teologia para leigos

28 de fevereiro de 2014

SER CASAL [ERICH FUCHS]





O homem e a mulher:
- uma humanidade a fazer
Reflexões éticas.


 (…) inovadores – para não dizer provocadores. Pensamos ser hoje possível alargar a perspectiva e dizer que o casal humano é portador de uma tríplice promessa: ser, para o homem e para a mulher – um pelo outro – o espaço de uma realização da liberdade, da fidelidade e da conjugalidade. Por conseguinte, o casal corre o risco de um tríplice fracasso: tornar-se, para o homem e para a mulher – um pelo outro – o espaço da experiência mortal do afundamento, da mentira e da alienação.


a)  A fidelidade

Podemos tornar compreensível este jogo ético fazendo-o através da reflexão sobre o tema do discurso moral cristão – a fidelidade – provavelmente o mais contestado, hoje.

«Prometo ser-te fiel até que a morte nos separe.» É o que o esposo e a esposa prometem um ao outro no dia do casamento[1]. Promessas hipócritas, linguagem legalista ou insignificante à força de inconsciência? É considerável o mal-entendido sobre o sentido da fidelidade. Procuremos ver um pouco mais claro!

Julgo que podemos partir da seguinte observação: na nossa sociedade, ouvem-se dois discursos contraditórios sobre a fidelidade, discursos que parecem corresponder ao de duas gerações.

O primeiro pertence provavelmente a uma sociedade em vias de desaparecimento. Nela, a fidelidade é pensada e vivida, sobretudo, como fidelidade a um compromisso passado! «Um dia, eu prometi uma coisa: a minha fidelidade consiste em não pôr em causa tal promessa, mesmo que as dificuldades a façam mais problemática».
O homem que assim fala considera-se responsável por uma certa ordem das coisas; coopera nela com o seu empenhamento e mantém-no pela sua fidelidade. Assim, o casamento, mesmo não sendo cor-de-rosa todos os dias, enquanto instituição merece ser defendido pela fidelidade dos esposos. No limite, – caricaturando esta posição – podíamos dizer que o conteúdo da fidelidade, aqui, importa menos que a sua forma. A tónica é posta na continuidade institucional, mais do que na qualidade da relação das duas partes em causa. Assim, dir-se-á que se permanece fiel mais ao compromisso do que à pessoa em relação à qual ele foi tomado. Ligado a um outro tipo de sociedade – caracterizado sobretudo por carências de estabilidade – este conceito de fidelidade volta a surgiu na sociedade feudal, construída sobre o laço da aliança entre o senhor e o vassalo, como surgirá também na sociedade burguesa, na qual a fidelidade está unida à propriedade de bens, de que se tem o direito exclusivo a «usufruir», por analogia com a esposa!
Esta perspectiva tende a proteger os indivíduos perante os riscos da liberdade ou, antes, a liberdade aparece situada de modo muito definido pelo próprio compromisso: esse deve ser livre, mas, uma vez assumido, condiciona rigorosamente a liberdade. Ser fiel é estar ligado. O valor desta maneira de falar da fidelidade é o de inseri-la numa perspectiva social. De certa maneira, nela, o indivíduo submete-se às necessidades da sociedade. Em contrapartida recebe uma segurança maior. Porém, ficam à vista os limites desta segurança: ela favorece frequentemente a hipocrisia de uma fidelidade formal que oculta uma infidelidade real (é o grande recurso do teatro burguês!); por outro lado, entra quase sempre em conflito com as necessidades reais do indivíduo e da sua evolução.

Por isso, faz-se ouvir cada vez com mais frequência um novo discurso que coloca a questão da fidelidade de modo completamente diverso. Nesse discurso, a fidelidade é descrita como fidelidade a si mesmo: desenvolvimento harmonioso, desenvolvimento do indivíduo. Toda a relação humana e social está medida por este critério: a pergunta é - ela favorece ou impede esta fidelidade a si mesmo? Portanto, o que antes de mais se estabelece é a liberdade do sujeito, tanto para si como para o parceiro da relação (por exemplo, no casamento). O compromisso assumido é o de um contrato cujos termos prevêem que os parceiros possam constantemente modificar o seu conteúdo em função da situação deles. Assim se passou, como muito bem mostrou W. Ossipow, de um sistema baseado na ideologia da propriedade fundiária estável e exclusiva para um outro sistema assente na ideologia capitalista da fluidez do dinheiro. Tal como se investe o dinheiro onde ele rende mais e o retiramos quando o investimento já não é mais rendível, «investe-se» o desejo onde ele pode «render» o máximo, ou seja, onde ele pode favorecer ao máximo o desenvolvimento pessoal. Se o outro for um obstáculo a este desenvolvimento, mais vale afastá-lo. É típico desta perspectiva a afirmação de que «a verdadeira fidelidade é a que permite crescer juntos e, por vezes, crescer até ao ponto de decidir-se pela separação, se esta for a única via para percorrer as fases posteriores».[2]

