teologia para leigos

10 de julho de 2012

JERUSALÉM, ANTIOQUIA E ROMA [J. A. ESTRADA]

Cristianismo Primitivo
- 3 centros de irradiação



Podemos, simplificando, falar de três grandes correntes do cristianismo primitivo e de três grandes centros de irradiação missionária e de reflexão teológica: Jerusalém, Antioquia (da Síria) e Roma.

Trata-se, naturalmente, de escolas com traços específicos dominantes, ainda que, historicamente, nenhuma delas seja pura. Todas têm misturas; várias influências plurais se entrecruzam nos seus escritos. Jerusalém simboliza o cristianismo judeo-cristão mais conservador palestiniano. Antioquia representa os judeo-cristãos mais abertos helenista. Roma, o cristianismo de maioria gentílica ou pagã gentio ou pagão.


Pedro nega 3 vezes...


A tradição judeo-palestiniana

A primeira corrente corresponde ao grupo judeo-palestiniano, cujo centro nevrálgico é Jerusalém: estes judeo-cristãos esforçavam-se por manter o vínculo a Israel e ao Templo (Act 2:46; 3:1; 5:42; 21:24). Após a morte de Jesus, continuaram a achar que eram parte integrante de Israel e não queriam romper com o judaísmo, pois defendiam que Jesus era o messias prometido aos judeus. Insistiam na plena observância da Lei [Thora] (Act 5:33-39; 15:1-5) e defendiam a circuncisão para todos os membros da Igreja (Act 21:20-26). Após resistência inicial (Act 11:2; 15:5; Gal 2:4; Flp 1:15-17), aceitaram a missão aos pagãos como facto consumado, mas em tudo procuravam manter-se escrupulosos e zelosos cumpridores do judaísmo (Act 15:20.29). Talvez olhassem os gentios como os prosélitos que Jesus previra, apesar de ele mesmo não ter ido senão às ovelhas perdidas da casa de Israel (Mt 8:11; 10:5.15; 15;24). Este grupo tinha como líder Tiago e centrava-se em Jerusalém (Act 15:20-23; Gal 2:12). Pedro e Barnabé sempre se esforçaram por ter boas relações com eles devido à sua reconhecida autoridade (Act 11:22-23; Gal 2:13), já que Jerusalém era a igreja principal.

Esta postura exerceu forte influência no evangelho de Mateus, o qual postulou um compromisso de meio-termo (Mt 15:11.16) entre as tradições judaicas e o cristianismo. Mateus é o evangelho mais tolerante para com os judeus palestinianos, apesar de manter uma certa distância crítica para com eles (Mt 10:5-6; 15:24). Mateus combina o tradicionalismo palestiniano com as exigências inovadoras dos helenistas cristãos, no entanto, manteve a controvérsia com os poderes sacerdotal, escriba e fariseu do judaísmo. Igualmente, Mateus rejeita aqueles que pura e simplesmente pregavam a superação da Lei (Mt 5:17-20; 7:15-23; 13:41; 23:28; 24:10-12). A própria carta de Tiago reflecte este judeo-cristianismo moderado que defende a Lei (Tg 1:25; 2:8-12) e polemiza contra a fé sem obras (Tg 2:14-26 contra Rm 3:28; 4:5).

Esta influência também está patente na Carta de Clemente, a qual apresenta o culto judaico como um exemplo para os cristãos, procurando fundir a herança cristã com a judaica. Esta corrente é constituída pelo grupo dos «judeizantes», os quais opuseram maior resistência a Paulo, líder da comunidade que estava nos antípodas desta. A sua postura antipaulina manteve-se até ao século II, como o mostram os ebionitas ou o Evangelho dos Hebreus. O seu conservadorismo extremo foi um entrave à sua hegemonia dentro das comunidades nascentes, porém lograram forte influência na literatura apócrifa dos séculos II e III.


