teologia para leigos

3 de julho de 2012

ECLESIOLOGIA - SEUS FUNDAMENTOS (VÍCTOR CODINA)


Princípios estruturadores e constitutivos
de qualquer eclesiologia



Face a todos os modelos eclesiológicos que, ao longo da história, se foram desenvolvendo surge a pergunta se não há princípios estruturadores, básicos, constitutivos de toda a eclesiologia. (…)

A fim de lhe conferir uma certa formulação narrativa, podemos dizer que a Igreja é:

1.    o Povo convocado pelo Pai,
2.    que faz memória da Páscoa e prossegue o caminho de Jesus rumo ao Reino,
3.    impulsionado pelo Espírito.


A Igreja é o Povo convocado pelo Pai

Isto implica a aceitação da dimensão comunitária como algo inerente à Igreja: é uma comunidade fraterna de baptizados, fiéis à Palavra dos apóstolos (Kerigma), com uma estrutura sacramental e eucarística (liturgia) presidida pelos pastores que sucedem a Pedro e aos outros apóstolos na responsabilidade de confirmar a fé e animar a comunhão eclesial; uma comunidade com pluralidade de carismas suscitados pelo Espírito que faz com que todos os fiéis sejam co-responsáveis e membros activos, com uma especial sensibilidade e solidariedade para com os mais necessitados (diakonia).

Porém, esta comunidade é convocada pelo Pai, ela faz parte do desígnio salvífico do Pai, da sua vontade universal, o qual, ao eleger Israel, quis com isso constituir um signo visível do seu amor para com todos os povos. É este Povo de Israel que, depois da Páscoa, se converterá na Igreja, Novo Povo de Deus. Esta comunidade é remetida para uma origem que a transcende, é uma eleição gratuita do Pai, tem o seu centro fora dela, o qual está no mistério trinitário de Deus. Esta comunidade não se fecha em si mesma, possui uma missão que vai para lá dela, abre-se a todos, é missionária, universal.

Esta comunidade constitui um Povo, isto é, possui uma dimensão social, histórica e dinâmica, que avança para o Reino, em pluralidade de raças, culturas e etnias em comunhão, de forma sinodal. Graças a este princípio, a Igreja é una e católica. A ausência deste princípio (constitutivo de qualquer eclesiologia) produz divisões internas, clericalismo e mundanização da Igreja.


A Igreja faz memória da Páscoa e prossegue o caminho de Jesus rumo ao Reino

A Igreja é um acontecimento pascal, nasce na Páscoa do Senhor morto e ressuscitado. Tal como a Páscoa judaica do Êxodo foi o acontecimento fundador do Povo de Israel, assim a Páscoa de Jesus o é para a igreja. Assim a Igreja, na eucaristia, faz continuamente memória deste acontecimento pascal de modo que «a Igreja faz a eucaristia e a eucaristia faz a Igreja». Ao celebrar na sua liturgia a Páscoa, a Igreja reconhece-se referida continuamente ao Senhor Jesus: é a Igreja de Jesus, de mais ninguém. A presidência da Igreja de Jesus e da eucaristia pelos ministros ordenados que sucederam aos apóstolos não pode ofuscar esta referência última a Jesus, a quem eles representam diante da comunidade.

Esta eucaristia pascal não só torna presente o Corpo eucarístico ressuscitado sob os sinais do pão e do vinho partilhado, como realiza e presentifica o Corpo eclesial do Senhor, de tal modo que a Igreja é realmente o Corpo de Cristo, Cristo presente em forma comunitária, personalidade corporativa de Cristo, o Cristo total agustiniano.

Mas a Igreja não só actualiza liturgicamente a memória de Jesus na eucaristia, como também, como Corpo de Cristo na história, actualiza a praxis de Jesus de Nazaré, que, assim, igualmente prossegue o seu caminho rumo ao Reino, segundo um estilo de vida nazareno: assumindo as suas opções, em especial a sua opção pelos pobres, pelos marginalizados, pelos pecadores e pelos excluídos. Com estes se identifica, a estes convida ao Banquete do reino e a estes constitui como ‘juízo universal sobre as nações’.

