teologia para leigos

30 de novembro de 2011

POBREZA INFANTIL E DESIGUALDADE ECONÓMICA





Ontem celebrou-se o dia da criança. A decência de uma sociedade também se mede pela forma como cuida das suas crianças. Em Portugal, há pouco que celebrar nesta área. Esta semana ficámos a saber [http://www.publico.pt/Sociedade/duas-em-cada-cinco-criancas-vivem-em-situacao-de-pobreza_1496617?all=1] que duas em cada cinco crianças podem viver em situação de pobreza, ou seja, em situação de gritante desvantagem. Somos uma sociedade indecente.

Somos uma sociedade onde as medíocres elites gostam muito de falar de mérito, mas onde a investigação [http://www.ecineq.org/milano/WP/ECINEQ2010-174.pdf] continua a apontar para a nossa incapacidade institucional, quase sem paralelo na Europa, em igualizar minimamente as oportunidades. São as falhas de um sistema fiscal cuja regressividade se vai acentuar, de um Estado social em quebra e de uma regulação cada vez mais frágil das relações laborais, incapaz de favorecer o trabalho decente, de evitar a pobreza laboral e de reduzir as desigualdades salariais.

Na realidade, estamos bem acompanhados, por exemplo, pelos EUA: a pobreza infantil que aí se regista também está acima da média, e a mobilidade social abaixo da média, dos países desenvolvidos. Também se sabe que quanto mais desiguais são os países, menor é o contributo do crescimento económico para diminuir a pobreza. Pobreza e desigualdade económica não são separáveis, como muitos teimam em pensar num país desigual. Nas últimas décadas, e como sublinha o excelente observatório das desigualdades, [h[ttp://observatorio-das-sigualdades.cies.iscte.pt/index.jsp?page=indicators&lang=pt&id=220] não cessaram de se acentuar as desigualdades de remuneração no sector privado. Agradeçam à troika interna que nos tem governado.

É estranho que seja nos países de capitalismo mais desigual que mais se tenda a responsabilizar os pobres pela sua situação. Estamos num país onde uma nojenta campanha de extrema-direita contra uma prestação frágil como o RSI pode ter sucesso, onde se corta com todo à vontade no abono de família, onde se multiplicam as famílias com todos os adultos desempregados, onde mais de 50% dos desempregados não tem qualquer apoio, onde 50% dos trabalhadores leva para casa menos de 750 euros por mês, onde o investimento público em creches e infantários escasseia. A pobreza infantil é filha de um sistema em que uma minoria com voz vive em cima das possibilidades de desenvolvimento de tantas crianças e de tantos adultos, os que nunca tiveram tempo para ser crianças.

Se isto é assim, não acham também estranho que se multipliquem as palas sociais que impedem tantos de ver o que deve ser visto? Não acham estranho que sejamos dominados por um credo de “mercado” que parece assumir que todos nos tornamos adultos autónomos como que por uma mão invisível? Há tanta coisa estranha no capitalismo desigual, não há?

João Rodrigues
02 Junho 2011
blog «Ladrões de Bicicletas»


29 de novembro de 2011

HERODES ANTIPAS E AS DESIGUALDADES SOCIAIS



A urbanização da Galileia

Esta situação difícil dos agricultores galileus agravou-se ainda mais quando, num curto período de vinte anos, Herodes Antipas [filho de Herodes, o Grande] reconstruiu Séforis e mandou construir a nova capital, Tiberíades. Tudo aconteceu antes que Jesus completasse os vinte e cinco anos. Aqueles galileus que levavam séculos a viver em aldeias e em barracas, a cultivar pequenas parcelas da sua propriedade, conheceram pela primeira vez, dentro do seu próprio território, a proximidade de duas cidades que iriam mudar de repente o panorama da Galileia, provocando uma grave desintegração social.[1]

Já no tempo dos asmoneus se tinha estabelecido em Séforis uma guarnição armada para garantir o controlo da zona e assegurar o pagamento dos impostos. Herodes [Antipas] continuou a utilizá-la como o principal centro administrativo da Galileia até que, à sua morte, ficou arrasada pelo levantamento (revoltoso) de Judas e pela posterior intervenção dos soldados romanos. Antipas não hesitou em reconstruir Séforis quando chegou ao poder. Edificada sobre uma colina que dominava terras férteis, era, na altura, o melhor sítio para a capital da Galileia. Antipas denominou-a de «imperial» (Autocrátoris). De facto, só o foi até aos anos 18/19, em que se fundou Tiberíades, a nova e esplêndida capital construída por Antipas na margem do ‘mar’ da Galileia, num terreno que fora antigamente um cemitério.

