Cristianismo Primitivo
- 3 centros de irradiação
Podemos, simplificando, falar de três grandes correntes do cristianismo primitivo e de três grandes centros de irradiação missionária e de reflexão teológica: Jerusalém, Antioquia (da Síria) e Roma.
Trata-se, naturalmente, de escolas com traços específicos dominantes, ainda que, historicamente, nenhuma delas seja pura. Todas têm misturas; várias influências plurais se entrecruzam nos seus escritos. Jerusalém simboliza o cristianismo judeo-cristão mais conservador ─ palestiniano. Antioquia representa os judeo-cristãos mais abertos ─ helenista. Roma, o cristianismo de maioria gentílica ou pagã ─ gentio ou pagão.
Pedro nega 3 vezes... |
A tradição judeo-palestiniana
A primeira corrente corresponde ao grupo judeo-palestiniano, cujo centro nevrálgico é Jerusalém: estes judeo-cristãos esforçavam-se por manter o vínculo a Israel e ao Templo (Act 2:46; 3:1; 5:42; 21:24). Após a morte de Jesus, continuaram a achar que eram parte integrante de Israel e não queriam romper com o judaísmo, pois defendiam que Jesus era o messias prometido aos judeus. Insistiam na plena observância da Lei [Thora] (Act 5:33-39; 15:1-5) e defendiam a circuncisão para todos os membros da Igreja (Act 21:20-26). Após resistência inicial (Act 11:2; 15:5; Gal 2:4; Flp 1:15-17), aceitaram a missão aos pagãos como facto consumado, mas em tudo procuravam manter-se escrupulosos e zelosos cumpridores do judaísmo (Act 15:20.29). Talvez olhassem os gentios como os prosélitos que Jesus previra, apesar de ele mesmo não ter ido senão às ovelhas perdidas da casa de Israel (Mt 8:11; 10:5.15; 15;24). Este grupo tinha como líder Tiago e centrava-se em Jerusalém (Act 15:20-23; Gal 2:12). Pedro e Barnabé sempre se esforçaram por ter boas relações com eles devido à sua reconhecida autoridade (Act 11:22-23; Gal 2:13), já que Jerusalém era a igreja principal.
Esta postura exerceu forte influência no evangelho de Mateus, o qual postulou um compromisso de meio-termo (Mt 15:11.16) entre as tradições judaicas e o cristianismo. Mateus é o evangelho mais tolerante para com os judeus palestinianos, apesar de manter uma certa distância crítica para com eles (Mt 10:5-6; 15:24). Mateus combina o tradicionalismo palestiniano com as exigências inovadoras dos helenistas cristãos, no entanto, manteve a controvérsia com os poderes sacerdotal, escriba e fariseu do judaísmo. Igualmente, Mateus rejeita aqueles que pura e simplesmente pregavam a superação da Lei (Mt 5:17-20; 7:15-23; 13:41; 23:28; 24:10-12). A própria carta de Tiago reflecte este judeo-cristianismo moderado que defende a Lei (Tg 1:25; 2:8-12) e polemiza contra a fé sem obras (Tg 2:14-26 contra Rm 3:28; 4:5).
Esta influência também está patente na Carta de Clemente, a qual apresenta o culto judaico como um exemplo para os cristãos, procurando fundir a herança cristã com a judaica. Esta corrente é constituída pelo grupo dos «judeizantes», os quais opuseram maior resistência a Paulo, líder da comunidade que estava nos antípodas desta. A sua postura antipaulina manteve-se até ao século II, como o mostram os ebionitas ou o Evangelho dos Hebreus. O seu conservadorismo extremo foi um entrave à sua hegemonia dentro das comunidades nascentes, porém lograram forte influência na literatura apócrifa dos séculos II e III.