Esta Igreja fundada em Cristo, cimentada no testemunho e na missão dos apóstolos, é Igreja apostólica que nos transmite o evangelho de Jesus. Sempre que a Igreja esquece esta referência fundamental a Jesus converte-se em mais uma sociedade, mundana ou triunfalista, convencendo-se que ela é que é o Reino de Deus na terra.


Homenagem popular a Mons. Óscar Romero


Pela força do Espírito

A Igreja vive da força do Espírito, é Templo do Espírito, o que implica que possui um dinamismo interno constante, uma tensão escatológica rumo ao Reino e uma permanente fecundidade espiritual. É o Espírito que santifica a Igreja, é o Espírito que a vivifica com os sacramentos, com o martírio, o dom da fé, a infalibilidade, o ministério dos pastores, os carismas dos leigos, com a vida religiosa, a tensão para a missão, a fortaleza no martírio…

Este Espírito que adejava nos começos da criação, que guiou o Povo de Israel e que suscitou profetas, é o mesmo Espírito que faz nascer Jesus da virgem Maria, que unge Jesus no seu baptismo, que guia os seus passos ao longo de toda a sua vida pública e o faz evangelizar os pobres, é o mesmo que o ressuscita dentre os mortos, é o mesmo que será derramado, na Páscoa, sobre a comunidade de discípulos e discípulas impulsionando-os à missão.

Este Espírito sustenta a Igreja aquando das dificuldades, debilidades e perseguições, suscita carismas e profetas e é igualmente o mesmo Espírito que está presente na história da humanidade através das diferentes culturas, das religiões e dos sinais dos tempos que, continuadamente, devem ser auscultados e discernidos.

Quando se esquece esta presença do Espírito a Igreja converte-se em algo meramente institucional, jurídico, fixista, monocêntrico, moralista, sem um futuro esperançoso.

Em suma, a eclesiologia entendida como Povo de Deus convocado pelo Pai, Corpo de Cristo e Templo do Espírito retoma as imagens bíblicas mais tradicionais, mantém a dimensão trinitária e expressa a identidade constitutiva da Igreja que a diferencia doutros grupos e associações culturais, políticas e sociais, bem como de outras comunidades religiosas não cristãs.


Do pluralismo à opção

Porém, não se pode deduzir de aqui que os diversos modelos de eclesiologia que foram expostos são indiferentes. Em cada momento a Igreja tem de optar pelo modelo que lhe pareça que responde às exigências dos tempos e do evangelho. Neste sentido, deve dizer-se que alguns esquemas e modelos estiveram bem num determinado momento, mas talvez já não sejam adequados para o momento presente.

Qual será o modelo que melhor responde aos sinais dos tempos de hoje? (…)

Digamos que a igreja libertadora ou dita dos pobres não é uma seita ou uma Igreja paralela à Igreja institucional, mas é um movimento de renovação no interior da Igreja universal em comunhão com ela. É um movimento profético que se realiza a partir duma experiência espiritual e teológica nova, tal como acontece nas CEB’s (Comunidades Eclesiais de Base) e nos movimentos populares onde os cristãos estão presentes.

No regime da Cristandade, as classes dominantes utilizavam a Igreja institucional para legitimar o sistema de dominação capitalista e neoliberal, ao mesmo tempo que a hierarquia utilizava o poder social dominante para cristianizar a sociedade e ajudar os pobres.

Na América Latina, desde a década de 1960, a Igreja tomou consciência de que o capitalismo neoliberal, agora globalizado, é um regime de morte, é um darwinismo social no qual apenas os mais fortes sobrevivem enquanto que os pobres morrem e aumenta a distância entre ‘os poucos ricos e os muitos pobres’. Por isso, desta experiência de morte e da experiência de vida que o Espírito suscita ao longo do caminho libertador, surge um novo modelo de Igreja libertadora onde os pobres são o sujeito social.

Para a América Latina, optar por uma Igreja libertadora não é uma moda, nem uma veleidade: é consequência da necessidade de optar pelos pobres e pelos diferentes como resposta aos sinais dos tempos. Os pobres, com a luz do Espírito que o Senhor concede aos ‘pequeninos’, sintonizaram com a Igreja que prossegue no caminho do Senhor. (…)





Surge constantemente o problema de como passar de um modelo de Igreja a outro, de como passar de um esquema a outro.