No Império romano, as cidades eram construídas para serem residência das classes dirigentes. Nelas viviam os governantes, os militares, os cobradores de impostos, os funcionários administrativos, os juízes, os notários, os grandes latifundiários e os responsáveis pelo armazenamento dos produtos. A desigualdade do nível de vida entre as cidades e as aldeias era notória. Nas povoações agrícolas da Galileia, as pessoas viviam em casas muito modestas feitas de barro ou por pedras por trabalhar, e com tecto de colmo. As ruas eram de terra batida e sem pavimento. A ausência de mármores ou outros elementos decorativos era total. Em Séforis, pelo contrário, podia ver-se edifícios bem construídos, cobertos de telhas, com chão de mosaicos e frescos, ruas pavimentadas e até uma avenida com cerca de treze metros de largura, bordejada de um lado e de outro por filas de colunas. Tiberíades era ainda mais monumental, com o palácio de Antipas, diversos edifícios administrativos e a porta da cidade com duas torres arredondadas, de carácter puramente ornamental e simbólico, a fazer uma separação nítida entre a população da cidade e a das aldeias.

Séforis tinha entre oito e doze mil habitantes. Tiberíades, à volta de oito mil. Não podiam competir em tamanho, poder ou riqueza com Cesareia Marítima, onde residia o prefeito de Roma, nem com Citópolis, nem com as cidades marítimas de Tiro e Sídon[2]. Eram centros urbanos mais pequenos, mas que não deixavam de ser uma novidade importante na Galileia. O campo tinha de abastecer, agora, dois importantes aglomerados urbanos que não cultivavam a terra. Famílias camponesas, acostumadas a trabalhar as terras para garantirem o indispensável à subsistência, viram-se obrigadas a aumentar a sua produção a fim de manterem as classes dirigentes[3].

Era a partir de Séforis e de Tiberíades que se fiscalizava e administrava toda a Galileia. Os agricultores experimentavam de perto, pela primeira vez, a pressão e o controlo das autoridades herodianas. Não era possível fugir ao pagamento de rendas e de taxas. A organização do fisco e da armazenagem era cada vez mais eficaz. As exigências que provinham do sustento dos centros de uma administração em progresso eram cada vez mais elevadas. E, enquanto em Séforis e em Tiberíades crescia o nível de vida e a possibilidade de aquisição de mercadorias luxuosas, nas aldeias faziam-se sentir cada vez mais a insegurança e os problemas para poder subsistir. Séforis e Tiberíades acabavam por introduzir relações até então desconhecidas, quer no controlo, quer no poder administrativo, quer no que diz respeito à cobrança de impostos.

A agricultura das famílias da Galileia (policultura) tinha sido tradicionalmente muito diversificada. Os agricultores cultivavam diferentes produtos tendo em conta as suas múltiplas necessidades, o mercado de intercâmbio e a mútua reciprocidade que existia entre as famílias e entre vizinhos. A partir de agora fora incrementada a monocultura. Aos grandes latifundiários interessava mais aumentar a produção, facilitar o pagamento de impostos e negociar a armazenagem dos produtos. Entretanto, os proprietários das pequenas parcelas e os assalariados ficavam cada vez menos protegidos. As elites urbanas não pensavam nas necessidades das famílias pobres, as quais tinham de se alimentar de cevada, feijão, milho da índia, cebolas ou figos, enquanto aquelas exigiam produtos como trigo, azeite ou vinho, os quais eram de maior relevância para o armazenamento e para o lucro. [E hoje, século XXI, como é?]

Foi nesta época que começaram a circular, na Galileia, as moedas cunhadas por Antipas na cidade de Tiberíades. O sistema de amoedação facilitava a compra de produtos e o pagamento do tributo a Roma[4]. Por outro lado, permitia aos ricos acumular mais facilmente os seus ganhos e assegurar o futuro em épocas de escassez. A circulação de moeda estava controlada pelas elites urbanas e favorecia os mais ricos. Concretamente, as moedas de ouro e prata eram utilizadas para acumular «tesouros» ou mammona, que serviam para adquirir honra, fama e poder. De facto, só nas cidades se podia «entesourar»[5]. As moedas de prata serviam para pagar o tributo imperial por cada pessoa, bem como os diversos impostos. As moedas de bronze utilizavam-se para equilibrar o intercâmbio de produtos. Eram estas as moedas que, normalmente, manuseavam os agricultores.