Ligado a uma sociedade de extrema mobilidade, este conceito da felicidade não une o presente ao passado, mas sim o passado ao presente. O que foi livremente decidido outrora é julgado pela bitola daquilo que hoje se vive. Tal concepção, permite, pois, adaptarmo-nos com flexibilidade à eventualidade de uma evolução pessoal móvel. Neste caso, o presente é mais importante do que o passado, e mais do que o futuro, já que também o futuro é rigorosamente condicionado pelo valor possível do presente. Aqui, os riscos da liberdade são assumidos ao máximo, pois o casal é considerado como a resultante, porventura provisória, de duas liberdades iguais e igualmente livres de procurar o seu máximo desenvolvimento.

Não se tome esta perspectiva como caricatura, pois, aliás, nela vivem em nossos dias muitos casais, casados ou não. Nela se encontra, sobretudo do lado das mulheres, a justa afirmação do direito à existência pessoal e a recusa de sacrificar a sua própria vida sobre o altar dos princípios institucionais ou morais. Há também a vontade de não se deixar apanhar pela hipócrita insignificância das relações formais, de recusar o fingimento e, desse modo, cometer um acto de alcance político que ponha em questão, com e por detrás do casamento, a própria sociedade e as suas pressões alienadoras. Mas é importante ver que tal posição é a tradução, de consequências muitas vezes dramáticas no plano da moral, da ideologia da sociedade capitalista de consumo. Com frequência atinge uma exaltação perversa, porque absoluta, dos direitos do indivíduo no próprio momento em que, ao fazê-lo, o indivíduo aceita os imperativos mais exigentes e mais alienantes da ideologia do tempo! Por outro lado, ela exprime, até nas suas interrogações mais incisivas, a incapacidade em que se encontra o homem desta sociedade de consumo de suportar o real na esperança de uma promessa.

Penso que existe um outro caminho: o caminho daquilo que podíamos chamar utopia evangélica da fidelidade. Baseia-se nas noções de projecto e de limite. Em que é que se comprometem as pessoas que declaram querer ser fiéis uma à outra por causa do Evangelho? Podemos distinguir diversos elementos:

– Primeiro, uma comum vontade de se empenharem num projecto conjunto; esse projecto seria reconhecido como suficientemente importante para que os parceiros decidam comprometerem-se a pôr em comum aquilo que eles são, com vista à sua realização.

– A palavra forte, nesta perspectiva, é o futuro que se dá como o que é possível no cumprimento do projecto. O passado permite, com certeza, medir o caminho percorrido, mas já não é determinante, como não o é o presente, cujo sentido vem da sua abertura ao futuro.

– É por isso que, em nome do projecto em vista, os parceiros do compromisso declaram-se prontos a confiarem um no outro e a deixarem-se interpelar, modificar e transformar um pelo outro a fim de melhor corresponderem ao projecto. Há aqui, portanto, história, porque cada um deles renuncia a ficar onde está para progredir, por causa do outro e de si, no sentido da realização visada.

Esta definição pode aplicar-se a outros domínios além da vida conjugal, por exemplo à vida religiosa, às relações com Deus ou de Deus com o Seu Povo. No domínio conjugal, significa para os dois esposos que eles se consideram como as testemunhas mútuas deste projecto, o qual é, aqui, exactamente a própria constituição do casal. Cada um é para o outro o próprio sentimento do projecto, enquanto ele está ligado e empenhado na mesma história a construir. Assim, nesta perspectiva, o casal não é nem o resultado dum contrato passado nem o confronto permanente de duas liberdades que se conservam autónomas, mas esta realidade nova, esta «pessoa» nova que resulta da permuta de dois seres que aceitam reconhecer-se mutuamente como sua promessa e seu limite.

O outro como promessa quer dizer, como diz o apóstolo Paulo, aquele que dá sentido ao meu próprio corpo (1Cor 7:4; Ef 5:28). O outro dá-me sentido não só porque permite que me realize a mim próprio, mas sobretudo e mais profundamente, porque ele sou eu enquanto promessa, enquanto projecto, como eu sou ele dentro dom mesmo projecto. Mas, nesta perspectiva, o outro é também o meu limite, precisamente porque ele encarna o facto de aquilo que me é indispensável ser também o que me escapa, o que não me pertence. Não o posso amar sem aceitar o risco desta confissão, que me põe nas suas mãos[3]. O outro é, assim, o sinal, mesmo quando a relação leva a um fracasso, de que eu não sou autossuficiente: eu só sou nesta relação de risco e neste dom. Ou seja, eu só sou nesta dependência do outro ao qual eu me uno, pois é necessário também que o outro me faça o dom da sua liberdade, a fim de que a nossa permuta se torne criadora de uma outra vida, de uma pessoa nova[4].

