teologia para leigos

4 de julho de 2012

JESUS FUNDOU UMA IGREJA? [VÍCTOR CODINA]


do JESUS HISTÓRICO à IGREJA

«Diziam: - '«Não é este o filho de José?'» [Lc 4:22]


Que relação existe entre Jesus e a Igreja?
Até que ponto se pode afirmar que Jesus fundou a Igreja?

Esta questão, que não é propriamente de dogmática, mas histórico-crítica, é relativamente moderna. Não existia no tempo dos Padres da Igreja nem existiu na época medieval. É um problema ligado à exegese moderna. Do ponto de vista dogmático, é claro que a Igreja é a Igreja de Jesus, ela é o seu Corpo, é a sua Esposa, está edificada sobre a pedra angular que é Cristo (Ef 2:20; Ap 21:14).

O Vaticano II resume nestas breves frases as diversas etapas em que se foi realizando o projecto do Pai para a Igreja: «prefigurada desde a origem do mundo, preparada na história de Israel, constituída nos tempos últimos, manifestada na efusão do Espírito e consumada no final dos tempos» (LG 2).

E, mais adiante, proclama claramente a dimensão trinitária da Igreja: «Assim se manifesta a Igreja como multidão reunida pela unidade do Pai, do Filho e do Espírito Santo» (LG 4, citando Cipriano).

Sem dúvida que a pergunta sobre a origem histórica da Igreja é importante, já que na génese da Igreja se esconde o seu modo de ser.

Quanto a esta questão, podemos distinguir três posturas claramente definidas.

Postura clássica Esta postura afirma uma continuidade sem rotura entre o Jesus histórico e a Igreja. Jesus «fundou» uma instituição nova, com os seus chefes (Mc 3:7), com Pedro à cabeça (Mt 16), com os seus sacramentos (do baptismo e da eucaristia), com a função de missionar todas as nações.

Nesta perspectiva, a Igreja é o prolongamento da encarnação de Jesus, nascera em Belém, é uma sociedade com estrutura divina, é estática, intocável. Ao fundar a Igreja, Cristo criou uma nova instituição religiosa, bem organizada e estruturalmente bem equipada.

Sem dúvida que esta postura tradicional encontra muitas dificuldades, quer do ponto de vista exegético quer do ponto de vista teológico, de modo a continuar a ser admitida:

os evangelhos não são simples narrações historicistas, mas narrações teológicas, isto é, não são uma cópia fiel daquilo que aconteceu, mas  possuem carácter de reflexão eclesial para as Igrejas. Em todos os temas sobre as origens, os evangelhos (tal como acontece, por exemplo, no Génesis), têm um marcado carácter simbólico. É aquilo que se denomina género literário ‘etiológico’ ou ‘de origens’.

a palavra igreja (ekklesia), em todos os evangelhos, só surge três vezes (em Mt 16:18; e 18:17) e vinte vezes nos Actos. Por outro lado, a expressão Reino de Deus aparece mais de cem vezes nos evangelhos, o que quer dizer que Jesus pregou o Reino de Deus e sua emergência próxima, em vez da Igreja.

Jesus não fundou uma seita à parte, do género dos essénios de Qumrán, mas dirigiu-se a Israel como um todo, a quem vinha reunir e congregar. Daí a sua preocupação primeira pela ovelhas de Israel (Mt 10:5-6) o que explica as dificuldades da Igreja primitiva em abrir-se aos gentios (cf. Actos 10).

os ‘doze’ constituem um símbolo: as doze tribos de Israel; são os juízes escatológicos de Israel; as promessas a Pedro sobre a Igreja (Mt 16:19s) têm um marcado sentido simbólico e etiológico e estão redigidas à luz da Páscoa e da aparição do Ressuscitado a Pedro.

os próprios sacramentos do baptismo e da eucaristia, na sua origem, têm um forte significado escatológico, de conversão ao verdadeiro Israel e de participação no banquete escatológico do Reino, adquirindo, só depois da Páscoa, um sentido propriamente eclesial.

dificilmente poderia Jesus ter pensado na Igreja na medida em que estava plenamente convencido que a escatologia irromperia definitivamente com ele (Mc 13), tal como pensa a exegese moderna.

Jesus teve lentamente consciência de que o seu plano de o Reino se instaurar durante a sua vida não iria ocorrer: a chamada ‘crise da Galileia’ (Mt 16:13; Mc 8:27; Lc 9:18; Jo 6:67), a sua rejeição por parte dos dirigentes e de amplas camadas do povo levaram-no à paixão, à cruz e à dispersão dos discípulos.

Por todos estes motivos, a tese que defende que Jesus fundou uma instituição religiosa na sua vida terrena, a qual denominou ‘igreja’, não parece ter fundamentação histórica: não corresponde à exegese bíblica actual, nem à cristologia, nem à própria história da Igreja, a qual nos mostra como o processo de estruturação da Igreja foi um processo lento (primado romano, ministérios, Canon das Escrituras, número dos sacramentos…). Esta postura, que afirma com razão o princípio cristológico, chave para a institucionalização da Igreja, omite a referência à Páscoa e ao princípio pneumatológico.