Ao que se julga, ao longo da sua vida, Jesus presenciou o crescimento de uma desigualdade que favorecia a minoria privilegiada de Séforis e de Tiberíades, e originava insegurança, pobreza e desintegração de bastantes famílias camponesas. Aumentava o endividamento e a perda de terras por parte dos mais débeis. Os tribunais das cidades poucas vezes apoiavam os agricultores [Lc 12:57ss; Lc 18:1ss]. Aumentava o número de indigentes, jornaleiros e prostitutas. Cada vez eram mais os pobres e os famintos por não poderem usufruir da terra dada por Deus ao seu povo[6].

A actividade de Jesus no meio das aldeias da Galileia e a sua mensagem do «reino de Deus» representavam uma forte crítica a semelhante estado de coisas. A sua firme defesa dos indigentes e dos famintos, o seu acolhimento preferencial aos últimos daquela sociedade, bem como a sua condenação da vida sumptuosa dos ricos das cidades, eram um desafio público àquele sistema sociopolítico desenvolvido por Antipas, que favorecia os interesses dos mais poderosos e afundava na indigência os mais débeis. A parábola do pobre Lázaro e do rico que vive faustosamente, ignorando quem morre de fome à porta do seu palácio [Lc 16:19-31]; a narração do latifundiário insensato que só pensava em construir silos e armazéns para os seus cereais [Lc 12:16-21]; a crítica severa contra os que acumulam riquezas sem pensar nos necessitados [fonte QMt 6:24; Lc 12:33-34; Lc 16:13; Mt 6:19-21]; as bem-aventuranças, declarando felizes os pobres, os famintos e os que choravam por perderem as suas terras [Lc 6:20-21]; as exortações dirigidas aos seus seguidores para partilharem a vida com os mais pobres daquelas aldeias e andarem como eles, sem ouro, sem prata, sem cobre, sem duas túnicas e sem sandálias [Mt 10:9-10]; os seus apelos à compaixão para com os que mais sofriam e ao perdão das dívidas [Lc 6:36-38] e tantos outros ditos, permitem compreender ainda hoje como vivia Jesus o sofrimento daquele povo e com que paixão ele procurava um mundo novo, mais justo e fraterno, onde Deus pudesse reinar como Pai de todos[7].[JAP]



[1] Segundo E. W. Stegemann/W. Stegemann, «o endividamento e a expropriação dos pequenos agricultores são os símbolos da época romana».
[2] Tanto Cesareia Marítima como Citópolis eram o dobro de Séforis e de Tiberíades, com uma população entre os vinte e os quarenta mil habitantes.
[3] É preciso referir, no entanto, que houve gente do campo, como os artesãos [era o caso de José e de Jesus, que eram tekton’s, ou seja, artesãos e não meros ‘carpinteiros’ como se usa dizer], que encontrou trabalho na construção das novas cidades e em alguns serviços urbanos (Freyne, Sanders).
[4] Normalmente, em todo o Império era costume o uso da moeda para pagar o salário dos militares.
[5] O termo aramaico mammon (da raiz ‘mn) significa «o que está seguro», o que dá segurança. Segundo Jesus, acumular mammon é incompatível com o serviço a Deus: «Ninguém pode servir a Deus e ao Dinheiro (mammon)» [fonte Q=Lc 16:13; Mt 6:24; Evangelho Apócrifo de Tomé 47:1-2].
[6] Na Galileia que Jesus conheceu, a maioria são «pobres» (penetes), mas possuem a sua pequena casa e o seu pedaço de terra, podendo subsistir graças a uma dura vida de trabalho. Os evangelhos não falam destes pobres, mas dos «indigentes» (ptochoi, ochlos), que não possuem terra, carecem de tecto e vivem ameaçados pela fome e pela desnutrição. [a propósito da expressão ‘ochlos’, cf. José Mª Castillo]
[7] Nos evangelhos não se regista nenhuma visita de Jesus a Séforis nem a Tiberíades. Dado o carácter itinerante de Jesus, tal facto resulta surpreendente e não parece uma omissão casual. Os investigadores discutem sobre qual poderia ter sido a razão. Os estudos mais recentes parecem descartar razões de carácter religioso e cultural, pois nem Séforis, nem Tiberíades eram cidades helénicas paganizadas. Bastantes pensam que Jesus as evitou para que a sua mensagem não ficasse mediatizada pelas elites (Horsley, Theissen, Reed e, em parte, Crossan). Actuando nas aldeias, tinha provavelmente a intenção de apresentar com clareza as implicações sociais do reino de Deus (Freyne). Ao mesmo tempo, Jesus procurava talvez evitar a proximidade ameaçadora de Antipas. A região fronteiriça de Cafarnaúm, com a possibilidade de cruzar o lago, permitia-lhe dirigir-se rapidamente para fora dos seus domínios (Hochner, Reed, Sanders).