Nesta perspectiva, o compromisso mútuo só pode ser irreversível e sem outra garantia senão a do outro mesmo[5]. Assim, neste caso, a fidelidade não é nem fidelidade a si mesmo, nem fidelidade a um compromisso passado (ainda que estes dois elementos não se encontrem evidentemente ausentes), mas fidelidade a esse dom recíproco que é exactamente o projecto em nome do qual se comprometem um com o outro. Ora, este dom só é verdadeiro se for total e sem reserva (se a semente não morrer…!). Quando o dom é parcial, limitado, já não pode ser a condição da permuta de que falámos. Está sob a ameaça do cálculo, é relação económica em que os parceiros se dão sempre guardando as suas reservas! Corre-se o risco de se passar duma perspectiva evangélica para uma perspectiva económica.

Por isso, na perspectiva evangélica, não pode haver confusão entre a relação conjugal, única, privilegiada e particular, e as outras relações interpessoais. A primeira é uma permuta total, em que a troca dos corpos significa mas não esgota, um dom recíproco de duas liberdades. As segundas não passam duma analogia da primeira: outras mulheres ou outros homens são também a promessa e o limite dos dois parceiros do casal, mas de uma outra forma. Elas ou eles são a promessa duma valorização e de um reconhecimento, mas também a própria expressão do limite, pois que elas ou eles recordam precisamente aos dois parceiros que não são livres do seu dom, das suas vidas, mas que estão vinculados.


b)  A liberdade

É a altura de falarmos do problema da liberdade. De facto, que significa a liberdade na vida daqueles que se vincularam pelo dom recíproco e pelo compromisso conjugal? A perspectiva evangélica não separa liberdade e fidelidade, ao contrário do que, tantas vezes, pensa o homem actual, que critica a exigência de fidelidade em nome da liberdade. Mas, porventura, não se trata da mesma concepção de liberdade? A de que nós estamos a falar encontra a sua plena revelação na vida e na obra de Jesus Cristo. O que surpreende o leitor dos Evangelhos é que Jesus nunca vive a liberdade como se ela consistisse em abdicar de toda a autonomia para se submeter às exigências de uma lei exterior, que se propõe como norma absoluta. Essa liberdade, que encontra o seu sentido no consentir livremente na heteronomia  absoluta, é a dos rabinos fariseus. Jesus opõe-se-lhe em nome da exigência que, certamente pela lei, mas tendo raiz para lá dela, faz apelo ao risco do amor.

Por outro lado, Jesus também não vive uma liberdade enquanto afirmação da autonomia absoluta, como se o homem fosse o próprio fundamento de si mesmo. Ele, justamente, não situa o problema da liberdade em termos de permitido/proibido. Jesus encarna uma maneira de viver na liberdade, que é concretamente uma prática libertadora, isto é, uma prática da relação com o outro que procura sempre libertá-lo das suas alienações. A liberdade de Cristo de se aproximar de qualquer homem reconhecendo-o por aquilo que ele é realmente, ou seja, um filho de Deus ferido, chamado ao festim do Reino, tem como consequência libertar o homem do seu próprio enclausuramento, seja devido ao olhar dos outros, seja devido à sua própria culpabilidade. A liberdade de Cristo é libertadora porque permite ao homem aperceber-se da sua verdade última, a de ser habitado pelo amor criador de Deus. As curas efectuadas por Cristo são o sinal dessa recriação que se opera no homem quando ele consente em ser amado.

Se a liberdade é isso, ela tem um duplo significado para a relação conjugal. É, antes de mais, libertação do seu próprio medo perante o outro. Podemos interrogar-nos, a propósito, se falar da liberdade como a liberdade sexual de se escolher outros parceiros além do cônjuge não exprime muitas vezes o medo real de uma relação verdadeiramente profunda, que implique um descentramento de si e um lúcido conhecimento da ambiguidade que habita em nós. Ora, não existe verdadeira relação, para lá duma partilha momentânea, a não ser onde estejam apaziguados os medos, ao mesmo tempo que só uma verdadeira e paciente relação permite tal apaziguamento.