o primeiro mártir cristão - ESTÊVÃO, helenista

A corrente judeo-cristã helenista

Ao grupo dos helenistas é que pertence a maioria dos judeus da diáspora do Império romano, os quais eram muito mais liberais e abertos que os palestinianos. Tinham, em Estêvão o primeiro mártir do cristianismo seu porta-voz e líder natural (Act 6:5.8-10). A teologia de Estêvão alicerçava-se na superação do culto, do templo e do sacerdócio judaico (Act 7:1-53) e era a corrente judeo-cristã mais acolhida pelo apóstolo Paulo. Paulo, antes da sua conversão, perseguia-os porque os via como hereges (Act 9:1-2), mas imediatamente se aproximou deles, sendo também acusado de menosprezar o templo (Act 24:7). A sua teologia influenciou Mateus, o próprio Lucas (Lc 24:53; Act 28:25-28) e também a Carta aos Hebreus, a qual se dirigia a judeo-cristãos que tinham nostalgia do culto, do sacerdócio e do templo judaicos no sentido de os dissuadir a regressar à velha fé. Foi uma teologia influente que se prolongou através da Carta de Barnabé, da Carta a Diogneto e no apologeta Aristides.

Antioquia é, com certeza, a cidade âncora dos helenistas (Act 11:19-20.22), helenistas que se haviam dispersado pela Ásia Menor (Act 6:9) por causa da perseguição que as autoridades judaicas lançaram contra eles. Ao mesmo tempo que os judeo-cristãos helenistas eram perseguidos (Act 11:19; 12:1-3), os judeo-cristãos palestinianos proliferavam em Jerusalém e desfrutavam de uma paz relativa por parte das autoridades (Act 8:1-5.14; 9:1-2.26-31). Em Antioquia, aconteceu um enfrentamento entre Pedro, que tinha medo dos judeizantes, e Paulo, que defendia os gentios e recusava qualquer compromisso a favor das tradições judaicas (Gal 2:11-14). Em Antioquia, ambas as correntes desempenharam um importante papel, os adeptos de Tiago, como opositores de Paulo, e os helenistas, mais receptivos e abertos a Paulo (Act 14:19-21.26). Igualmente em Antioquia, havia contactos entre helenistas e os grupos proféticos e carismáticos (Act 11:27-30), os quais vemos, depois, estar presentes com frequência nas igrejas paulinas.

Entre os evangelhos com influências helenistas, Mateus ocupa um lugar especial. Mateus oscila entre a defesa da Lei (contra o radicalismo paulino) e a crítica ao Templo, aspecto que o aproxima dos helenistas (Mt 24:1-2; 27:51). Não sabemos exactamente a origem e a procedência do evangelho de Mateus, mas é possível a sua datação em Antioquia (Síria) já que Inácio de Antioquia o conhecia bem, fazendo alusão a este evangelho nas suas cartas. Os bispos e os presbíteros das cartas de Inácio seriam, na sua opinião, os herdeiros e substitutos dos ‘profetas’ e dos ‘mestres’ da igreja antioquiana inicial a que se refere o próprio evangelho de Mateus (Mt 7:15-23; 10:41; 23:34), a que se refere o evangelho de Lucas (Act 11:27-28; 13:1-3; 15:32), a que se refere o livro da Didaké (Did. 11:3; 12:1-5; 13:2-4; 15:1-2) e a que se referem as Cartas de Inácio (Fil 5:2; Magn 8,2; 9,2). Com esta corrente poderá eventualmente estar teologicamente aparentada a Didaké ou Doutrina dos Doze Apóstolos, a qual reflecte um tipo de judaísmo muito mais mitigado que o de Mateus e com maior abertura à corrente carismático-profética (Did. 6:2; cf. Mt 5:48; 11:28-30) trata-se, provavelmente, de um texto pertencente a uma época posterior. Em alguns casos, como é o caso do ‘jejum’, a Didaké é mais conservadora que Mateus (Did. 8,1; cf. Mt 6:1-18). Os escritos judeo-cristãos oscilam entre a abertura helenista a qual é preponderante e as influências do cristianismo palestiniano, mais próximo do judaísmo. Mateus está mais afastado da teologia paulina e move-se no âmbito judeo-cristão, ao passo que Lucas está mais próximo de Paulo e revela-se mais receptivo para com os gentios.