26 de novembro de 2011

DEUS ESTÁ DO LADO DE LÁZARO E NÃO DO RICO GLUTÃO


Fim-do-mês_RSI_Utentes



Parábola
do homem rico e glutão
e
do pobre Lázaro [=’Deus-ajuda’]
(Lucas 16:19-31)



§ «Havia um homem rico  que se vestia de púrpura e linho fino e fazia todos os dias esplêndidos banquetes.» Tratar-se-ia dum publicano? Existe um relato, ao qual provavelmente Jesus se ligou, que descreve a “estória do rico publicano Bar Ma’jan e do pobre escriba” que se encontra no Talmud palestinense. O rico publicano Bar Mar’jan morreu e teve um funeral solene – toda a cidade parou, porque toda a gente queria acompanhá-lo na sua última viagem. Ao mesmo tempo morreu um piedoso escriba e ninguém teve notícias do seu sepultamento. Como pode Deus ser tão injusto a ponto de permitir isto? A resposta fez-se ouvir: Bar Ma’jan, longe de levar uma vida piedosa, tinha feito uma só vez uma boa obra e, aquando dela, fora surpreendido pela morte. Uma vez que é ‘a hora da morte’ que decide, e a boa obra já não poderia ser mais revogada (fora feita), estava, assim, aberta a porta para que Deus o recompensasse permitindo um magnífico cortejo fúnebre. E qual tinha sido a boa obra do publicano que se tornara rico ao longo da vida? Tinha organizado um banquete de festa para os membros do Conselho (Sinédrio), que, porém, não compareceram. O 'Homem rico' da Parábola que Jesus conta era/fora de facto 'um Publicano', um Alto Funcionário dos Impostos, uma espécie de «pato bravo», como um «novo rico», como um desses muitos portugueses que se aproveitaram das crises civilizacionais para «fazer negócio» - um de entre muitos espertalhuços… com faro para o dinheiro e jeito para arriscar (na Bolsa...). Um de entre muitos dos pseudo-intitulados «casos de sucesso»… 

§ «Um pobre, chamado Lázaro, jazia ao seu portão, coberto de chagas».  Era um proscrito pela ‘justiça judaica’, ou seja, aos olhos da teologia dos fariseus, um excluído dos favores de Yahvé. Se estava naquele estado, ‘alguma teria feito’… Não é impunemente que se cai na desgraça absoluta: muito provavelmente, tratar-se-ia de alguém que desleixara ou, até mesmo, menosprezava a Thora, os mandamento de Deus e a prática dos preceitos religiosos. Em suma, uma pessoa desprezível, um ímpio, um ‘ateu’, um revoltoso ou um malfeitor qualquer, um «transviado», que circula por «maus caminhos» (Salmo 125:5 - «Mas, àqueles que se desviam por caminhos tortuosos, o Senhor dará a sorte dos malfeitores.»); pessoa que não vai à Missa, alguém sem religião e sem Deus, um agnóstico. Tudo aponta para que fosse um «malvado», alguém asqueroso aos olhos do «mundo bem comportado», alguém que cheirava mal… uma geografia estrangeira aos muros territoriais da nossa paróquia!

Curiosamente, esta figura – Lázaro – está pintada com traços que fazem lembrar o Cântico 4º do Servo de Yahvé (Profeta Isaías 53)


Sem figura nem beleza.
Vimo-lo sem aspecto atraente,
desprezado e abandonado pelos homens,
como alguém cheio de dores,
habituado ao sofrimento,
diante do qual se tapa o rosto,
Menosprezado e desconsiderado.(…)

Nós o reputávamos como um leproso,
ferido por Deus e humilhado.
Mas foi ferido por causa dos nossos crimes,
esmagado por causa das nossas iniquidades.
O castigo que nos salva caiu sobre ele,
fomos curados pelas suas chagas.
Todos nós andávamos desgarrados
como ovelhas perdidas,
cada um seguindo o seu caminho.

