunciar que «um mundo outro é possível»), enfrentou com sagacidade o poder político do Império Romano (Marcos 12:13-17), enfrentou o peso, a raiva e a hipocrisia do poder religioso e das práticas cultuais (Marcos 2:18-28; Mc 7:1-23; Mc 10:1-12; Mc 11:27-28; Dt 28:15-68) e denunciou a ditadura dos laços de nacionalidade e de sangue (foi contra a mentalidade clubística e catalogadora de os «nossos» por oposição aos «outros», Mc 9:38-41; contra as tradições familiares da etiqueta, conveniência e boas maneiras; Marcos 3:20-21.31-35).

Jesus tinha bem claro que, mais importante do que de ter uma boa teoria ideológica, era ter feito uma opção de vida bem firme! Mais importante do que saber (o que é «ser cristão») era fazer (o «Reino»). Jesus tinha “alma de profeta”! Todos os profetas de Israel foram desconfortáveis (para os poderosos), inconvenientes, intransigentes, impiedosos, cheios de compaixão, sofridos por amor, apaixonados. Mas mais importante de tudo isto é que, ao mesmo tempo, sabiam que de nada lhes valiam as suas palavras e denúncias se elas não fossem testadas na realidade social e histórica.

Jesus nunca pregou «Deus», Jesus nunca precisou de proclamar que Deus foi expulso da praça pública [Bento XVI e a «Nova Evangelização»: «"a exclusão de Deus, da religião e da virtude da vida pública"»], Jesus nunca promoveu fóruns de debate culturais sobre «Relação Fé e Razão», Jesus nunca editou um Livro, Jesus nunca colocou no centro das suas preocupações «questões religiosas» (Jesus nunca “foi à missa”, nem aconselhou práticas religiosas – procissões, oferendas religiosas, peditórios, benzeduras, orações para que chova ou nasçam vocações, adorações a objectos ou a estátuas ditas santas, etc.); Jesus nunca usou ‘distintivos na lapela’, nem arregimentou multidões (que confirmassem a sua autoridade), não fez ‘conferências’. Jesus enfrentou a sua escolha, enfrentou a opção de vida que tinha feito, testou-a diante dos seus inimigos (a Igreja do seu tempo), por vezes, discutiu e enfureceu-se.

Jesus tinha bem em mente as palavras que, seguramente, sua mãe lhas fizera decorar (como um bom semita que era): ‘tudo o que tu achas justo, faz. Não te fiques apenas pelas palavras, meu filho… Se te assalta uma ideia justa, vai primeiro testá-la antes de a proclamar’. Mais tarde, já crescido, Jesus terá topado com o Livro do Deuteronómio (18:20-22) e confirmado sua mãe: «O profeta, porém, que tiver a insolência de anunciar em meu nome (em nome de Deus) palavras que não lhe mandei dizer, e aquele que falar em nome de deuses estrangeiros, esse profeta morrerá. Poderás perguntar-te a ti mesmo: ‘Como distinguiremos a palavra que não proferiu o Senhor? Quando o profeta falar em nome do Senhor e essas palavras não se realizarem, então essa palavra não veio do Senhor, o Senhor não a disse. É insolência da palavra deste profeta.»

Em vez de se ficar no ‘face-book’ ou no ‘twitter’, Jesus pôs em marcha um movimento de pessoas em que as ‘proibições’ eram apenas a negação das ‘obrigações’: ou seja, um movimento de pessoas assente em ‘acolhimento e libertação’!


… mas realizado!

A postura do profeta Jesus será, desde os começos, acolher e libertar! Jesus não discorre sobre Deus – Jesus faz acontecer Deus.

Cura um possesso na Igreja, cura uma mulher velha fora da Igreja, cura um leproso, cura um paralítico, perdoa pecados, cura uma mão paralisada, cura um possesso em Gerasa, cura a filha de Jairo, cura uma mulher com metrorragias, cura muitos doentes em Genesaré, cura multidões de doentes nas praças ao ar livre «onde quer que entrasse», cura a filha da mulher siro-fenícia, cura um surdo-mudo, cura um cego em Betsaida, cura um epiléptico que os discípulos não conseguiram curar, cura um cego em Jericó. Por fim, completa a cura, muito antes iniciada, de Maria de Magdala. [Mc 16:9-11]

Onde a vida encrava, Jesus desencrava!
Jesus faz funcionar o «Deus da vida» humana − sempre que ela pára Jesus dá à manivela. Jesus muda as pilhas a Deus… quando Deus parece esfriar no seu ilógico interesse pelo homem. Deus, em Jesus, é (age como, sob a forma de) uma paixão pelo homem sofrido. Jesus acha que qualquer outro espelho de Deus não serve para nada (tal como o achavam Martinho Lutero e Gustavo Gutierrez). O homem em sofrimento é (revela) Deus.

