DOIS MODELOS DE IGREJA
Cardeal Aloísio Lorcheider |
A partir de aqui, acontecem dois modelos de igreja.
O primeiro está orientado segundo uma forma hierárquica, piramidal. Funciona de cima para baixo, é clerical, apoia-se na autoridade hierárquica como sede do poder sacramental. Ó Código de Direito Canónico de 1917 é a expressão patente deste modelo ainda exercendo influência, ainda que algo debilitado, na versão do Código de 1983.
O segundo modelo, por outro lado, é mais carismático, popular, vai dirigido de baixo para cima. Em vez do poder do clero, sublinha a força da comunidade, a essencial igualdade de todos os membros do Povo de Deus. A separação entre clero, ordens religiosas e leigos tende a esfumar-se, surgindo, no seu lugar, estruturas configuradas segundo o princípio da igualdade, formas muito diversificadas de participação do povo de responsabilização eclesial.
As comunidades eclesiais de base (CEB) entendem-se a si próprias como novo sujeito histórico que se impõe na sociedade e na igreja. A presença do bispo e dos sacerdotes não se sente como imposição, mas como ministério especial ao serviço da comunidade segundo uma tarefa de discernimento da vontade de Deus na história.
Este segundo modelo é testemunha da encarnação da fé nos estratos populares, fé caracterizada mais pelo símbolo que pelo conceito, pela narração concreta que pela argumentação abstracta. Diante do modelo monárquico, aristocrático, centralizador, este modelo é mais democrático, popular, pluralista e participativo.
A partir desta perspectiva encontramos a contraposição entre o modelo tradicional da igreja como «sociedade perfeita» e o modelo sócio-crítico de uma igreja que é fermento evangélico.
O primeiro é percebido como sociedade completa fechada sobre si mesma, contraposta a outras sociedades e ao Estado. É a igreja das nunciaturas, das secretarias de Estado, das delegações apostólicas, o Sacro Império Romano, dos privilégios régios: a igreja visível pela qual tanto lutou Belarmino por oposição a toda a evaporação espiritualista da instituição. É a igreja da «cristandade» que, em concorrência com o Estado, procura conquistar o seu «lugar ao sol» e influenciar todos os níveis da vida civil. Nesse sentido, assina concordatas, mantém relações diplomáticas, etc. Hoje em dia salta à vista as contradições deste modelo. Devemos continuar a manter este aparelho diplomático que tão claramente deixa transparecer o lado demasiado humano da igreja? Podemos continuar a defender hoje a igreja como uma «sociedade perfeita»?
Se mudamos para o outro modelo, encontramo-nos com uma igreja vivida como fermento profético colocado no meio da sociedade. Partindo do evangelho (aspecto profético), esta igreja desempenha na sociedade (aspecto social) uma tarefa de diferenciação (aspecto crítico) que subverte radicalmente tudo aquilo que no mundo se contrapõe ao plano da criação e da salvação divinas. Assim, «o que alma é para o corpo, assim são os cristãos para o mundo» (Carta Diogneto). […]
Com esta apresentação dos modelos e das imagens de igreja, perguntamo-nos: que igreja queremos? Em Puebla (1302-1305) obtivemos uma resposta que hoje se aprofunda através da acção viva do Espírito Santo nas igrejas deste nosso continente [América Latina].
Sonhamos com uma igreja que escuta e que realiza efectivamente a palavra de Deus e a kenosis salvadora de Jesus Cristo (Fl 2:5-9), que testemunha, anuncia e celebra a vida de Deus encarnada na transformação do mundo, de modo que os corações e as estruturas se convertam e realize o compromisso de todos os cristãos numa acção transformadora do mundo que seja anúncio, antecipação e sacramento definitivo do Reino Deus: sacramento de participação do Espírito do Servo de Yahvé, sacramento de libertação numa linha de fidelidade total a Cristo e aos homens no Espírito.
Só assim será sacramento universal de salvação (LG 48; GS 45).
Cardeal Aloísio Lorcheider (Brasil)
‘La comunidad eclesial, sacramento de liberación’ [resumo em Selecciones de Teologia 109 (1989) 37-39]