teologia para leigos

28 de outubro de 2010

A ARTE COMO LOGRO

TEMOS? QUE TEMOS?


O nosso poder − o poder que os seres humanos têm, de facto − é imenso!

Todos somos seres sociais (relacionais) poderosíssimos: a viúva solitária, o canceroso, a criança órfã, o chefe-hierarca, a fêmea, o macho, o sacerdote, a mãe e o pai, os filhos, o irmão, o criado, o escravo, em suma, todos. Se fizéssemos a História incluindo todos os seres humanos, seríamos obrigados a reconhecer o incrível poder transformador de todo e qualquer ser humano.
Por isso, não entendo quando me dizem que «de nada valerá a Greve Geral» de 24 de Novembro próximo (2010) − mais grave ainda por essa afirmação ter sido proferida numa estação televisiva de grande audiência, em horário nobre, por um frade relativamente novo… «Talvez sirva para alguma catarse, mais nada», disse o ‘religioso’.
No entanto, bastou que uma mulher grega arrancasse os cabelos e gritasse (Medeia), que um escravo romano erguesse a voz (Spartacus), bastou que um negro sangrasse, bastou que uma mulher tenaz se manifestasse nos Estados Unidos da América do Norte, bastou que um tímido indiano-hindu na África do Sul recusasse (Gandhi), bastou que um pacífico galileu «sem-abrigo» sonhasse (Jesus de Nazaré), bastou que… para que nada fosse como dantes!
A História sempre arrancou dum grito, do «grito do Pobre» ou «do grito do louco»: houve, sempre, um grito inaugural! Pelo meio, um extenso lamaçal…

A dimensão do nosso poder é, portanto, imensa − do tamanho dum grito!
A História, aquela que domina, tem, por trás dos reposteiros, ‘a secreta história do grito’, a história do sofrimento, raramente a «história da memória da dor» (JB Metz, ‘Memoria Passionis’), e, frequentemente, a História do Esquecimento. Aliás, usa-se dizer que, o esquecimento é a melhor forma de ‘dar de beber à dor’…
Diante do horror está sempre um tapete (ou uma obra de Arte): convidativo, cúmplice, amigo («da onça»). Por vezes, chama-se álcool ou então sexo (dois bons frutos de Morfeu), pseudónimos para «êxtase», instrumento euforizante e estético (José Régio: «Por seu turno, o artista como artista vê na criação artística a sua actividade suprema. Em favor de ela se aproveita de tudo – tudo mais põe ao serviço da sua arte; e de isto mesmo que põe ao serviço da sua arte se distrai criando. Servindo-se das suas experiências e pré-experiências re-criando a sua vida vivida ou desenvolvendo os seus germes vitais, como que os anula ou diminui: como que esquece a vida transferindo-a para a arte. (…) Por um lado nos arrebata a beleza da realização artística, e, arrancando-nos às nossas pobres preocupações particulares, nos faz evadir-nos não sabemos para onde: mas para qualquer espaço de onde como que sobrepairamos a vida e seus limites. À emoção que então experimentamos, e pode chegar a fazer-nos chorar lágrimas puras de qualquer sentimentalidade vulgar − lágrimas de entusiasmo, de admiração, de libertação − chamarei emoção estética.») [in A Religião e a Arte]
Um rosto, um simples olhar duma esposa ou o silêncio na face duma criança podem reduzir a escombros todas as expectativas de uma longa vida − tudo pode desmoronar de vez! E tudo pode, à hora da morte, ser uma vida desfeita em fumo, em nada, impossível de reaver.

Custa de facto, humilha de facto, que um cristão diga: «não vale a pena»
Caramba! Então, não valeu a pena??? Não valeu MESMO a pena? Nadinha, nadinha para que hoje já não valha a pena ao menos sair para a rua e gritar?

De facto, tanta dor, tanto mar de sangue e horror e catástrofes e ‘sem-sentido’… − «a obscuridade da história humana do sofrimento» (JB Metz)− dramatismo do qual não pinga a mínima esperança ou, se pinga, é aparentemente ilegível. E, assim, ficamos nós entre a contradição-confessional do frei-Religioso [frei Fernando Ventura, franciscano] e a coerência do impotente-perdido − será que, neste caso concreto que aconteceu na TV, não estão as duas posturas fundidas na mesma pessoa? O inexplicável pede morfina e a morfina substitui a explicação pela contemplação − de fora é que estamos bem! Mas a História ensina-nos: a violência (a do sagrado ou a outra sua irmã gémea) é chata como moscas…

O nosso poder − o poder que os seres humanos têm, de facto − é imenso!
Será?