Mas, acima de tudo, a liberdade de que o Evangelho fala é a que permite a libertação no outro de tudo aquilo de que ele é portador. Por isso, o casal autêntico insere-se forçosamente no tempo e no espaço, um tempo e um espaço constituídos por tudo o que eles se permitiram descobrir mutuamente em cada um. O casal é, neste caso, se me atrevo a dizê-lo, o espaço dum exercício prático de libertação, no sentido em que cada um permite ao outro existir na sua verdade ao mesmo tempo singular e conjunta, exprimindo em termos de vida diária as suas próprias riquezas. Quer dizer que a liberdade, antes de mais, é uma escuta paciente e confiante fundamental: o mistério do outro encontra em Deus a sua profundidade última e é, por isso, irredutível (o que me impede para sempre de tentar objectivá-lo), mas é todavia necessário que se exprima na vida concreta.

Assim, a experiência que o casamento permite a cada um dos cônjuges fazer é a de uma liberdade descoberta graças à confiança libertadora do outro. De novo, a sexualidade pode exprimir esta confiança, que liberta o outro dos seus receios e angústias, para lhe permitir que manifeste pelo seu próprio corpo a alegria e a ternura, o prazer e o divertimento. E provavelmente não será de mais uma vida inteira para explorar este caminho de liberdade! A liberdade significa o verdadeiro reconhecimento do outro, não num sentido estático, tal como é, mas num sentido dinâmico, ou seja, tal como é chamado a tornar-se pela expressão progressiva de todas as suas riquezas potenciais. A liberdade é, pois, inseparável de uma esperança para o outro e de um projecto comum. Compreende-se que a liberdade assim definida seja totalmente incompatível com a liberdade que, alinhando com as exigências do desejo, acaba por considerar que o único sentido do outro é o de fazer o papel de incentivador da minha própria afirmação ou de estimulante do meu prazer. O desafio ético da sexualidade está assim definido: ou exprime e permite a redução do outro à sua função sexual (seja pelo prazer ou pela procriação, nesta perspectiva tanto faz!), significando uma vontade de poder fazer do outro uma coisa, ou abre lugar à linguagem do deslumbramento perante o que no outro continua a ser mistério irredutível, facto então que o jogo erótico não deixará de aprofundar e celebrar.

Eis porque, numa perspectiva cristã, se pode falar com toda a razão de ascese da vida conjugal. Não no sentido duma limitação voluntária da vida sexual, que em si mesmo seria meritória, mas no sentido de uma atenção paciente e recíproca dos cônjuges ao que os habita, uma recusa de reduzir à aparência a profundidade das suas existências. É assim que a vida conjugal se torna em aprendizagem de um novo modo de olhar a realidade, a qual sabemos habitada por uma presença. É construir um mundo onde comer se torna comungar e fazer amor se torna celebração das maravilhas do amor de Deus; onde o dom do corpo significa o dom da sua fragilidade oferecida, o risco de dar uma vida inteira; onde o próprio corpo se torna o sinal do que o habita e o meio de o dizer a um outro e de o celebrar com ele. Assim, o corpo, em que o outro se dá tal como é, ou seja, infinitamente mais do que este mesmo corpo, torna-se, no amor, o próprio lugar da mais espiritual, da mais despojada, da mais «casta» apreensão da presença do outro. Esta simbologia do corpo é experimentada no momento em que, entregando-se a si mesmos, um ao outro, como pessoa/corpo no despojamento que a nudez significa e na ausência final de qualquer pretensão, o homem e a mulher dão-se vida, irradiam um e outro uma vida que é muito mais que qualquer um deles.

Podemos dizer que o empenhamento do casal é, neste caso, permitir que o amor organize toda a existência como símbolo em volta desta relação entre o carnal e o espiritual e onde todas as coisas, até as mais materialmente concretas, se destinam a significar o dom, mas também onde reciprocamente o espiritual e o carnal jamais se separam.

Há nesta compreensão da existência conjugal uma polémica implícita contra qualquer redução do outro ao seu corpo, da realidade às coisas que a constituem, do amor ao prazer. Aceitar a descoberta desta simbologia profunda da vida é pôr em causa a ideologia dominante da nossa sociedade ocidental, a tríplice ideologia da força possessiva, da violência material e da objectivação mercantil.

Como vemos, a ascese de que estamos a falar não é de modo nenhum uma impotência de viver ou medo do desejo. É o reconhecimento da profundidade última dos seres, da sua irredutibilidade ao que se pode dizer. É, pois, uma persistência do real, uma aceitação do que o outro é realmente, no despojamento das aparências, dos fingimentos, das idolatrias. Persistir significa deixar que o tempo revele pouco a pouco a verdade do desejo que em nós habita, pelo qual uma verdade mais profunda é dita no vazio de cada dia. Há impaciências que se mostram como gritos de liberdade, quando não passam de gritos de angústia perante a necessidade de tomar o luto da omnipotência e do imediatismo.