Mas o Senhor carregou sobre ele todos os nossos crimes.
Foi maltratado, mas humilhou-se e não abriu a boca,(…)

Quem é que se preocupou com o seu destino?
Foi suprimido da terra dos vivos,(…)

Foi-lhe dada sepultura entre os ímpios,
e uma tumba entre os malfeitores,
embora não tenha cometido crime algum,
nem praticado qualquer fraude.
Mas aprouve ao Senhor esmagá-lo com sofrimento,
para que a sua vida fosse um sacrifício de reparação.


Lázaro com as cores dum malfeitor, dum «aniquilado», dum «esmagado» (=’esvaziado’ é pobre tradução) (‘kenótico’, Filipenses 2:7ss). Mais tarde (Hebreus 2:17-18), Jesus seria apresentado como mais uma vítima injustiçada e «esmagado pelo sofrimento» dos outros. Os fariseus, ao ouvirem esta história/parábola da boca de Jesus começaram a sentir de que lado «o Deus de Jesus» se estava a querer posicionar… Nós, cristãos, ao ouvirmos agora estes relatos – Parábola e Isaías – fazemos de imediato curto-circuito entre «a sorte» de Lázaro, «a sorte» do Servo de Yahvé e «a sorte» de Jesus de Nazaré: o «esmagamento kenótico», um fim miserável e ignominioso aos olhos dos religiosos e dos piedosos do tempo de Jesus! Também a teologia, à época, o confirmava ideologicamente: «o enforcado é uma maldição de Deus» (Dt 21:23) – será maldito, diante de Deus, o homem pendente do madeiro! Jesus acabaria, igualmente, dependurado dum madeiro (Cruz), semelhante aos revoltosos da Galileia, malfeitores, maltrapilhos e marginais miseráveis do seu tempo, como um rejeitado (pela hierarquia oficial), um excluído da Salvação oficial...

A situação de Lázaro era a de um proscrito. Para malfeitores e sediciosos é que o Madeiro, (com forma de Cruz ou não), foi criado pelo Império Romano. A Cruz, ou «madeiro», assentaria como uma luva, também, a Jesus: Jesus fora condenado como um revolucionário, um sedicioso, um perigoso marginal,  um malfeitor. Lázaro (e Jesus que, nesta Parábola, com ele se identifica)  representa todos os marginais do nosso tempo: arrumadores de carros, drogados, prostitutas, pequenos larápios, vadios, bêbedos, meninos sem família, ‘romes’ (romenos, vulgo ‘ciganada’), etc. Jesus, durante a sua actividade pública, virá a ser ouvido, acolhido e seguido por essa «escumalha»; Jesus seguirá um mapa outro, fora do tom, precisamente o daqueles a quem os ideólogos de David Cameron gostariam de «matar à mocada como se faz às focas bebés» [«The Politics of Envy was Bound to End Up in Flames», 12 Agosto 2011, www.daily-mail.co.uk].(cf. 15 Nov 2011, «A SALA DE CIMA», http://asaladecima.blogspot.com/). Curiosamente, Jesus não era seguido pelos «simples», pelos «pobres», pelos mal-remediados: Jesus era seguido pelos ‘ochlos’, pela ‘escumalha’ mesmo… por aqueles que não tinham ‘nem eira nem beira’, pelos que tinham caído na valeta, pelos ‘sem-abrigo’! Jesus não andava metido em IPSS’s… de mão estendida ao Poder Político a pedir subsídios para remendar a situação! Jesus denunciava a situação – por isso o decidiram matar. (Lucas 4:29)