Jesus dispensa a religião para revelar Deus, o Deus dos Vivos, de Abraão, de Isaac e de Jacob – Jesus elege Job e rechaça o deus dos amigos de Job.

Jesus mergulha na trama miserável das misérias humanas para aí ‘ser’ e contagiar (Efésios 4:9-2; Jesus desce à condição mais rebaixada para contagiar uma atitude de serviço). A natureza de Jesus – esse é o seu «projecto de vida» − é estar com os que não têm lugar! É alentar os desalentados e os sem-futuro! É carregar ao colo o próprio destino dos sem-destino! É ofertar ‘olhos que vejam no escuro e sem confusão’, ‘pernas que queiram mesmo fazer caminho’, ‘revitalizar a ouvidos preguiçosos’, ‘serenar e dar alternativa aos aflitos, aos oprimidos’ e ‘dignidade e inclusão aos excluídos pelo poder ou pela religião’ – Jesus é Deus em acção! [Jesus sabia da existência do conselho de Deus: Dt 15:4 - «Em verdade, não deve haver pobres entre vós»]

No território da História da Humanidade (ou do Mal), Jesus revela «Deus aí escondido». O Mal pode transformar-se num local privilegiado de acesso a Deus, no entanto, contudo, sem sado-masoquismos («O Senhor abençoou a nova condição de Job, mais do que a antiga»; Job 42:12).

O Mal pode ser hierofânico. Às vezes, é a partir do Mal absoluto (extremo) que melhor e mais claro se pode ver a Deus, já que é a partir da vida deste mundo que Deus se revela. «Na realidade, basta abrir a Bíblia para sentir em cada página a vida pessoal e colectiva em toda a sua concretitude. A história (bíblica), justamente, conta-se ali para iluminar o presente à luz do que sucedeu com «os pais» (fundadores). Os profetas não falam de futuros misteriosos mas de problemas morais, éticos e até políticos bem agudos. Os salmos são orações carregadas de preocupações, ânsias e problemas agudos. A literatura sapiencial constitui uma reflexão sobre a vida, desde os problemas mais universais até aos de mera etiqueta. Os escritos apocalípticos falam de coisas raras e adoptam o estilo (convencional) de revelações misteriosas, mas nós sabemos que enraizam nas angústias e esperanças de uma história concreta. E, entrando nos evangelhos, o que impressiona na pregação e no comportamento de Jesus é justamente a sua adesão à vida, o seu centramento nos problemas mais imediatos da marginalidade, da pobreza, da dor, a sua oferta de sentido, não a partir dum Deus abstracto, mas a partir dum Deus «pai» que se preocupa inclusivamente com os cabelos da nossa cabeza». [Lucas 21:18] (A. Torres Qeiruga)

A «História como parteira» revela o sentido da vida a todos os seres humanos, independentemente de serem crentes ou não. Depois, é uma questão de exigência pessoal: uns desvalorizam e viram-lhe as costas; outros interrogam-se, batem-se, ferem-se e desanimam; outros, porém, querem ir sempre mais ao fundo das questões e … perdem-se nisso: «dão a vida»! (1 Jo 3:16-20) «A Bíblia e o coração dizem o mesmo. Por isso (e por isso) a Bíblia é ‘revelação’» [F. Rosenzweig, filósofo judeu]

«Captamos Deus no sentido em que nos deixamos transformar pelo seu dinamismo» [A. Torres Queiruga]

Jesus, um pouco à maneira de Dietriech Bonhoeffer, interrogava-se: Como pode Deus chegar a ser também Senhor dos não-religiosos num ‘mundo adulto’ para quem a hipótese de Deus é supérflua? «Como falar de Deus sem religião?» [D. Bonhoeffer, ‘Cartas do Cativeiro’, prisão de Tegel 1944]

«Não podemos ser honestos sem reconhecer que é necessário que vivamos no mundo etsi Deus non daretur. (…) Chegados à maioridade, temos que reconhecer de forma muito verdadeira a nossa situação diante de Deus. Deus faz-nos saber que é preciso que vivamos como seres humanos que conseguem viver sem Deus. O Deus que está connosco é o Deus que nos abandonou! (Mc 15:34) O Deus que nos deixa viver no mundo sem a hipótese de trabalho «Deus» é aquele diante do qual estamos constantemente. Diante de Deus e com Deus vivemos sem Deus. Deus deixa-se  desalojar do mundo e ser cravado na cruz. Deus é impotente e débil neste mundo e só assim está connosco e só assim nos ajuda. Mateus 8:17 indica-nos claramente que Cristo nos ajuda, não pela sua omnipotência, mas sim pela sua debilidade e pelos seus sofrimentos». [D. Bonhoeffer]

Há que falar de Deus mundanamente, na finitude da história, no limite, na realidade das coisas, «laicamente» [DB], de forma secular.