Pedro e Paulo


A corrente pró-pagã

O terceiro grupo o mais radical é o de Paulo.
De longe, foi o que mais influenciou o cristianismo primitivo e teve em Roma um centro fundamental de difusão no qual viveu e morreu Paulo. Representa a superação de Israel e a maior rotura para com as suas tradições. Paulo manteve distância para com os judeo-cristãos (2Cor 11:22; Flp 3:5; cf. Act 9:29), tendo sido muito claro quanto à superação da Lei, da circuncisão e até mesmo do próprio Israel (Rm 3:21-31). É possível que a sua morte em Roma se tenha devido a denúncias dos seus adversários judeus e judeo-cristãos (Rm 11:23-27.30-32; 16:17-18; Act 28:17.22.24-25). Talvez os adversários de Paulo referidos na sua Carta aos Filipenses sejam judeus romanos (Flp 1:14-15; 3:2-11). Essa inimizade foi repescada pela primeira carta de Clemente, a qual afirma que Pedro e Paulo morreram fruto do zelo e da inveja (1Clem 5:2-7; 6:1). Paulo era, para muitos, um apóstolo radical que rompera totalmente com o judaísmo (donde provinha) e que recusava qualquer compromisso com o judaísmo. A superação da Lei, que é a outra face do evangelho da graça e da justificação, era inadmissível para os que desejavam preservar as tradições e mandamentos do Antigo Testamento.

Lucas apresentou uma visão idealizada de Paulo e procurou amortizar as tensões das duas correntes. Nos Actos dos Apóstolos, apresenta-o como respeitador da Lei e do culto (Act 16:1-2; 20:6.16; 21:26), ainda que não oculte a sua decidida abertura aos pagãos. Lucas mitiga o radicalismo de Paulo para tornar o seu perfil aceitável aos olhos dos judeo-cristãos moderados e a integrá-lo numa visão harmónica, unitária e idealista da Igreja que os Actos pretende oferecer. A herança paulina é ampla e diversa. As Cartas Pastorais apresentam Paulo como o apóstolo que organizou a Igreja, ao passo que a primeira carta de Pedro defende um paulinismo carismático (1Pe 2:2.5.12) aberto aos judeo-cristãos (1Pe 2:6-10) e com alusões aos companheiros de Paulo (1Pe 5:12-13; cf. Act 15:22-27; 12:12). A suposta Carta de Pedro está dentro da corrente tardia que busca equilibrar Paulo e moderá-lo subordinando-o a Pedro, cuja autoridade legitima a Carta (1Pe 1:1-2). Nesta mesma linha poder-se-iam também colocar as cartas aos Efésios e aos Colossenses, as quais reflectem a variedade e a importância da escola paulina e também a existência de correntes carismáticas, as quais, por causa dos gnósticos e outros hereges entusiastas, entraram em crise. O marcionismo do século II será o expoente máximo da herança paulina, contrapondo o Deus judaico ao Deus cristão e fazendo de Paulo o núcleo do Canon cristão.