§ «Bem desejava ele – o homem rico –  saciar-se com o que lançavam para debaixo da mesa do rico; mas eram os cães (!!!???) que vinham lamber-lhe as chagas.» Ora a expressão «cães» era a expressão usada pelos judeus ciosos da sua filifiação divina para sinalizar os não-judeus, os pagãos, os rejeitados por Yahvé. A mulher «era gentia, siro-fenícia de origem, e pedia-lhe que expulsasse da filha o demónio. Ele respondeu: «Deixa que os filhos comam primeiro, pois não está bem tomar o pão dos filhos para o lançar aos cães.» [Marcos 7:26-27] Mais uma vez temos a oposição entre «os crentes» e os «não-crentes» - os «não-crentes» são estigmatizados com expressões humilhantes. Ainda hoje o fazemos: os utentes do RSI são «preguiçosos», «parasitas sociais», «oportunistas», «gastadores», «irresponsáveis», «desenvergonhados»… por isso «devem pagar o subsídio social com trabalho social à comunidade» (como se não fosse mais que justo o direito a ajuda social pelo estado de exclusão social a que o sistema neoliberal os sujeita…). Que as classes ricas «lancem comida boa para debaixo da mesa», ou seja, esbanjem e fujam ao fisco (que chega a ser 58 vezes mais do que o valor das fraudes sociais…), nada disso escandaliza!


§ «Ora, o pobre morreu e foi levado pelos anjos ao seio de Abraão». Nem direito teve a honras fúnebres…. Mas foi colocado «à direita do pai», – Mc 16:19; Act 7:55; Rom 8:34 – e, então sim, teve direito a lugar de honra no Banquete do Reino.

§ «Morreu também o rico e foi sepultado». Funeral com honra, pompa e luxo!

 § «Na morada dos mortos, achando-se em tormentos, ergueu os olhos e viu, de longe, Abraão e também Lázaro no seu seio.» Curiosa inversão das relações sociais… Rico na terra/pobre em Deus; Pobre na terra/rico em Deus… ‘Deus’ é o Deus dos abandonados… - Deus não está do lado daqueles a quem lhe corre bem a vida, Deus não abençoa ‘o sistema’ que produz pobres e explora o povo humilde…

§ «Então, ergueu a voz e disse: ‘Pai Abraão,». O rico, usando a expressão Pai!, apela para a sua condição de ‘baptizado’, de pessoa íntima na Fé, de «homem religioso», cumpridor das NORMAS religiosas, apela para a condição de quem «está dentro da igreja» e que não é nenhum excomungado! Recorda a Deus que ‘deve estar equivocado’

(MATEUS 3 - Apelo de João à conversão (Mc 1,7-8; Lc 3,7-9.15-18; Jo 1,24-28) - 7Vendo, porém, que muitos fariseus e saduceus vinham ao seu baptismo, disse-lhes: «Raça de víboras, quem vos ensinou a fugir da cólera que está para vir?   8Produzi, pois, frutos dignos de conversão 9e não vos iludais a vós mesmos, dizendo: ‘Temos por pai a Abraão!’ Pois, digo-vos: Deus pode suscitar, destas pedras, filhos de Abraão. 10O machado já está posto à raiz das árvores, e toda a árvore que não dá bom fruto é cortada e lançada no fogo.)

Aqui, o homem rico «puxa dos galões»… (para ter direitos a segurar no palio, a exercer mordomias na paróquia, etc). Fez como certas pessoas que, pelo facto de serem zeladoras seculares de ‘coisas e loisas’ se acham com direitos de supremacia… e a regalias.

§ «tem misericórdia de mim e envia Lázaro para molhar em água a ponta de um dedo e refrescar-me a língua, porque estou atormentado nestas chamas.» «Abraão respondeu-lhe: ‘Filho,». (Curioso como Deus não o abandona… Trata-o carinhosamente por FILHO!!! Deus ama a todos por igual!!!, sobretudo os desesperados) «Lembra-te de que recebeste os teus bens em vida, enquanto Lázaro recebeu somente males. Agora, ele é consolado, enquanto tu és atormentado.» Para o Deus de Jesus de Nazaré, a inversão das posições significa que Deus não permite que se use a «religião» para anestesiar a consciência do Povo, para «lavar os pecados» antes da hora da morte. Chamar o Sr. Abade à hora da morte não vai mudar em nada o essencial! E o essencial é a única vida que existe – a vida terrena! No Cristianismo não há «vida para além da morte»: só há uma vida – esta de aqui de baixo! É aqui que tudo se joga (ou não joga…). O texto parece dizer «o que está feito, feito está» - é tarde demais para fazer seja o que for. É por isso que ninguém ressuscita depois de morto - «vamos ressuscitando desde que nascemos»… Os que foram humildes, leais, justos, mesmo que desprovidos de uma consciência cristã esclarecida ou convicta, esses ressuscitarão sempre, pois Deus não pode esquecer-se de nenhuma ovelha sua. Não precisamos de pedir misericórdia nenhuma a Deus – Ele sabe bem o que tem a fazer… Seria presunção nossa também «puxarmos dos galões».