Finalmente, foi hoje operada a Maria AVRS (1964-). Logo mais vou visitá-la ao IPO. Em pouco mais de 2 meses, é operada a dois cancros malignos. Está muito magra. Repete incessantemente: «Ó senhor doutor – só quero que me tirem tudo o mais depressa possível, o mais depressa possível. Já não suporto mais demoras. Quero-me ver livre disto depressa. Ai, estou mortinha por me ver livre disto. Não me importo que me cortem toda, mas o que eu quero é ver-me livre disto. Ando desesperada, ando angustiada, até me dói o peito de noite… Eu sei que é tudo nervos». Ex-alcoólica, beneficiária-não-contributiva do RSI-‘Rendimento Mínimo’ [leia-se, oportunista, preguiçosa, caloteira, gatuna, espertalhuça], exerce com uma competência profissional e escrupulosa as suas tarefas de ‘governanta’ de uma casa de prostituição na baixa da cidade do Porto. Vigia a porta de dia e de noite, controla os ‘clientes’ que entram e que saem, conhece os donos do som dos passos, do ranger das tábuas nas escadas, adivinha os desejos, fornece/abastece os quartos, lava, despeja, limpa, ‘dá a ferro’, impõe regras (por vezes, barafusta), verifica a veracidade das notas (lá vai ela a um sítio escondido onde passa as notas pela maquineta, muito atenta à marca-de-água e quejandos), nunca se esquece do prazo de validade dos preservativos, ordena-os, classifica-os por datas, cataloga-os por modalidade, nunca se esquece dos pagamentos em atraso e dos trocos incompletos, a todos o lembra com delicadeza e seriedade, não ignora os limites da educação, do respeito e da dignidade de ninguém − «acima de tudo, o respeito senhor doutor, o respeito; exijo ser respeitada − por isso respeito. Era o que mais faltava». Quase não dorme ou descansa − está um «pau de virar tripas». Fuma (agora menos), mas já não bebe (venceu o vício sozinha tremendo três dias e três noites seguidas; e suando muito e gritando de dores musculares muito e… cheia de caixas de cerveja debaixo da cama). Em suma, uma heroína. Fidelíssima, nas contas com a patroa (que nunca está). Completamente só: tem duas irmãs e teve um filho (ele, agora com 21 anos, a viver com uma tia). Ainda tem mãe (acamada) e pai (velho e cansado). E, quase sem corpo, trabalha. As dores no pescoço (inchado que ele está hoje!!!) mal a deixam deitar-se − a almofada não ajuda e o colchão ‘encova’. De noite, tosse muito! O ‘companheiro’ da patroa já veio queixar-se… «A aparelhagem – lembra-se doutor? − tive que a esconder debaixo da cama! Aqui até a escova dos dentes me roubam. Rouba-se tudo…» A fotografia que tem no vão-de-escada onde dorme é dos vinte e tais anos e tem ao colo o seu bebé ao biberão: era muita bonita! Alta, cabelo penteado, roupa com muito gosto, a pele do rosto invejável, seios fartos, esbelta, com ancas: encará-la hoje, meu Deus! Apetece virar a cara para o lado. Como foi possível… Como foi possível, meu Deus?
A semana passada levei-lhe chocolates − «é preciso começar a encher as peles, Maria AVRS. Nunca sabemos os tratamentos que vêm por aí, Maria AVRS… Vamos lá a comer pr’á frente, Maria AVRS».
− “Quando a Tânia está livre, vamos as duas ali em frente. Tem cá uns rissóis de leitão…”

«On me demande souvent: quel est le but de la vie? Malgré toute cette absurdité, j’ai pourtant une certitude qui me tient au corps depuis ma rencontre de Dieu dans l’adoration, alors que j’étais jeune moine capucin. Alors, en tremblant, l’intelligence scandalisée, mais avec la conviction du cœur et de la foi, je réponds : le but c’est d’apprendre à aimer. Aimer, c’est quand toi, l’autre, tu es heureux, alors je suis heureux aussi. Et quand toi, l’autre, tu es malheureux, tu souffres, alors j’ai mal aussi. C’est aussi simple que cela. Alors je dis : la vie, c’est un peu de temps donné à des libertés, pour, si tu veux, apprendre à aimer, avec la certitude de devoir lutter contre le mal. Sens de la création : que l’amour répond à l’amour. S’il n’y avait pas ce point culminant où tout d’un coup deux libertés peuvent se donner et s’aimer, toute la création serait absurde» (Abbé Pierre, ‘Mon Dieu… pourquoi ?’, Plon, 2005).