o primeiro mártir cristão - ESTÊVÃO, helenista |
A corrente judeo-cristã helenista
Ao grupo dos helenistas é que pertence a maioria dos judeus da diáspora do Império romano, os quais eram muito mais liberais e abertos que os palestinianos. Tinham, em Estêvão ─ o primeiro mártir do cristianismo ─ seu porta-voz e líder natural (Act 6:5.8-10). A teologia de Estêvão alicerçava-se na superação do culto, do templo e do sacerdócio judaico (Act 7:1-53) e era a corrente judeo-cristã mais acolhida pelo apóstolo Paulo. Paulo, antes da sua conversão, perseguia-os porque os via como hereges (Act 9:1-2), mas imediatamente se aproximou deles, sendo também acusado de menosprezar o templo (Act 24:7). A sua teologia influenciou Mateus, o próprio Lucas (Lc 24:53; Act 28:25-28) e também a Carta aos Hebreus, a qual se dirigia a judeo-cristãos que tinham nostalgia do culto, do sacerdócio e do templo judaicos no sentido de os dissuadir a regressar à velha fé. Foi uma teologia influente que se prolongou através da Carta de Barnabé, da Carta a Diogneto e no apologeta Aristides.
Antioquia é, com certeza, a cidade âncora dos helenistas (Act 11:19-20.22), helenistas que se haviam dispersado pela Ásia Menor (Act 6:9) por causa da perseguição que as autoridades judaicas lançaram contra eles. Ao mesmo tempo que os judeo-cristãos helenistas eram perseguidos (Act 11:19; 12:1-3), os judeo-cristãos palestinianos proliferavam em Jerusalém e desfrutavam de uma paz relativa por parte das autoridades (Act 8:1-5.14; 9:1-2.26-31). Em Antioquia, aconteceu um enfrentamento entre Pedro, que tinha medo dos judeizantes, e Paulo, que defendia os gentios e recusava qualquer compromisso a favor das tradições judaicas (Gal 2:11-14). Em Antioquia, ambas as correntes desempenharam um importante papel, os adeptos de Tiago, como opositores de Paulo, e os helenistas, mais receptivos e abertos a Paulo (Act 14:19-21.26). Igualmente em Antioquia, havia contactos entre helenistas e os grupos proféticos e carismáticos (Act 11:27-30), os quais vemos, depois, estar presentes com frequência nas igrejas paulinas.
Entre os evangelhos com influências helenistas, Mateus ocupa um lugar especial. Mateus oscila entre a defesa da Lei (contra o radicalismo paulino) e a crítica ao Templo, aspecto que o aproxima dos helenistas (Mt 24:1-2; 27:51). Não sabemos exactamente a origem e a procedência do evangelho de Mateus, mas é possível a sua datação em Antioquia (Síria) já que Inácio de Antioquia o conhecia bem, fazendo alusão a este evangelho nas suas cartas. Os bispos e os presbíteros das cartas de Inácio seriam, na sua opinião, os herdeiros e substitutos dos ‘profetas’ e dos ‘mestres’ da igreja antioquiana inicial a que se refere o próprio evangelho de Mateus (Mt 7:15-23; 10:41; 23:34), a que se refere o evangelho de Lucas (Act 11:27-28; 13:1-3; 15:32), a que se refere o livro da Didaké (Did. 11:3; 12:1-5; 13:2-4; 15:1-2) e a que se referem as Cartas de Inácio (Fil 5:2; Magn 8,2; 9,2). Com esta corrente poderá eventualmente estar teologicamente aparentada a Didaké ou Doutrina dos Doze Apóstolos, a qual reflecte um tipo de judaísmo muito mais mitigado que o de Mateus e com maior abertura à corrente carismático-profética (Did. 6:2; cf. Mt 5:48; 11:28-30) ─ trata-se, provavelmente, de um texto pertencente a uma época posterior. Em alguns casos, como é o caso do ‘jejum’, a Didaké é mais conservadora que Mateus (Did. 8,1; cf. Mt 6:1-18). Os escritos judeo-cristãos oscilam entre a abertura helenista ─ a qual é preponderante ─ e as influências do cristianismo palestiniano, mais próximo do judaísmo. Mateus está mais afastado da teologia paulina e move-se no âmbito judeo-cristão, ao passo que Lucas está mais próximo de Paulo e revela-se mais receptivo para com os gentios.