§ «Além disso, entre nós e vós há um grande abismo de modo que, se alguém pretendesse passar daqui para junto de vós, não poderia fazê-lo, nem tão-pouco vir daí para junto de nós.’» Impressiona a irrevogabilidade das decisões divinas! Soa a ‘justiça justiceira’, mas não é. Apenas quer dizer isto: só as NORMAS religiosas … não bastam… não chegam para convencer Deus, não chegam para fazer Metanoia/«converter», para «mudar de vida como deve ser»… Como que o texto nos quer dizer que o Mal não habita o ‘meio divino’ (Theillard de Chardin), logo não pertence ao Reino de Deus, logo Deus não pode fazer nada, logo mora na terra dos homens e aí e só aí deve ser administrado e gerido. Deus «passa a bola» do Mal ao homem. Deus não tem poder sobre o Mal. De nada nos vale «comercializar» com Deus em matéria do que quer que seja… Jesus não estabelece pactos com o Mal, não negoceia. Por exemplo: é claro que Jesus desconhece a «teologia do Purgatório»…, face e rosto da concessão, em que se negoceia, se compara, pesa e mede o Mal de cada um consoante… (sabe-se lá o quê..). Isso, os negócios acerca do futuro da Alma no Além, pertence à Religião em geral, à Egípcia, em particular, à Grega, etc.   Com Deus, o comércio (intenções e súplicas, etc.) está proibido. Súplicas a Deus é sinal de pouca Fé ou «falsa-fé»! Súplicas a Deus-Pai é sinal de «falta de intimidade» com Deus-Pai!

§ «O rico insistiu: ‘Peço-te, pai Abraão, que envies Lázaro à casa do meu pai,». É óbvio: o rico nem por sombras se quer converter e mudar de vida…! Faz orelhas moucas ao que está em causa (que é ele e o seu comportamento em vida…), faz-se despercebido e muda a agulha da conversa: «pois tenho cinco irmãos; que os previna, a fim de que não venham também para este lugar de tormento.’» O homem-rico tenta encontrar uma maneira de fazer chegar à restante família, ou seja, aos curadores da fortuna, os truques para que a família se salve INDEPENDENTEMENTE da vida gananciosa que leva, para que a sua família, após a morte, CONTINUE A USUFRUIR DE PAZ E CONFORTO como sempre usufruiu na terra. É muita lata! Abraão (que aqui representa Deus), responde-lhe: ‘Nã, nã... Nada feito!’ O Homem Rico sente-se enjaulado. Tal como “Lázaro-a-recibos-verdes-e-precário” durante toda a vida - as portas todas trancadas – assim se sente agora o homem rico. De cabeça perdida, busca todas as hipóteses, desde que não se toque na fortuna!

«Tenho 5 irmãos» (v.27). «Lugar de tormento» (v. 28). O algarismo «5» pode ser lido como referência à Lei de Moisés (que tinha 5 livros: Génesis, Êxodo, Levítico, Números e Deuteronómio – Penta-teuco), à Thora, à religião por oposição à teologia de Jesus. Jesus quer dizer que «viver na Antiga Aliança» nesta terra é «um lugar de tormento» eterno... Noutro lugar dirá que «o meu jugo é leve», referência explícita às mais de 700 Obrigações decorrentes da Lei de Moisés, que um judeu piedoso deveria cumprir. Nós cristãos traduzimos isto assim: uma Fé que decorra de «obrigações» é uma Religião e nunca uma Aposta/Fé no Espírito de Jesus. S. Paulo dirá: «onde está o Espírito (de Jesus) está a Liberdade» e não as obrigações ou as Obras a cumprir. Os Fariseus que escutaram esta Parábola deviam ter as orelhas a ferver… Uma Fé contaminada (sobretudo, pela avareza e pelo cobiça do dinheiro – Lucas 16:14) bloqueia o Poder Libertador de Deus e já não é Fé: é um tormento, uma angústia constante, um sobressalto (‘Ai as minhas pratas!’ ‘Ai os meus anéis de heranças!’ ‘Ai o recheio da casa!’).

Viver no Antigo Testamento (AT), «viver no seio dos 5 irmãos», é viver atormentado por:

-Medo dum Deus justiceiro, dum Deus que impõe Rituais a cumprir e Obras a realizar;

-Medo de perder a segurança que a Fortuna (o dinheiro, Mamon) confere.