Postura cindente ou fracturante É uma tese contrária à anterior, na qual a Igreja aparece como acontecimento pneumatológico sem referência nem conexão cristológica. Esta posição revela uma total descontinuidade entre Jesus e a Igreja. A formulação mais radical desta tese é a do modernista Loisy: «Jesus pregou o Reino e nasceu a Igreja». Para esta postura, a Igreja nasce da fé pascal, mas sem ligação com o Jesus histórico (Bultmann). Jesus não fundou a Igreja: esta nasceu à margem ou, inclusivamente, talvez contra a vontade de Jesus.

Esta postura vai contra a convicção eclesial mantida durante séculos pela tradição cristã que diz que há uma estreita relação entre a Igreja e Jesus. Podemos dizer, retomando formulações cristológicas de Calcedónia, que a Igreja e Cristo se relacionam de forma inseparável (indivise), mas que não se podem confundir (inconfuse). É uma posição racionalista e liberal, que desagua no fideísmo. Ora, tal como em todos os erros, há aqui intuições válidas.





Postura dialéctica Esta posição tenta assumir os elementos válidos da duas anteriores, o princípio cristológico e o pneumatológico, a instituição e os acontecimentos. A Igreja não nasce em Belém, mas na Jerusalém pascal e pentecostal.

Ela afirma que há, entre Jesus e a Igreja, uma continuidade descontínua ou uma descontinuidade contínua. Esta posição, não só defendida por alguns biblistas e teólogos protestantes mas também por autores católicos (os exegetas R. Schnackenburg, J. Blank, A. Votgle, N. Lohfink e os teólogos dogmáticos E. Peterson, H. Küng, J. Ratzinger, K. Rahner, L. Boff, etc.), defende que há uma íntima e profunda relação entre a Igreja e Jesus, mas que esta relação tem um carácter processual, é progressiva.

Entre o Jesus histórico e a Igreja há uma profunda rotura provocada pelo mistério da morte e ressurreição de Jesus e a pela vinda do Espírito. Acontece depois da Páscoa-Pentecostes quando os doze se convertem em apóstolos, dos quais Pedro é o fundamento. O baptismo passa a ser sacramento eclesial de incorporação na comunidade de Jesus; a eucaristia alimento pascal da comunidade eclesial; a Igreja prega Jesus como o centro do Reino e convoca a nova comunidade como comunidade do Reino de Deus. Mais: a rejeição por parte de Israel (simbolizada pela morte de Estêvão – Act 7:1-60 -  e pela destruição do Templo) marcará decisivamente a abertura da Igreja aos gentios e a passagem ao universalismo.

Esta posição é a que está por trás das afirmações tradicionais de que a Igreja nasceu no Pentecostes ou da leitura patrística do mistério do sangue e da água que brotam do lado de Cristo crucificado: a água simboliza o baptismo e o sangue a eucaristia, sacramento da futura Igreja pascal.

Há que admitir com muita clareza que a Igreja liga-se ao movimento de restauração de todo o povo de Deus iniciado por Jesus, mas que não se constitui como tal a não ser depois da Páscoa-Pentecostes, depois do fracasso da cruz e da dispersão dos discípulos.

Esta Igreja pascal e pentecostal, que surge sob a força do Espírito, não se pode desvincular do Jesus histórico, do seu plano de congregar o novo Israel, do chamamento de um grupo de discípulos, da sua pregação, do seu estilo de vida, do seu rebaixamento (kenosis), da sua opção pelos marginalizados que o levará à paixão e à cruz. Assim, a Igreja deverá ser sempre referida ao Jesus histórico. É assim que se explica que os evangelhos tenham sido escritos após os escritos paulinos como uma exigência em se conhecer a vida de Jesus histórico a fim de fundamentar a comunidade eclesial nascente como comunidade de Jesus.

Nesta perspectiva, a fundação da Igreja tem um carácter eminentemente teológico (funda-se em Jesus) e dinâmico-processual: é um processo, uma génesis que começa com o Jesus histórico, passa pela cruz e pela ressurreição até chegar ao Pentecostes.