Jesus não pregou Deus: anunciou a vinda do reino de Deus!
Jesus foi, sobretudo, um profeta: nele, Deus era e agia! O ‘conceito Deus’ era-lhe perfeitamente inútil. Deus, em Jesus, era sobretudo PROXIMIDADE, irmandade, amizade, gestos de «acolhimento e libertação total» e nunca religião. A Religião (toda a religião) assenta em três pressupostos: a metafísica; a existência da ‘alma’ (por oposição à exterioridade e à história) − o que leva ao individualismo e às obras autosatisfatórias; e a segregação ou parcialidade, aquilo que se denomina o sagrado. [Arnaud Corbic, ‘Dietrich Bonhoeffer: Cristo, Señor de los no-religiosos’]

Jesus não é um homem do sagrado, mas um homo-humanus e Deus é o homem levado ao extremo do seu ser!, aspecto que não depende absolutamente de práticas religiosas ou piedosas, mas absolutamente duma existência terrena radicalizada e provocadora. Cristão é todo o ser humano terrestre em que a vida de libertação se derrama e entorna. Foi isso que muito custou a entender a Pedro (Marcos 8:31). E a muitos de nós, ainda hoje. Jesus veio revelar um Deus próximo [Abba-ô Pater], fraterno e ao serviço do homem. O esquema mental de Jesus era: ‘Deus-Pai Nosso-próximo’ logo ‘fraternidade-igualdade entre todos’ logo ‘serviço mútuo universal’. Jesus veio colocar o Homem no centro e, assim, condenar qualquer tipo de dominação do homem sobre o homem.

Aquilo que mais exasperava Jesus era um Deus desligado da história da humanidade. [JI González Faus]

O capítulo oitavo de Marcos é um sítio suficiente para exemplificar isto. Jesus é a abundância de felicidade e bem-estar (v.1-10: «alimenta 4.000»), mas para as pessoas religiosas isso não bastava: exigiam uma prova celeste, um sinal vindo do Céu! (v.11). Enquanto que, para Jesus, Deus é bem-estar, fome satisfeita, sede saciada e conforto humano (v6, ‘ordenou que se sentassem’), para os piedosos ‘tem que haver mais alguma coisa’. Ou seja, Deus é uma espécie de rótulo que se tem que colar à embalagem: doutra forma ninguém acreditaria que o conteúdo fosse real, verdadeiro ou a encomenda fosse suficientemente perfeita.

O ‘primeiro anúncio da paixão’ (v.31-33) diz o mesmo. Jesus tenta tornar claro aos discípulos que «fora da história dos excluídos não há salvação» (v.31-32a). Porém, Pedro (v.32b) acha que não: que é possível mudar a vida deste mundo compactuando com as regras deste mundo. Jesus volta ‘à vaca fria’ (v.33): «os teus pensamentos não são os de Deus, mas os dos homens». Há aqui uma esgrima: Pedro usa a espada do seu deus (a ideologia religiosa e piedosa dos conciliadores moderados que temem a verdade toda) e Jesus usa a espada dos profetas (o apelo à Koinonia, ao serviço como um absoluto, ao ‘ser apenas dom de vida’, injectores de ressurreição, salvadores e libertadores - v.35).

Em Mateus 23 – a célebre condenação do farisaísmo – Jesus regressa à denúncia do «dizem mas não fazem» (v.3). Diante duma prática religiosa em que Deus é colocado lá em cima no Céu e o Homem cá em baixo, em que existem territórios bem definidos e canais de comunicação entre ambos (mandar rezar missas por, água benta para, santos que metem cunhas a Deus – que intercedem −, procissões e orações de petição, etc.), diante deste triste e pobre espectáculo pietista, Jesus só tem uma palavra: «Hipócritas»!

«Desprezais o mais importante da Lei (da religião): a justiça, a misericórdia e a fidelidade [Mateus 23:23]

A frustração de Jesus não podia ser maior: «Jerusalém, Jerusalém, que matas os profetas e apedrejas os que te são enviados! Quantas vezes quis reunir os teus filhos como a galinha reúne os seus pintainhos sob as asas, e tu não quiseste!Pois bem, a vossa casa ficará deserta. Eu vos digo que não voltareis a ver-me até que digais: ‘Bendito o que vem em nome do Senhor’.» [Mateus 23:37-38]. Jesus profetisa o fim da religião que não nasça do interior da vida humana.

Pergunta: Em que Deus acreditava Jesus?
Resposta: Na vida da humanidade, renovada, levada ao extremo do serviço!

É incrível! Custa a crer! Sobretudo, que, dois mil anos depois, isto tenha que ser proclamado, mais uma vez, como novidade, como «uma Boa Notícia».


pb\