teologia para leigos

26 de fevereiro de 2013

OS MILAGRES EM JESUS [PIKAZA]

Profeta carismático

a vida dos homens

Crucifixão Branca, Marc Chagall


Apresentámos, no primeiro capítulo, Jesus como profeta escatológico, destacando dez características da Sua mensagem: do anúncio do Reino e das Bem-aventuranças até ao sinal da destruição do Templo e a promessa da chegada do Reino. A mensagem de Jesus manifestou-se em gestos carismáticos ou milagres de vida (‘graça’) a favor dos homens, nos quais Deus se torna transparente.


(Para melhor os entender, esbocemos uma distinção prévia: 1. MAGIA – Algumas pessoas viram Jesus como mago, homem vindo de tempos longínquos numa altura em que não eram conhecidos ainda os métodos e as formas do conhecimento racional e da actuação científica. Como um mago bom (ainda que, por vezes, perigosamente próximo da bruxaria e do demonismo), Jesus rapidamente se tornou famoso; no entanto, foi condenado pela autoridade oficial (esta, mais racional) feita de sacerdotes e soldados. No fundo, os seus juízes tinham razão: a magia de Jesus continuaria a manter-nos atados ao mundo do irracional, mundo cheio de caprichos sacrais. 2. CARISMA – significa dom gratuito. É a expressão duma presença de Deus, a qual supera o plano dos comportamentos mais racionais de uma sociedade organizada (tradicionais, burocráticos). Supera-os sem os negar, tal como Paulo, em 1Cor 12-14, o desenvolveu tematicamente. Jesus teria sido um carismático, um criador, que soube trazer a todos a sua própria capacidade transformadora, iniciando uma mutação (no sentido de Reino), isto é, reconciliação humana e esperança futura em gratuitidade, para lá do sistema. Outras palavras e símbolos se empregaram e se podem empregar para falar da acção criadora de Jesus: muitos chamaram-lhe taumaturgo, homem capaz de realizar prodígios inexplicáveis; outros, curador ou terapeuta, já que tinha poderes curativos que ajudavam os enfermos a viver; outros, médico de corpos e de almas. Estes termos irão aparecer ao longo deste meu texto.)


Dividiremos o tema em dois capítulos, conformes aos símbolos centrais (de mago e de carismático). 1. Muitos viram Jesus como um mago, em sentido geral. 2. Nós vê-lo-emos como carismático; para isso, evocaremos alguns elementos da sua prática de pura gratuitidade (Reino) ao serviço dos excluídos do sistema; terminaremos com algumas conclusões breves.


1.    Pano de fundo mágico – o milagre da comunicação

Alguns exegetas tomaram Jesus como mago: alguém que quebrou as normas convencionais da sociedade e, por isso, os que defendiam a ordem estabelecida sentiram-se ameaçados por Jesus. Em vez de Se apoiar no poder de Deus e nas leis racionais bem estabelecidas da sociedade sagrada do Seu tempo, apelou a forças aparentemente boas, mas que, ao cabo e ao resto, conduziam (ou podiam conduzir) à dissolução dessa mesma ordem estabelecida. Por isso, muitos o consideraram perigoso e preferiram matá-lo. É neste contexto que proporei três níveis de acção e de compreensão da realidade.

1. A magia queria, e quer, dominar o mundo servindo-se de certas forças ocultas, forças de tipo sagrado, que apenas alguns privilegiados sabem e podem manejar. Muitas vezes a não ser que o próprio sistema os ponha ao seu serviço e desse modo os controle (assim sucedeu da China a Roma, onde alguns acabaram por ser funcionários do próprio Estado)   os magos costumam ser perigosos para a ordem social quando esta não consegue controlá-los. Israel formulou a condenação mais extrema que se conhece da magia, em Dt 18:9-22. Foi essa a explicação que, alguns exegetas, como Klausner e Vermes, deram para a rejeição e a condenação de Jesus como mago, por parte dos sacerdotes israelitas.

2. O racionalismo pretende igualmente tomar conta da realidade, mas segundo o espírito do sistema, e, para isso, serve-se da ordem legal estabelecendo meios e fins religiosos (sacrais), filosóficos (racionais) ou científicos (técnicos) organizando, assim, o modo como o homem pretende dominar o mundo e o tipo de relação social que pretende. Neste quadro, a religião estruturada, o pensamento filosófico e a própria ciência surgem como momentos ou graus dum contínuo racional, estreitamente relacionados entre si e determinados pela vontade do sistema.