Pedro e Paulo |
A corrente pró-pagã
O terceiro grupo ─ o mais radical ─ é o de Paulo.
De longe, foi o que mais influenciou o cristianismo primitivo e teve em Roma um centro fundamental de difusão no qual viveu e morreu Paulo. Representa a superação de Israel e a maior rotura para com as suas tradições. Paulo manteve distância para com os judeo-cristãos (2Cor 11:22; Flp 3:5; cf. Act 9:29), tendo sido muito claro quanto à superação da Lei, da circuncisão e até mesmo do próprio Israel (Rm 3:21-31). É possível que a sua morte em Roma se tenha devido a denúncias dos seus adversários judeus e judeo-cristãos (Rm 11:23-27.30-32; 16:17-18; Act 28:17.22.24-25). Talvez os adversários de Paulo referidos na sua Carta aos Filipenses sejam judeus romanos (Flp 1:14-15; 3:2-11). Essa inimizade foi repescada pela primeira carta de Clemente, a qual afirma que Pedro e Paulo morreram fruto do zelo e da inveja (1Clem 5:2-7; 6:1). Paulo era, para muitos, um apóstolo radical que rompera totalmente com o judaísmo (donde provinha) e que recusava qualquer compromisso com o judaísmo. A superação da Lei, que é a outra face do evangelho da graça e da justificação, era inadmissível para os que desejavam preservar as tradições e mandamentos do Antigo Testamento.
Lucas apresentou uma visão idealizada de Paulo e procurou amortizar as tensões das duas correntes. Nos Actos dos Apóstolos, apresenta-o como respeitador da Lei e do culto (Act 16:1-2; 20:6.16; 21:26), ainda que não oculte a sua decidida abertura aos pagãos. Lucas mitiga o radicalismo de Paulo para tornar o seu perfil aceitável aos olhos dos judeo-cristãos moderados e a integrá-lo numa visão harmónica, unitária e idealista da Igreja que os Actos pretende oferecer. A herança paulina é ampla e diversa. As Cartas Pastorais apresentam Paulo como o apóstolo que organizou a Igreja, ao passo que a primeira carta de Pedro defende um paulinismo carismático (1Pe 2:2.5.12) aberto aos judeo-cristãos (1Pe 2:6-10) e com alusões aos companheiros de Paulo (1Pe 5:12-13; cf. Act 15:22-27; 12:12). A suposta Carta de Pedro está dentro da corrente tardia que busca equilibrar Paulo e moderá-lo subordinando-o a Pedro, cuja autoridade legitima a Carta (1Pe 1:1-2). Nesta mesma linha poder-se-iam também colocar as cartas aos Efésios e aos Colossenses, as quais reflectem a variedade e a importância da escola paulina e também a existência de correntes carismáticas, as quais, por causa dos gnósticos e outros hereges entusiastas, entraram em crise. O marcionismo do século II será o expoente máximo da herança paulina, contrapondo o Deus judaico ao Deus cristão e fazendo de Paulo o núcleo do Canon cristão.