(…)

Erich Fuchs

Padre e teólogo nascido em 1932. Foi Professor de Ética Cristã na Universidade de Lausane e de Genève, vice-presidente da Associação Ecuménica Francófona dos Teólogos para o Estudo da Moral (ATEM), membro do comité de redacção da revista de ética e de teologia moral Le Supplément; dirigiu a colecção «Champ Éthique» da Editorial Labor et Fides (Suíça).




[42 páginas]









[1] Segundo a expressão da maior parte das liturgias matrimoniais.
[2] Bernard Besret, «De commencement en commencement», Paris, 1976, p. 159.
[3] A isto se chama: «entregar todas as armas ao outro…» e ficar desarmado, nu! [NdE]
[4] Esta simbologia do dom e da permuta será precisamente o espaço em que o filho fisicamente nascido encontrará a razão de se afirmar como pessoa própria. O filho é, assim, o sinal – na sua própria alteridade – da realidade particular do casal.
[5] Eis a imagem do compromisso sem recuo que Deus toma em Jesus Cristo em relação aos homens, significado igualmente pelo amor de Cristo à Igreja.



22 de fevereiro de 2014

FELICIDADE & SENTIDO DA VIDA [pb]


«Espelho meu, espelho meu…»





É pouco comum encontrar pessoas preocupadas com a meditação: não está na moda (alguma vez esteve?). Na melhor das hipóteses, as pessoas falam de sonhos, de projectos, de serem felizes. E, no entanto, andem por onde andarem as suas preocupações pessoais, elas têm sempre que ver com o sentido da existência, ou seja, com o sentido que a(s) sua(s) vida(s) te(ê)m. É certo que, regra geral, as pessoas dizem que o sentido da vida é a felicidade: isso não deixa de ser verdade. Porém, à medida que a conversa progride começam as disjunções, ou seja, começam as questões. Sempre que não desistimos, sempre que queremos especificar e perceber melhor, então, aí começam as dificuldades: a felicidade será verdadeiramente aquilo que define a nossa essência? Dito mais correctamente: a felicidade constitui o fim último da nossa existência? Esta pergunta é, em si, um tanto estúpida.

Vejamos. Quando se pergunta a alguém para que é que vives, qual o sentido da tua vida, que gostarias de ser, que andas aqui a fazer? julgamos que estamos a falar do sentido da existência, do sentido da vida. Mas quem ouve a nossa pergunta pensa em moldes que têm mais a ver com o objectivo da sua vida pessoal. É usual responder que gostaria de ser feliz, gostaria de poder realizar certos sonhos (conhecer outros povos, viajar, ser professora, ser cientista, realizar filmes, ser cantor ou actor, ser médica, ser uma estrela de futebol, etc. etc. etc.). E, sem dar conta, mistura várias realidades numa só resposta.

É muito frequente misturarmos (confundirmos) duas realidades: a felicidade e o sentido da vida. (…)

[…]

Para Jesus, a felicidade é somente doação, sobretudo aos mais débeis e marginais[1]: «tomai e comei todos, isto é o meu corpo» (Mt 26:26; Mc 14: 22-25; Lc 22:14-20; Jo 6:51-59; 1 Cor 11:23-27). Para Jesus é possível ser-se feliz, realizar um grande sonho, passando pelos outros (Vergílio Ferreira), pelos mais débeis, antes de chegar à casa de si, à casa do ego. A antropologia de Jesus caracteriza-se pelo «excesso de dom»! Quando a nossa felicidade está centrada no mais débil, ou seja, quando ela tem o seu centro no marginal (fora de mim e fora do meu clã, e não em nós nem no nosso ego ou no ego do nosso clã) é, então, que ela encontra o seu ponto de equilíbrio estável final saudável[2]. A felicidade centrada no clã (“os da mesma raça que eu”, “os do meu clube”) é uma felicidade onde a Tradição se encarrega de policiar os desvios à lei da sobrevivência (à custa dos outros clãs). Àquela outra felicidade pessoal existência centrada no mais débil (alter-ego), e para lá do clã denominamos espiritualidade cristã. Nela, a sobrevivência é, antes de tudo, a sobrevivência do Outro (não a sobrevivência duma Religião ou de Deus como ente abstracto): trata-se duma “sobrevivência-boomerang”, em que a minha sobrevivência, antes de chegar a mim, deve passar, em primeiro lugar, pelo outro/débil (que funciona como instância de validação). É esse o sentido último da nossa vida![3], e não Deus, como explica Adolphe Gesché[4].