Em geral, podemos dizer que a passagem da Igreja tradicional de Cristandade do segundo milénio para a da modernidade do Vaticano II, própria do terceiro milénio, é uma mudança sobretudo intelectual, uma mudança de mentalidade, uma mudança na forma de ver a realidade. O jovem camponês latino-americano que, partindo da sua comunidade rural, chega à cidade para estudar na universidade, em pouco tempo muda a sua forma de pensar, rapidamente se insere no mundo moderno, no mundo da racionalidade cientifico-técnica, no mundo da suspeita e da secularização. (…)

Mas o problema mais difícil é a passagem da Igreja moderna à Igreja libertadora. Aqui não basta uma maior informação intelectual, mas é necessária uma conversão, uma mudança de coração. Exige-se uma mudança de lugar social, uma leitura do evangelho a partir dos pobres, olhar o mundo a partir do lado contrário da história, mudar de interlocutor, cambiar de sujeito social.

Eis a razão porque é mais fácil passar da mentalidade de Cristandade tradicional à mentalidade da Igreja libertadora, que da eclesiologia moderna à libertadora. É mais fácil ao povo simples e tradicional da América Latina compreender a Igreja dos pobres que aos sectores cultos e seculares do mundo moderno ocidental.

Isto explica, entre outras coisas, a dificuldade que têm muitos sectores da sociedade e da Igreja do Primeiro Mundo em compreender a eclesiologia latino-americana e as suspeitas e tensões que coisas como as Comunidades Eclesiais de Base ou a ‘leitura bíblica pelos pobres’, a denúncia das estruturas de pecado ou a opção pelos pobres suscitam.





A evolução de monsenhor Óscar Romero [S. Salvador] pode demonstrar de modo muito significativo estas dificuldades em mudar de mentalidade. Educado, quer na sua família, quer no seminário, segundo uma mentalidade cristã tradicional tipicamente de Cristandade, pouco depois do Vaticano II, monsenhor Romero abriu-se a uma visão mais moderna da fé e da Igreja. Contudo, isso não bastou para que adquirisse uma visão ‘libertadora’. Quando, em 1977, foi eleito para a Sé de S. Salvador, monsenor era o candidato da oligarquia financeira e militar, bem como dos sectores mais tradicionais da Igreja.

Foi o assassinato do Padre Rutílio Grande e dos seus catequistas três semanas depois da sua tomada de posse como arcebispo de S. Salvador que lhe fez abrir os olhos, tal como a Paulo na estrada de Damasco. Romero compreendeu que eram as forças de segurança do estado e seus aliados poderosos os que assassinavam os seus sacerdotes, catequistas e o povo indefeso. Começando a ler a realidade ‘a partir de baixo’ tudo se lhe afigurou novo. Descobriu um mundo até então desconhecido apesar de ele ser salvadorenho. Este foi o começo duma mudança que fez dele o grande profeta da justiça, o grande defensor do povo, o grande denunciador das injustiças dos poderosos, o grande amigo dos pobres. A sua força profética desfraldou-se, sobretudo, nas suas homilias dominicais na catedral, onde, com a sua palavra evangélica, fez tremer o sistema de corrupção e de pecado, até que numa eucaristia foi assassinado a 24 de Março de 1980 o seu martírio selou com o selo da verdade a sua vida evangélica.

Desde a década de 1990 em diante, a esta opção pelos pobres se junta o diálogo intercultural e inter-religioso, o respeito pelos diferentes, pelas questões de género e o respeito pela criação. A abertura a esta nova dimensão supõe, não só, uma conversão social, mas também uma certa sensibilidade e afectividade humanas, um sentido profundo do respeito pela vida que valorize positivamente a riqueza e as diversas culturas e religiões, a partir da questão do ‘género’ e de toda a criação. Seguramente as mulheres são as mais sensíveis a tudo isto.

Víctor Codina, sj
Padre catalão jesuíta, Professor de Teologia em Barcelona e,  a partir de 1993, na Universidade Católica Boliviana de Cochabamba.

La Eclesiología desde América Latina’, Verbo Divino, 2008, pp.190-193.