«Pouco menos que nada, tudo é para mim demais» (Ruy Belo). Uma voz me murmura: Não sofras − a penitência tem sua secreta penitência! A todos conheço, a todos me furto. E o vento bailando no vento vai.

O nosso poder o poder que nós os seres humanos temos, de facto, de nos ligarmos,  desligarmos e religarmos é imenso! Imenso mistério, tão autónomo quanto labiríntico.

[Mateus 12:7:] «Se compreendêsseis o que significa: Prefiro a misericórdia à ‘religião’…».

Graça & Justiça para todos…

27 de outubro de 2010

COM QUE PÃO REPARTE O SEU SORRISO?

A Sala de Cima, o lugar do lume
Lucas 22:7-16 – (Preparação da Ceia Pascal) - Chegou o dia dos Ázimos, em que devia sacrificar-se o cordeiro, e Jesus enviou Pedro e João, dizendo: «Ide preparar-nos o necessário para comermos a ceia pascal.» Perguntaram-lhe: «Onde queres que a preparemos?» Respondeu: «Ao entrardes na cidade, virá ao vosso encontro um homem transportando uma bilha de água. Segui-o até à casa em que entrar e dizei ao dono da casa: ‘O Mestre manda dizer-te: Onde é a sala, em que hei-de comer a ceia pascal com os meus discípulos?’ Mostrar-vos-á uma grande sala mobilada, no andar de cima. Fazei aí os preparativos.» Partiram, encontraram tudo como lhes tinha dito e prepararam a Páscoa.Quando chegou a hora, pôs-se à mesa e os Apóstolos com Ele. Disse-lhes: «Tenho ardentemente desejado comer esta Páscoa convosco, antes de padecer, pois digo-vos que já não a voltarei a comer até ela ter pleno cumprimento no Reino de Deus.» [Bíblia, da Difusora Bíblica]