3. Existe um nível de gratuitidade ou de acção carismática que, sem o negar, supera a ordem da racionalidade e dalgum modo justifica o objectivo mais fundo da magia, ainda que num sentido muito distinto, no sentido do dom e da gratuitidade, contra qualquer forma de manipulação sagrada. Situada neste nível, a religião não pode ser interpretada como sistema legal: não pretende dominar o divino, nem organizar em bloco os diversos elementos da vida humana, mas apenas venerar o mistério da realidade. Pertence ao plano da oferta ou do milagre, ao plano da experiência de admiração face à vida que nasce como algo maior do que nós, sem outra justificação que ela própria, em cada nascimento superando todo o tipo de morte.

A distinção entre magia, racionalismo e gratuitidade é positiva e pode ajudar-nos a compreender, de um modo básico, o contributo de Jesus, profeta carismático. Digamos que o homem primitivo habitava um jardim mágico, vital ou animista, onde os acontecimentos se sucediam impulsionados por almas ou forças (deuses ou demónios) que habitavam nas coisas; porém, simultaneamente, existia nisso algum tipo de experiência religiosa do foro da gratuitidade. As grandes religiões, que surgiram durante o tempo axial (budismo, cristianismo, islão, etc.), parecem mais relacionadas com a ordem racional, aparentemente organizadas em moldes de sistema sagrado, ainda que, no fundo, possuam também um certo tipo de gratuitidade superior.[1]

Como se poderá ver, coloquei o racionalismo propriamente dito na área intermédia, ocupando uma extensa franja da realidade e estabelecendo um tipo de organização «legal» da experiência humana, utilizando meios (sacrais, filosóficos e técnicos) para a consecução de certos fins, suscitando um todo ou um sistema bem estabelecido, com ramificações ou aplicações de tipo económico, social, ideológico ou militar. Este racionalismo permitiu que a vida se expandisse através das grandes culturas (religiosas, filosóficas, científicas), mas, em si mesmo, ele é insuficiente para compreender a realidade, na medida em que existem níveis da experiência anterior ou pré-racional (magia-mística) e também posterior ou supra-racional (religião da gratuitidade), que definem o homem na sua máxima fundura. (…)


2. Aplicando e alargando. O testemunho de Marcos

O evangelho de Marcos, mais do que as palavras de Jesus, descreve os factos, mais do que os seus discursos, descreve os seus gestos carismáticos libertadores. É provável que isso tenha sido uma reacção de Marcos contra uma certa tendência gnóstica da fonte Q, a qual se centra quase exclusivamente nas revelações da sabedoria de Jesus. Contudo, também constituiu uma oposição contra milagres todo-poderosos próprios dos “homens do divino” (theioi andres), [dos ‘funcionários do sagrado’]. Terá sido por isso que apresentou os milagres de Jesus como sinal de debilidade criadora e como entrega amorosa, expressando o sentido da Sua morte pelos outros a fim de instaurar o Reino. Morrer para oferecer um caminho de diálogo e de comunicação a todos, oferecendo a vida aos pobres e excluídos: eis o seu mais alto carisma, a expressão da sua mística pessoal, o do seu encontro amoroso com os outros.

Segundo Marcos, Jesus não pretendeu criar um sistema religioso mais perfeito, nem expor uma filosofia universal a partir dos princípios da realidade, nem uma certa ciência mais exacta ou mais misteriosa. A quem o procurava ou o veio a procurar, apenas ofereceu uma experiência imediata com Deus, pondo Deus em contacto directo com eles. Este foi o Seu carisma, essa a sua tarefa: comunicar-se de modo imediato e sem imposição, dum modo poderoso e amante, para marginalizados e enfermos da sua proximidade, oferecendo-lhes a possibilidade de viver - abriu-lhes uma porta de esperança. É o que vamos tentar demonstrar evocando cinco milagres ou conjuntos de milagres. (...)

Xabier Pikaza [2003]

[19 pp.]




