Confiar no sistema financeiro?
A
banca desenvolveu sem freios o investimento especulativo, enquanto os
economistas de pensamento único garantiam que este liberalismo era essencial
O Banco de Portugal (BdP) lançou esta semana um portal na internet
destinado a promover a educação financeira dos cidadãos. Segundo relata o
“Jornal de Negócios” (10 Julho), o governador afirmou que o portal pretende
também “reforçar
a confiança pública no sistema financeiro”. Este “é sempre visto
como uma entidade algo diabólica e isso é o pior que pode acontecer”. O
governador tem boas razões para estar preocupado, mas não me parece que esta
iniciativa vá mudar alguma coisa na forma como hoje os cidadãos vêem o sistema
financeiro.
De facto, os operadores financeiros são actores
centrais da crise em que estamos mergulhados.
À escala mundial, canalizaram os excedentes comerciais da
China e de mais alguns países, entre os quais a Alemanha, para o sistema financeiro dos EUA, de forma a sustentar o
seu enorme défice externo.
(1) Através da inovação financeira, os bancos
norte-americanos exportaram
para os bancos europeus “activos tóxicos” que em grande parte
permanecem nos balanços com o valor nominal.
(2) Também sabemos como o colapso deste
casino acabou por revelar a insustentabilidade económica e
institucional da zona euro e a captura dos seus estados pela vertente especulativa
do sistema financeiro.
(3) Os paraísos fiscais, as burlas
através de esquemas em pirâmide, os casos Northern Rock, Dexia, bancos regionais alemães e
espanhóis, as bolhas do imobiliário em vários países, ou a
mais recente
manipulação da Libor na praça de Londres, são apenas os efeitos mais
visíveis de uma política iniciada nos anos 80 do século passado.
A ascensão da ideologia neoliberal no Reino Unido com Thatcher e nos EUA
com Reagan, seguida da abolição por Clinton do Glass-Steagall Act de 1933,
legitimaram uma regulamentação leve da actividade bancária.
A partir daí, a banca desenvolveu sem freios o investimento especulativo,
enquanto os economistas do pensamento único garantiam que esta liberalização
era essencial para o crescimento económico.
Os estudos mostram que, a partir da
liberalização da actividade financeira, a taxa de lucro do sector se tornou
superior à taxa de lucro do sector não financeiro. Por isso, entre 1980 e 2007,
o rácio dos activos financeiros relativamente ao produto mundial subiu de 1,2 para 4,4, tendo sido em
2007, no Reino Unido, de 700%. (J.G. Palma, The revenge of the market on the rentiers,
Cambridge Journal of Economics, 2009, 33).
Foi
esta embriaguez
do dinheiro fácil,
desligado da economia real, que levou ao colapso da Islândia, do Dubai e da Letónia, países que pretendiam
enriquecer como plataformas giratórias de um sistema financeiro globalizado.
Sabendo tudo isto, ainda assim as
autoridades europeias não foram até hoje capazes de criar um novo quadro
regulamentar que impeça a repetição da crise financeira iniciada em 2007 e que
ainda não terminou. Agora, no estilo fuga em frente, acenam com uma futura
regulação europeia, supranacional, inibidora dos abusos mas respeitadora da lógica do sistema.
O governador do BdP bem pode
insistir na importância do sector financeiro para o desenvolvimento das
economias. Porém, enquanto não reconhecer que o sistema deve ser reformado de alto a
baixo, as suas afirmações
não têm crédito.
Precisamos de o ouvir dizer:
·
temos
de regular a participação financeira
no capital das maiores empresas para que estas ponham à frente da distribuição
dos dividendos o financiamento do investimento estratégico;
·
é
necessário voltar a separar a banca
comercial da banca de especulação;
·
deve
ser proibida a venda de títulos que
ainda não se possui;
·
tem
de ser reduzida a velocidade dos
movimentos de capital de curto prazo e, se necessário, pelo menos
parcialmente suspensa para que os países possam gerir a política monetária e
cambial em favor do desenvolvimento.
Então talvez o governador comece a
ganhar a credibilidade que, hoje, o cidadão comum não lhe concede. Em
particular, também porque nunca demonstrou a existência de um elevado risco
sistémico na falência do BPN, um caso em que o BdP surgiu aos olhos
dos portugueses como um supervisor falhado, ou cúmplice por omissão.
Jorge Bateira, economista
JORNAL i, publicado em 12 Julho 2012