Sobre Marcião:




Dentro da corrente mais pró-pagã e menos pró-judaica, juntamente com os escritos paulinos, há que colocar os escritos do corpo joânico, os quais, apesar da sua variedade e diversidade de autores, reflecte uma postura comum de distanciamento face aos judeus. O corpo dos escritos joânicos faz também parte duma tradição de rotura emparelhando-se com a teologia paulina que legitima a decisão de deixar Israel para trás e partir em busca duma aproximação com os gentios. Para João, os «judeus» passaram a ser apenas mais uma etnia (Jo 1:19; 2:6.13.18-20; 3:1.22.25, etc.). Sempre que se refere a Moisés e a Abraão é para sublinhar a superioridade de Jesus, a inimizade dos judeus (Jo 5:12), a oposição dos fariseus (Jo 12:42-43) e o medo de muitos que não ousavam ligar-se a ele (Jo 2:23-25; 6:60-66; 7:1-8.30-33.59). Espelha, claramente, uma situação de rotura com o judaísmo, reflecte a expulsão das sinagogas e, por parte de alguns da comunidade, reflecte um desconhecimento dos costumes e tradições judaicas (Jo 5:1; 6:4; 7:2). Os escritos joânicos têm raízes judaicas, mas reflectem um horizonte de compreensão distinto dos outros evangelhos. Discute-se muito sobre a existência da possibilidades de influências extra-judaicas, helenistas e gnósticas. Provavelmente, a sua origem terá sido na Ásia Menor, concretamente em Éfeso, em círculos judeo-cristãos próximos dos helenistas, já que, tal como estes, defendem um culto sem templo, em espírito e em verdade (Jo 4:21-24.26; cf. Act 7:48-51), e configuram Cristo como o novo templo (Jo 1:14-51; 2:21-22) segundo expressões cultuais muito próximas da Carta aos Hebreus.


S. João em Patmos



Há quem defenda que os escritos joânicos provêm de uma teologia de círculos samaritanos e, por isso, dizem que Jesus era samaritano (Jo 8:48) e dão ênfase ao apóstolo Filipe, quiçá identificando-o com o missionário da Samaria (Act 8:5), sublinhando que se havia convertido ainda em vida de Jesus (Jo 12:21-22). Nestes textos o protagonista é o Espírito, tal como nas comunidades paulinas. Defendem uma compreensão entusiástica da história marcada por uma ressurreição que, incoactivamente (Jo 5:25), já se encontrava presente (Jo 3:16-18; 5:19-25). Estes textos joânicos identificam Jesus como o logos divino, logos preexistente e mediador da criação (Jo 1:9-14; 3:16-17; 14:2-4.11.20; 17:3-5), a partir do património das especulações hebraicas sobre a Sabedoria. O perigo latente desses círculos era o docetismo, isto é, esquecer o Jesus humano em favor de um Verbo divino desencarnado (1Jo 1:22-23; 2:22; 4:2-3.15; 5:5-6; 2Jo 7). A grande figura dos escritos é um discípulo místico, de traços claramente carismáticos e proféticos (Jo 13:23; 20:8-9; 21:20-24). O forte acento colocado no Espírito teve como consequência uma crítica relativizadora da institucionalização em favor do carisma e da experiência (1Jo 2:20-21.27; 4:13).



Iluminura no livro do Apocalipse


Os escritos joânicos constituíram um conjunto de escritos massivamente utilizados pelos gnósticos dos séculos posteriores, dificultando a sua recepção no Canon do Novo Testamento.

No conjunto dos escritos joânicos pode-se integrar o Apocalipse, claramente diferenciado dos outros textos e com marcada tendência anti-imperial e anti-romana, que completa a variedade e a tensão da literatura cristã.

O Apocalipse recolhe boa parte das influências milenaristas, radicais, sectárias e apocalípticas primitivas. Procura manter a tensão da chegada de Cristo, tal como acontece na primeira carta aos Tessalonicenses. Porém, ficará isolado nos seus intentos, já que esse tipo de teologia havia entrado em decadência. A perda de tensão messiânica e radical, aliada ao crescente processo institucional que se impôs a partir dos finais do século, levou a que se falasse de «catolicismo precoce no Novo Testamento», sublinhando, assim, a progressiva transição para a Igreja e para a institucionalização.
É precisamente essa tendência a que os escritos joânicos pretendem pôr travão.


Juan Antonio Estrada, sj
‘Las primeras comunidades cristianas’, Ed. Trotta, 2006, pp. 159-164.