Às outras modalidades de felicidade chamamos projectos de felicidade, hipóteses, sonhos. Nelas está já contida como uma espécie de «sombra de um sonho» (Píndaro) a espiritualidade cristã, a qual, pelo contrário, não é uma sombra, mas um projecto bem palpável, visualizável. Um ser humano débil é demasiado concreto e ostensivo; não pode ser substituível por uma análise, um poema, um filme, um êxtase estético, uma contemplação, uma mesa-redonda ou um suspiro caritativo acerca da pobreza: um pobre fragiliza totalmente a minha espiritualidade.[5] Nas felicidades pessoais do ego também está (enterrada) em potência a doação total, a qual aí geme, tal como geme o tesouro (Mt 13:44), a pérola (Mt 13:45) e o grão de trigo (Jo 12:24), que aí estiveram enterrados e gemeram sabe-se lá quanto tempo até serem encontrados, adquiridos, arrebatados e se tornarem num apelo à conversão que só sabe multiplicar gratuitidade e dom[6].

No extremo mais extremo da felicidade está a entrega total aos marginalizados, aos mais diferentes de entre todos os outros diferentes; nesse extremo está um aflitivo pedido - «Tenho fome» (Mt 25:35) (abertura ao mais alto inesperado, a um Deus revelado na debilidade, à mais alta surpresa da alteridade).[7]


[…]

Jesus ainda pode ser uma proposta de felicidade para nós, hoje, na medida em que percebermos que o seu sonho é possível ser concretizado numa comunidade de pobres/iguais porque partilham (débeis e esfomeados, que recusam disputar o maná; Ex 16:9; Act 5:1-11). Foi essa proposta que Jesus fez quando, diante duma multidão de marginalizados, proclamou as Bem-aventuranças, caminho que nos garante que podemos ser felizes, indo além do nosso ego, sempre mais além (cf. a distribuição que multiplica e faz igualdades várias: Jo 6; Mt 14:13; 15:32; Mc 6:34; 8:1; Lc 9:10).

Para lá do nosso ego (felicidade pessoal consumista centrípeta), meditemos no sentido da nossa existência (felicidade comunitária serviçal centrífuga). É certo que ela pode trazer consequências muito sérias ao nosso ego. Algumas consequências serão, garanto-vos, muito felizes (“partilhavam tudo; em todos, uma só alma”; Act 2:46). De vez em quando, paremos um pouco para meditar seriamente no sentido que estamos a dar à nossa vida: viemos para ser servidos (por Deus, pela Natureza, pelos outros) ou para servir? Jesus veio para ser Filho[8], Jesus veio para servir e fazer a vontade do Pai (Mt 20:28; Mc 10:45; Lc 22:27b; Jo 13:11-17): construir uma humanidade fraterna. Para grandes solidões, grandes espelhos: viremos isso do avesso e busquemos um sentido para as nossas vidas que vá além da auto-estima do nosso ego.

A felicidade ao incorporar em si uma ética de compaixão ultrapassa a Moral e cria um dinamismo de Vida que, pela sua potência, terá de se alimentar dum “Amor Maior”, do amor de Deus, que é doação gratuita e fidelidade plena.

«Mal o sol nasce, Senhor,
exponho diante de ti o meu pedido
e fico à espera confiante (Salmo 5:4)



[pb]




«O MAIS IMPORTANTE É QUE EU SEJA FELIZ?»
- aquilo em que Hans Küng acredita







A comunidade

«Que bom e agradável os irmãos viverem juntos e em harmonia» (Sl 133,1)

Contrariamente ao que poderia parecer à primeira vista, não se deduz que o cristão tenha que viver necessariamente entre os cristãos. O próprio Jesus Cristo viveu no meio de inimigos e, por fim, foi abandonado por todos os seus discípulos. Na Cruz ficou completamente sozinho, rodeado de malfeitores e blasfemos. Veio para trazer a paz aos inimigos de Deus. É por isso que o lugar da vida do cristão não é a solidão dos claustros dos conventos, mas o território onde o inimigo acampa. Aí a sua missão e a sua tarefa.

«O reino de Jesus Cristo deve ser edificado entre inimigos. Quem recusa isto renuncia a fazer parte deste reino e prefere viver rodeado de amigos, entre rosas e lírios, longe dos malvados, envolto de gente piedosa. Não estais vendo que, assim, blasfemais e traís Cristo? Se Jesus se tivesse comportado como vocês, quem se teria salvo?» (Lutero)

“Dispersá-los-ei entre os povos, contudo, mesmo que bem longe, lembrar-se-ão de mim” (Zac 10:9) É da vontade de Deus que a cristandade seja um povo disperso, lançado como a semente «entre todos os reinos da terra» (Dt 4:27). Esta é a Sua promessa e a Sua condenação. O povo de Deus deve viver longe, entre infiéis, mas será a semente do reino espalhada pelo mundo inteiro.