O Vaticano II também prefere evitar a palavra fundação, e diz textualmente: «O Senhor deu início [initium fecit] à sua Igreja pregando a Boa Nova, isto é, a chegada do Reino de Deus» (LG 5) (…)

Podemos, enfim, distinguir as posturas quanto à origem da Igreja:

fundação: instituição organizada por Jesus; Jesus é o fundador;

experiência fundante: fundamentada no movimento profético de Jesus que veio para reunir o povo de Deus; experiência radicada em Jesus (princípio cristológico) e na experiência pascal (princípio pneumatológico). Jesus é o fundamento da Igreja, a sua pedra fundamental e angular;



Tudo isto tem consequências importantes para a vida eclesial. É muito distinto conceber a Igreja a partir dos começos como algo estático, a-histórico, fundada de forma fixa e perene ou concebê-la como algo histórico e dinâmico, que tem a sua pré-história no Antigo Testamento, se articula com a comunidade reunida à volta de Jesus histórico, que como tal se manifesta depois da Páscoa-Pentecostes e se abre aos gentios desligando-se do judaísmo. O próprio Primado romano funda-se num facto histórico e contingente como é o caso do martírio de Pedro e de Paulo em Roma. Certas formas de imobilismo eclesial estão ligadas a uma visão fixista da origem da Igreja.

Por outro lado, a postura cindente ou fracturante também tem consequências funestas: se a Igreja se desliga de Jesus, ficamos sem saber qual é o estilo específico da vida eclesial, caímos na maior das arbitrariedades já que, fora do seguimento de Jesus, tudo seria permitido na Igreja.

A visão dialéctica está mais conforme com a história da salvação: Deus actua na história, mas respeitando as liberdades e entrando no jogo humano. A Igreja é obra de Deus, mas obra ao longo da história - atravessada pela rejeição judaica, pelo fracasso de Cristo em instaurar o reino de Deus, pela conversão dos gentios. Esta é a maneira de actuar de Deus: respeito pela liberdade humana e escrevendo direito por linhas tortas, como dizia Santo Agostinho.

Esta postura mantém um duplo princípio na Igreja: o princípio cristológico e o princípio pneumatológico. A Igreja não procede unicamente do Jesus histórico sem referência ao Espírito, nem procede do Espírito sem referência ao Jesus histórico; ambos actuam na história humana, história concreta e contingente.

Isto significa que a Igreja deve ser fiel às opções e estilos do Jesus histórico (pobreza, compaixão pelos marginalizados, pregação do Reino, congregação de discípulos, oração ao Pai, a cruz) e, no caso de os ignorar, deixaria de ser memorial na história. Por outro lado, deve também deixar-se levar pelo Espírito de Jesus, confiar nele, confiar na sua presença sabendo que o Espírito é maior do que a igreja e que ele actua onde quer, como quer, criando sempre o novo.


a Igreja dos mártires


CONCLUSÃO

A afirmação de que Jesus fundou a Igreja, ainda que esteja correcta e expresse algo muito válido, pode ser ambígua caso não seja bem explicada:

diz demais, na medida em que a teologia pós-pascal da comunidade primitiva (tal como ficou plasmada nas Escrituras) não é historicamente demonstrável no tempo pré-pascal;

diz demasiado pouco, pois minimiza a visão da Igreja e a sua relação com Jesus reduzindo a igreja a um facto pré-pascal e pré-pneumatológico;

Hoje em dia prefere-se dizer que Jesus é o fundamento da Igreja ou que a Igreja tem uma eclesiogénese que vai do Jesus histórico até ao Pentecostes.

Esta visão permite algo muito importante: a Igreja não se pode centrar em si mesma, mas deve abrir-se às exigências do Reino que é o horizonte para o qual ela deve tender. Ela mesma é sacramento do Reino de Deus.

Em suma, escreve Rafael Aguirre, «o problema não está em saber se Jesus fundou a Igreja, mas como tem que ser a Igreja se quer estar fundada em Jesus» (R. Aguirre, La  Iglesia de Jerusalén, Bilbao 1989, p. 41).

Podemos terminar com um texto de Leonardo Boff:

«Do exposto conclui-se que a Igreja nasce a partir do acontecimento cristológico no seu todo, desempenhando a ressurreição e o Espírito Santo um papel especial na tomada de decisão dos apóstolos. Agora podemos compreender melhor a nossa afirmação de que Jesus fundou a Igreja. (…)»
«Hoje quando entrevemos a possibilidade de uma reinvenção da Igreja, reflexões deste tipo apresentam-se-nos surpreendentemente libertadoras. Oxigenam a atmosfera teológico-pastoral para que se possa tentar o ainda não experimentado. Se com o Papa Paulo VI reconhecemos a presença do Espírito na origem das comunidades de base (discurso de clausura do Sínodo de 1974), então devemos acompanhar atentamente e acolher o surgimento de uma nova forma de presença da Igreja no meio dos homens, com novos serviços e com tarefas e estilos novos face aos serviços antigos e tradicionais.» (L. Boff, Eclesiogénesis. Las comunidades de base reinventam la Iglesia, Santander 1979, pp. 94-95)

Victor Codina, sj
Professor (catalão) de Teologia em Barcelona durante vinte anos. Após 1993, é professor de Teologia na Universidade Católica Boliviana de Cochabamba, exercendo também trabalho pastoral junto de mineiros e em bairros periféricos de Oruro, Santa Cruz e Cochabamba.
in 'La Eclesiología desde América Latina', Verbo Divino 2008, pp. 40-45.