[1] Sendo assim, podemos acrescentar que apenas o racionalismo ocidental moderno, que surgiu com a Ilustração, superou, de modo organizado, a magia (rejeitando, assim, o nível da gratuitidade), e dirigindo os seus processos cognitivos e operativos numa linha de acção instrumental bem programada e avalizada por ideias muito claras e experiências técnicas. A interpretação histórica mais conhecida dos três estádios que se vão sucedendo segundo um esquema diacrónico de A. Comte (religião, filosofia e ciência), de algum modo, está por trás da minha divisão e oferece, sem dúvida, alguns contributos. Contudo, tende a esquecer um elemento essencial: a experiência da mística e da graça propriamente dita, que dalgum modo se pode relacionar com a magia, mas que eu fiz deslocar sobretudo para o terceiro momento (gratuitidade e carisma). Tal experiência não se pode transformar em sistema e, portanto, não pode entrar em nenhum dos três estádios de A. Comte, nem mesmo no racionalismo da área intermédia do meu esquema.


19 de fevereiro de 2013

POBRES: OBJECTO OU SUJEITO? [CASTILLO]

Os pobres e a Igreja






Introdução

Ninguém pode pôr em questão o interesse, a preocupação e o trabalho que a Igreja sempre teve com a causa dos pobres. Portanto, ignorá-lo, colocar isso em questão, não lhe conferir importância ou marginalizá-lo seria, antes de tudo, uma falsidade e, em segundo lugar, uma injustiça. A Igreja, desde os tempos dos primeiros cristãos, desde os Padres da Igreja, desde os grandes autores e os grandes crentes ao longo de toda a história do cristianismo nunca cessou de clamar a favor dos pobres, de rogar por caridade, inclusivamente de pedir que se faça justiça aos pobres. Isto é um facto que se impõe por si; existe abundante literatura. Ocorre-me neste momento um livro que muitos de vós conheceis: o livro de José Ignacio González Faus “Vigários de Cristo”, publicado pela editorial Trotta.[1] Aí tendes uma magnífica selecção de textos sobre o que os pobres significam para a Igreja selecção de textos desde os Padres da Igreja até à actualidade. Este livro remete para toda a abundante bibliografia que sobre este tema existe. Portanto: que este ponto fique, desde já, bem claro. Se o esquecemos, cometemos um erro muito grave. Dito isto, acrescentemos o seguinte, que é o que mais importa.

Se é indiscutível que a Igreja nunca cessou de clamar por caridade a favor dos pobres, se é verdade que não faltam santas e santos canonizados que se distinguiram pela sua entrega e generosidade para com os pobres, mesmo assim falar d’Os pobres e a Igreja é falar dum problema muito grave e que permanece por resolver. Porquê?

Enquanto os pobres foram objecto sublinho a palavra objecto   objecto da atenção da Igreja, objecto do interesse da Igreja para lhes fazer caridade, objecto para defender a justiça a favor dos pobres, enquanto eles foram objecto de tudo isso, eles não constituíram problema algum. Pelo contrário, esses, que tudo isso fizeram pelos pobres, foram elogiados e elevados aos altares. Um exemplo muito recente é o de Madre Teresa de Calcutá: a sua morte foi acontecimento mundial e já vai a caminho dos altares.


Os pobres como sujeito

Mas quando os pobres não se resignaram a ser simplesmente objecto do interesse da Igreja, mas quando pretenderam ser sujeito do pensamento da Igreja e das decisões da Igreja, então, surgiu um grande problema e uma grande preocupação. Enquanto os pobres foram meros objectos-receptáculo das atenções da Igreja, não se passou nada. No momento em que os pobres quiseram ser sujeito da Igreja (repito, sujeito do pensamento e sujeito das decisões na Igreja), as coisas complicaram-se.

Tudo isto aconteceu neste século XX, porque, tal como nos ensina a história da Igreja e da teologia, nos séculos XII e XIII, os movimentos anti-eclesiásticos   cátaros, albigenses, valdenses, pobres de livre arbítrio, todas aquelas pessoas que, na maioria dos casos, eram pobres que protestavam contra a corrupção do clero e que pretendiam dizer algo sobre a Igreja sabemos bem como eles terminaram: literalmente, na fogueira.

Como sabem, o Papa Inocêncio III iniciou a sangrenta perseguição desses grupos e conseguiu exterminá-los no sentido mais literal da palavra. O único resto que deles sobrou são grupos valdenses que em Roma têm umas quantas magníficas igrejas e que, hoje em dia, estão agregadas ao Conselho Mundial das Igrejas. A seguir, os pobres calaram-se, limitaram-se a receber esmolas e atenções. Sabemos que a seguir ao século XVIII surge o movimento operário. Mas isso é um acontecimento que não pertence à história do cristianismo, mas à história da sociedade. Logo de seguida veio a condenação, à labúrdia, de todos esses movimentos sociais por parte do Papa e dos Bispos.