“Reuni-los-ei porque os resgatei … e eles regressarão” (Zac 10:8-9). Quando acontecerá isso? (…)

Seja como for, a presença sensível dos irmãos é para o cristão fonte incomparável de alegria e consolo. Preso e já perto do final dos seus dias de vida, o apóstolo Paulo apenas pode chamar Timóteo «seu muito amado filho na fé» para que regresse a vê-lo e a tê-lo a seu lado. Não esqueceu as lágrimas de Timóteo aquando da última despedida (2Tm 1:4). Outra vez, pensando na Igreja de Tessalónica, Paulo ora a Deus «noite e dia com grande ânsia para voltar a vê-los» (1Ts 3:10), e o apóstolo João, já velho, sabe que o seu gozo não ficará completo até que esteja junto dos seus a fim de falar-lhes de viva voz em vez de por escrito com papel e tinta (2Jo 12).

O crente não se envergonha nem se considera demasiado carnal por desejar ver o rosto dos seus crentes. O homem foi criado com corpo, num corpo surgiu a nós o Filho de Deus sobre a terra, num corpo foi ressuscitado; no corpo o crente recebe Cristo no sacramento e a ressurreição dos mortos dará lugar à plena comunidade dos filhos de Deus, formado de corpo e espírito. (…)

A medida na qual Deus concede o dom da comunhão, varia. Uma visita, uma oração, um gesto de bênção, uma simples carta é suficiente para dar ao cristão isolado a certeza de que nunca está só. (…)

Os cristãos de hoje descobrem, novamente, que a vida comunitária é verdadeiramente a graça que sempre foi, algo extraordinário, «o momento de descanso entre os lírios e as rosas» a que se referia Lutero.

Dietrich Bonhoeffer
Vida en comunidad’, Sígueme 2009 (excertos p. 9-13)