Actos dos Apóstolos 1:4-13 – (O grupo dos Apóstolos - Igreja de Jerusalém) - No decurso de uma refeição que partilhava com eles, ordenou-lhes que não se afastassem de Jerusalém, mas que esperassem lá o Prometido do Pai, «do qual - disse Ele - me ouvistes falar. João baptizava em água, mas, dentro de pouco tempo, vós sereis baptizados no Espírito Santo.» Estavam todos reunidos, quando lhe perguntaram: «Senhor, é agora que vais restaurar o Reino de Israel?» Respondeu-lhes: «Não vos compete saber os tempos nem os momentos que o Pai fixou com a sua autoridade. Mas ides receber uma força, a do Espírito Santo, que descerá sobre vós, e sereis minhas testemunhas em Jerusalém, por toda a Judeia e Samaria e até aos confins do mundo.» Dito isto, elevou-se à vista deles e uma nuvem subtraiu-o a seus olhos. E como estavam com os olhos fixos no céu, para onde Jesus se afastava, surgiram de repente dois homens vestidos de branco, que lhes disseram: «Homens da Galileia, porque estais assim a olhar para o céu? Esse Jesus que vos foi arrebatado para o Céu virá da mesma maneira, como agora o vistes partir para o Céu. Desceram, então, do monte chamado das Oliveiras, situado perto de Jerusalém, à distância de uma caminhada de sábado, e foram para Jerusalém. Quando chegaram à cidade, subiram para a sala de cima, no lugar onde se encontravam habitualmente. Estavam lá: Pedro, João, Tiago, André, Filipe, Tomé, Bartolomeu, Mateus, Tiago, filho de Alfeu, Simão, o Zelota, e Judas, filho de Tiago. [Bíblia, da Difusora Bíblica]
A Sala de Cima, o lugar do lume
Sempre que as coisas se complicam vou à procura de pistas, sinais, tento refazer a pergunta correcta: «Para quê?», e  virar a cara à pergunta errada: «Porquê?». Não admira, portanto, que me volte para a fonte privilegiada de sentido − a experiência cristã! − quando se pressente que é chegada, mais uma vez, a hora. Há electricidade no ar!, e isso é por de mais evidente, 36 anos depois da ‘revolução dos cravos’.
A experiência cristã (perdão: qualquer experiência humana com H-elástico-e-grande) se impõe a partir de: (1) a percepção exacta da tensão na corda da hora e (2) a necessidade inevitável da explosão do acontecer.
Estes dois textos bíblicos, (partamos do princípio: do punho do mesmo autor) do médico Lucas, possuem Hora e Acção que baste.
Na vida, frequentemente, somos abalrroados pela tensão do momento, atropelados pela agitação ou ruído − torna-se, portanto, difícil o recuo que nos focalize bem a realidade de aqui, a que importa. Somos seres-amantes e a paixão só pode ser abrasadora (aqui – não há um lugar outro para esta lareira…). Bem-aventurados os apaixonados de aqui, pois se «nem quentes, nem frios», se mornos e insípidos, se gelatinosos, se ‘simpáticos’ mas muito diplomáticos, se canas maleáveis a qualquer brisa, se medrosos, se lunáticos, se espiritualistas/irrealistas, se desincarnados, se angelicais, se híbridos, se castos, se conciliadores do inconciliável, se legalistas e patrões mais tarde ou mais cedo serão (seremos) «cuspidos da boca de Deus»… por falta de ‘profetismo-qb’ − sol sem sal…
Nestes dois textos bíblicos, há vários motes que perturbam a nossa queda para adocicar: ‘chegou o dia’, ‘porque estais assim a olhar?’, etc. Porém, cativa-me, sobretudo, o enigma do actor anónimo, o indiferente-sem-nome. Ele é somente «um homem transportando uma bilha de água». Sempre vi Lucas desenhando a sua narrativa como um «seguimento» de muitos atrás de Jesus, rumo a Jerusalém. Só agora (em que alinho as primeiras expressões para este espaço de ‘Graça & Justiça’) me dou conta que é a esse ‘homem sem nome’ que me sinto, extemporaneamente, atraído. É provável que ele nunca tenha existido ou seja apenas uma figura de estilo: pois que seja. Até é bom que assim seja − a figura menor destes relatos (de fugida no primeiro e, completamente na sombra, no segundo relato) − o que apenas foi buscar água e de quem outros (nós) se serviram para encontrar a Sala de Cima, o lugar do lume. Em pessoa, ele é, precisamente, aquela antecipação do Fogo, a luz rasante de que nos vamos sentindo necessitados para aquecer os corações diante dum Inverno repetitivo.
Acaso murmura: «só os Pobres salvarão os Ricos»? Onde esquenta, ele, a marmita da esperança? Com que pão reparte o seu sorriso? O álcool da alegria, bebe-o em que vazante olhar? A luz, luz? Em que noite combura? Com que mão agarra o dia? Saúda a sombra ou o sol que a recorta? Que pássaro solta, ou prende, quando o outono cai? Paga impostos? Sabe meter os dedos aos cantos da boca e assobia? O silêncio dos seus passos, acaso fala? E ouve-se? Que dizem eles? Que inverno matura seus nós, veios e ilhós? Floresce pela primavera? Mas, que primavera? Acaso o fotógrafo o retrata, reclinado sobre o ombro? Quantos meses tem seu ano?
No anonimato deste personagem, que foi à água e agora vem, abre-se um horizonte, sobretudo porque dirigiu seus passos e se deixou sumir na sombra da ausência que afunda. E enraíza. E regressa ao veio e depois ao ventre, no poço. No anonimato deste homem há uma palavra que é um olhar vasto e um socalco mais fundo − um horizonte, um espaço que alarga, feito de altura no coração exacto da atenção mais tocante e emudecida.

«Ao entrardes na cidade, virá ao vosso encontro…».
«Segui-o até à casa…».
«Senhor, é agora…?».
«Quando chegaram à cidade, subiram…».

Olhar assim, com o rosto junto ao rosto da janela da sala de cima é delimitar as cintas de todos os covis e soltar o brilho ou a luz de todos os recantos súbitos. É a novidade de quem observa quem se passeia ao sol face voltada ao vento, num acabamento próprio de números vivos que deambulam, livres, sem medo e dignos, inflexíveis ao golpe das horas. Multiplicando múltiplos.

(que farei,
que farei eu com este espaço que alarga?
Que alargue o ar, o gesto, a palavra e a própria morte…)


 TUDO É NÍTIDO. CONDIZ
com esta felicidade
de estar a ver o confim
de cada coisa. Da tarde.
Não há para além. Há aqui.
Um aqui que tudo sabe
por tudo envolver em si
e na sua dignidade.
Até a gaivota é feliz
no atropelo com que abre
o ponto azul a fugir,
não para além. Pelo grave
ritmo de levar o aqui
e levar também a tarde.

Fernando Echevarría [‘Epifanias’]

para todos, graça e justiça,
Graça & Justiça!, para todos…