(Reparem: «Religião» e «dinheiro» sempre andaram de mãos dadas... Jesus vem denunciar essa nefanda Aliança!)

 
No fundo, viver no AT é ter medo d«o Reino de Deus e da sua Justiça»! (Mt 6:33) É viver em pânico...

Viver em Jesus é nada temer...


§ «Disse-lhe Abraão: ‘Têm Moisés e os Profetas; que os oiçam!’ 30Replicou-lhe ele: ‘Não, pai Abraão; se algum dos mortos for ter com eles, hão-de arrepender-se.’ 31Abraão respondeu-lhe: ‘Se não dão ouvidos a Moisés e aos Profetas, tão-pouco se deixarão convencer, se alguém ressuscitar dentre os mortos.’»



Grafitti_Raúl Dória_Porto

 

A Salvação no contexto helenístico [Lc 22:25] baseava-se em:

  • Poder Imperial que salva através dos «benfeitores», dos poderosos, dos Imperadores, dos ‘Bill Gates Foundation’ que concedem «migalhas» (ex.: Fundações António da Mota e Cia…);

  • Alienação Religiosa – através das «religiões dos mistérios» e «iniciação» como fuga da angústia e do medo «vulgares»; e  através das religiões do grandioso, do êxtase, do maravilhoso, do surpreendente, do epidérmico, da quantidade que corta a respiração, religiões do espectáculo! A religião do esotérico!



O Homem Rico pedia «um sinal» desse tipo – grandioso, que se impusesse de per si! Deus recusa, tal como Jesus já havia recusado a «religião do espectáculo» nas Tentações do Deserto (Lucas 4:9 - «Em seguida, conduziu-o a Jerusalém, colocou-o sobre o pináculo do templo e disse-lhe: “Se és Filho de Deus, atira-te daqui abaixo, pois está escrito: Aos seus anjos dará ordens a teu respeito, a fim de que eles te guardem; e também: Hão-de levar-te nas suas mãos, com receio de que firas o teu pé nalguma pedra.”»). Para Jesus, a Fé é a adesão a um projecto humano, libertador e total. E isso passa pela proximidade, exige vizinhança de vidas, envolvência, coisas do dia-a-dia muito simples, afinal.


Existem 2 «opressões», duas maneiras de partir a espinha a um Povo:

Espremendo-o, pagando-lhe mal e carregando-o com trabalhos pesados (=trabalho precário & baixos salários não fazem greve…)

e

Convencendo-o de que não há alternativa (=papel da Religião, da Ideologia, «vivemos acima das nossas posses, agora tem que ser a doer», sofrendo ganhamos a vida eterna).

Deus opõe-se (1) ao Poder Economico-político injusto e (2) ao Poder Religioso da ideologia!

Nesta Parábola estão bem claro estas duas coisas.

E mais.
Não esperar que o Messias venha fazer aquilo que só nós mesmos temos/devemos fazer.

Não confiar na Salvação a partir do Poder Político e Financeiro, do Sagrado, da Religião, do Poder Miraculoso de Deus ou do Sacerdote, a partir apenas duma relação espiritualizada e piedosa com Deus – a Libertação de Jesus passa pela assunção das causas dos desprezados, dos «sem vez nem voz» como sendo as nossas únicas causas.

Jesus aponta para «Moisés e os Profetas», que o mesmo é dizer, «para os Profetas», pois Moisés é visto, também, como um Profeta... (cf. o final do Livro do Deuteronómio).
Aos Profetas incumbe-lhes apontar as Causas do Mal e os Culpados pelo Mal - o 'evangelho de Jesus' assume, também, essa tarefa salvífica - DENUNCIAR e ANUNCIAR!, e nunca remediar o Mal...
Aos «5 irmãos» só lhes resta uma coisa: «vender tudo o que têm (que foi saque aos trabalhadores), entregar aos pobres (isso mesmo) e seguir a Jesus». A nós – que somos a réplica desses 5 irmãos AINDA VIVOS! – não nos resta nada de diferente.

Não percamos tempo com manipulações espirituais. Deus nunca há-de cair nas nossas esparrelas…

Só um rosto nos revela nós a nós!
Busquemos rostos. Já. Aqui. Agora.
É que, depois, poderá ser tarde demais… «É sempre tarde demais».

A Bíblia nunca remete para o Além, mas sempre para o Aquém!
É no Aquém que se vive o Além...

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