[1] O Evangelho de Jesus é um apelo à Conversão, ele exige conversão, metanóia, inversão, mudança de paradigma, “mudança de lugar social”, opção por uma outra visão ou ponto de vista. Essa Metanóia implica “olhar com os óculos do pobre”. É Jesus quem dá o exemplo e demonstra como isto se realiza: Ele próprio «pára o processo social e muda de lugar social» (Lucas 18:39-40; Jo 9:41). Jesus nunca fez uma pregação humanitária em abstracto, com base em “princípios universais”. Jesus era um «ser social» consciente da realidade social concreta.
[2] Jesus não é apenas um “gajo porreiro”, amigo do seu amigo, simpático, mas alguém com um Projecto para a Vida. Jesus vive eticamente o projecto de Deus para o seu Povo, e vivi-o de forma activa, criativa, dinâmica segundo uma «Ética da Compaixão pelo Pobre». É a partir daí – de baixo – que Jesus começa a construir a sua Casa. Jesus fez uma «opção de vida»: superou a ’norma’, a ‘lei’, colocando a Compaixão pelo espoliado no centro da sua vida de doação. Foi assim que ele entendeu o Projecto de Deus para a Humanidade: a construção duma Humanidade Fraterna e Serviçal! A vida de Jesus tinha um sentido e esse sentido, esse «destino» descobriu-o ao responder às mil interrogações que o assaltavam em jovem: «Por que caminhos da vida hei-de seguir?» [Heráclito, Fragmento 138]. Aos poucos foi ficando claro, para Jesus, que esse caminho era o «Caminho das Bem-aventuranças» (Mt 5:1-12; Lc 6:20-23): viver com os olhos postos no povo que sofre e os ouvidos na palavra do Pai (digamos: um caminho às avessas). Ir pelo mundo fazendo o bem, libertando e dando graças (Act 10:38). É sobre essa «ética desconcertante» de Jesus (JM Castillo), baseada na revelação dum «Deus que se funde e se confunde com o humano débil», que Jesus ergue o seu projecto de Vida: ser a presença do Deus da debilidade entre os mais débeis. Em suma, não é possível encontrarmos a felicidade sem antes construirmos um projecto para a vida com um sentido sério, em que a minha sede de me dar de graça é a melhor garantia de receber de graça (Mt 10:8b); melhor: de receber mais do que aquilo que se dá… (Mt 25:19-21) Apesar de tudo, este insight de Jesus resultou: quando tudo parecia uma leviandade adolescente e irresponsável, um verdadeiro fracasso absoluto (Emaús; Lc 24:13), Deus ressuscitou-o! Dizendo: Estive sempre contigo, agora repousa em Mim para sempre. (Jo 17:18-23)
[3] Adolphe Gesché fala de «Deus entre parêntesis», Marcel Gauchet fala do cristianismo como «a religião da saída da religião» e José Comblin diz: «Nas memórias dos evangelhos, Deus permanece muito discreto; não ocupa quase nenhum lugar».
[4] «A nossa intenção com este livro não é fazer de Deus o “funcionário do sentido”, como se só Deus fosse a última e a única chave do sentido.» (…) «Deus não é o sentido das coisas, como se tudo aquilo que pudéssemos dizer acerca do sentido se encontrasse apenas em Deus. Mas o sentido, também não é Deus, como se a procura do sentido equivalesse à procura de Deus. O sentido não substitui Deus e Deus, muito menos, substitui o sentido. Tanto num caso como no outro, prejudicar-se-ia o sentido e corria-se o risco de o alienarmos, e prejudicar-se-ia Deus reduzindo-o a uma função. Ao mesmo tempo, e em ambos os casos, ferir-se-ia o Homem.» [«El Sentido», Sígueme 2004, Introdución, p. 19]
[5]  Sl 146 - «Não ponhais a vossa confiança nos poderosos, (...) Feliz de quem tem por auxílio o Deus de Jacob, (…) Ele salva os oprimidos, dá pão aos que têm fome (…) e ampara o órfão e a viúva [o pobre]». Mc 12:33 - «e amar o próximo como a si mesmo vale mais do que todos os holocaustos e todos os sacrifícios». Mt 5:43 - «Amai os vossos inimigos e orai pelos que vos perseguem. Fazendo assim, tornar-vos-eis filhos do vosso Pai que está no Céu, pois Ele faz com que o Sol se levante sobre os bons e os maus e faz cair a chuva sobre os justos e os pecadores.» Três variantes do destino do nosso amor: o outro (‘o próximo’, em abstracto), o outro-meu-inimigo (o que me rejeita totalmente) e o pobre (o que eu, sem querer, fabrico e rejeito). Perante todas as possíveis hipóteses, Jesus pede que purifiquemos o nosso modo de amar. Que ele passe dum amor narcisista desculpabilizado a um amor purificado, verdadeiro, incondicional. De todas elas, a proposta de fazer do pobre o centro do amor introduz e clarifica uma dimensão nova (social) que não estava claramente contida nas outras. Isso constitui  uma dupla purificação do amor.
[6] Ver Frère Éric: «Mais tout gémissement appelle, toute clameur interpelle. Appelle une présence, interpelle pour une conversion.». Fonte : «A SALA DE CIMA», 14 de Agosto 2013 ; Cf. http://asaladecima.blogspot.pt/2013/08/leve-toi-et-marche-frere-eric.html
[7] «Passar do dever à necessidade», in A ÉTICA DE CRISTO, JM Castillo, Edições Loyola, p.59. «O pensamento da Modernidade foi tomado de obsessão pelo problema da “identidade”, que é o problema da auto-consciência, o problema do eu. (…) Acontece, no entanto, que essa pergunta, por mais importante que seja, termina por fechar o sujeito em si mesmo, bloqueando-o na bolha do próprio eu. Daí a necessidade de passar a outro delineamento: da pergunta pela “identidade” à pergunta pela “diferença”. Daí que, em autores como Lévinas e Derrida, a ideia da diferença é pensada começando pelo Outro e não por ele Mesmo, de maneira que o Outro “é o novo centro de atenção na filosofia e na ética” [Miroslac Milovic]. Produz-se, assim, a grande viragem de que necessitamos neste momento para sair de nós próprios e dedicar a devida atenção aos mil problemas que afectam o outro, os outros.» Podemos dizer que o que mais se assemelha ao ser do homem é o desejo e não o dever. Então, há que descobrir a proposta existencial que faça passar do dever ao desejo, à necessidade de desejar «metas excessivas e totalmente distintas» (M. Horkheimer). «Kant estabeleceu-o de modo luminoso. Se o homem que combate pela liberdade – diz ele – não crê que a liberdade é possível, se nem sequer está convencido disso a partir de algo de dentro de si próprio ainda que longínquo, se não está convencido de que a liberdade existe, se nem tiver uma espécie de consciência de que existe um «reino de Deus» (a expressão é de Kant), onde a liberdade se desfralde em todo o seu esplendor, esse homem nunca encontrará forças para travar os seus combates pela liberdade e não encontrará o seu destino» (A. Gesché, «El Sentido», Sígueme, 2004, 112). «Só as palavras excessivas [liturgia, onde a liberdade se desfralda em todo o seu esplendor] serão capazes de fazer de um homem um ser desejante (o que significa algo mais que um ser mobilizado, confrontado com os seus deveres ou movido por um imperativo)» (ibidem, p. 111)
[8] «Ser Filho do Pai é receber dele uma missão e conformar toda a vida a essa missão, colocar todos os momentos da existência, as decisões, as opções sob a direcção das suas palavras» (José Comblin, «JESÚS DE NAZARET», Ed. Sal Terrae, Santander ‘El Pozo de Siquem’, 1977, p. 70-71).