Sobre Marcião:
Dentro da corrente mais pró-pagã e menos pró-judaica, juntamente com os escritos paulinos, há que colocar os escritos do corpo joânico, os quais, apesar da sua variedade e diversidade de autores, reflecte uma postura comum de distanciamento face aos judeus. O corpo dos escritos joânicos faz também parte duma tradição de rotura emparelhando-se com a teologia paulina que legitima a decisão de deixar Israel para trás e partir em busca duma aproximação com os gentios. Para João, os «judeus» passaram a ser apenas mais uma etnia (Jo 1:19; 2:6.13.18-20; 3:1.22.25, etc.). Sempre que se refere a Moisés e a Abraão é para sublinhar a superioridade de Jesus, a inimizade dos judeus (Jo 5:12), a oposição dos fariseus (Jo 12:42-43) e o medo de muitos que não ousavam ligar-se a ele (Jo 2:23-25; 6:60-66; 7:1-8.30-33.59). Espelha, claramente, uma situação de rotura com o judaísmo, reflecte a expulsão das sinagogas e, por parte de alguns da comunidade, reflecte um desconhecimento dos costumes e tradições judaicas (Jo 5:1; 6:4; 7:2). Os escritos joânicos têm raízes judaicas, mas reflectem um horizonte de compreensão distinto dos outros evangelhos. Discute-se muito sobre a existência da possibilidades de influências extra-judaicas, helenistas e gnósticas. Provavelmente, a sua origem terá sido na Ásia Menor, concretamente em Éfeso, em círculos judeo-cristãos próximos dos helenistas, já que, tal como estes, defendem um culto sem templo, em espírito e em verdade (Jo 4:21-24.26; cf. Act 7:48-51), e configuram Cristo como o novo templo (Jo 1:14-51; 2:21-22) segundo expressões cultuais muito próximas da Carta aos Hebreus.
S. João em Patmos |
Há quem defenda que os escritos joânicos provêm de uma teologia de círculos samaritanos e, por isso, dizem que Jesus era samaritano (Jo 8:48) e dão ênfase ao apóstolo Filipe, quiçá identificando-o com o missionário da Samaria (Act 8:5), sublinhando que se havia convertido ainda em vida de Jesus (Jo 12:21-22). Nestes textos o protagonista é o Espírito, tal como nas comunidades paulinas. Defendem uma compreensão entusiástica da história marcada por uma ressurreição que, incoactivamente (Jo 5:25), já se encontrava presente (Jo 3:16-18; 5:19-25). Estes textos joânicos identificam Jesus como o logos divino, logos preexistente e mediador da criação (Jo 1:9-14; 3:16-17; 14:2-4.11.20; 17:3-5), a partir do património das especulações hebraicas sobre a Sabedoria. O perigo latente desses círculos era o docetismo, isto é, esquecer o Jesus humano em favor de um Verbo divino desencarnado (1Jo 1:22-23; 2:22; 4:2-3.15; 5:5-6; 2Jo 7). A grande figura dos escritos é um discípulo místico, de traços claramente carismáticos e proféticos (Jo 13:23; 20:8-9; 21:20-24). O forte acento colocado no Espírito teve como consequência uma crítica relativizadora da institucionalização em favor do carisma e da experiência (1Jo 2:20-21.27; 4:13).
Iluminura no livro do Apocalipse |
Os escritos joânicos constituíram um conjunto de escritos massivamente utilizados pelos gnósticos dos séculos posteriores, dificultando a sua recepção no Canon do Novo Testamento.
No conjunto dos escritos joânicos pode-se integrar o Apocalipse, claramente diferenciado dos outros textos e com marcada tendência anti-imperial e anti-romana, que completa a variedade e a tensão da literatura cristã.
O Apocalipse recolhe boa parte das influências milenaristas, radicais, sectárias e apocalípticas primitivas. Procura manter a tensão da chegada de Cristo, tal como acontece na primeira carta aos Tessalonicenses. Porém, ficará isolado nos seus intentos, já que esse tipo de teologia havia entrado em decadência. A perda de tensão messiânica e radical, aliada ao crescente processo institucional que se impôs a partir dos finais do século, levou a que se falasse de «catolicismo precoce no Novo Testamento», sublinhando, assim, a progressiva transição para a Igreja e para a institucionalização.
É precisamente essa tendência a que os escritos joânicos pretendem pôr travão.
Juan Antonio Estrada, sj
‘Las primeras comunidades cristianas’, Ed. Trotta, 2006, pp. 159-164.