Dentro da Igreja, a questão só se colocou a partir do concílio Vaticano II. A partir da conferência de Medellín, surge a Teologia da Libertação, na qual os pobres tomam a palavra e pretendem tomar decisões; depois sugiram outros grupos, concretamente, o vosso caso: os CPS – cristãos pelo socialismo. Conhecemos todos a sua origem e desenvolvimento. Todos sabemos qual foi a atitude das autoridades centrais da Igreja face à teologia da libertação e face a grupos como o vosso. A reacção foi colocar entraves, foi rejeitar e elaborar condenações mais ou menos dissimuladas para que não tivésseis audiência pública. Isto quer dizer que a Igreja (custa dizê-lo, mas há que dizê-lo), isto quer dizer que a Igreja tem medo dos pobres. Trata-se dum medo profundo, do qual muitos dos que ocupam cargos de representatividade da Igreja não têm consciência. Atenho-me a factos, para dizer que há medo e um medo muito profundo, por vezes inconsciente, outras inconfessado e inconfessável.

Na Igreja há medo que os pobres pensem, que falem e, sobretudo, que tomem decisões. Na parte final desta minha comunicação explicarei onde reside a raiz mais funda deste medo. Entretanto, a modo de exemplificação e para, dalguma forma, desenterrar este medo aos pobres, e em geral às vítimas do sistema dominante, causador de tanto sofrimento e de tanto derramamento de sangue no século que agora finda, limito-me a três comportamentos eclesiásticos que, só por si, são eloquentes.

Em primeiro lugar, o silêncio, em segundo a legitimação e em terceiro a colaboração.


Primeiro: o silêncio

Com demasiada frequência, diante de situações de sofrimento dos mais desamparados, a Igreja oficial optou pelo silêncio. No dia em que se fizer a história deste século e a história do comportamento da Igreja durante este século haveremos de deparar com realidades inimagináveis. Pensem, por exemplo, no que consistiu o silêncio da Hierarquia espanhola durante a ditadura de Franco: silêncio diante da tanto assassinato, de tanta tortura, de tanto atropelo aos direitos humanos, de tanta agressão a pessoas que pediam justiça e liberdade. Somente para os tempos derradeiros, quando era já evidente o fim do ditador, alguns bispos começaram a tomar atitudes mais críticas; surgiu, então, o grito “Tarancón al paredón”[2]; mas isto já foi bem em cima do fim da ditadura. A ditadura durou 40 anos e a atitude inicial da Igreja foi a de dizer que a ditadura era uma cruzada e que o ditador era o Messias salvador da pátria.

Recordemos o silêncio da Igreja diante das atrocidades de Hitler e do nazismo. Em Roma sabia-se o que se estava a passar nos campos de concentração. Acabou de sair, em Londres, um livro sobre Pio XII, que irá dar muito que falar. O seu autor quis escrever uma biografia de Pio XII numa linha elogiosa desse Papa. Dirigiu-se para Roma e, aí, um jesuíta, o padre Gumpel, que é o delegado para as causas da beatificação e canonização de jesuítas, estava também encarregado da causa de Pio XII, a quem a Igreja queria canonizar. O padre Gumpel tinha em seu poder o arquivo secreto de Pio XII. O autor inglês apresentou-se ao padre Gumpel e disse-lhe: “Por favor, eu gostaria de escrever um livro, uma biografia elogiosa de Pio XII.” Não o disse com má intenção, ou seja, de modo a ludibriar, a enganar o padre Gumpel. Fê-lo com a melhor das intenções – ele de facto queria escrever uma biografia elogiosa do Papa Pio XII. Gumpel colocou à sua disposição todo o arquivo: o autor fotocopiou cerca de 600 documentos. O título do livro é “Hitler’s Pope’, O Papa de Hitler, já que na documentação descobrira factos que ninguém conhecia nem esperaria encontrar. Em primeiro lugar, descobriu o anti-semitismo de Pio XII. Em segundo lugar, a estreita relação com o nazismo, por antes o Cardeal Giovanni Pacelli (depois, Pio XII) ter sido núncio na Alemanha.

A mim custa-se muito aceitar que Pio XII não estivesse ao corrente do que estava a acontecer na Alemanha. No entanto, aconteceu toda a barbárie que sabemos que aconteceu e Roma … nem uma palavra sobre o genocídio! Houve silêncio. Há silêncios mais eloquentes que discursos. Refiro o silêncio do Vaticano sobre os crimes de genocídio de Hitler. Mencionemos, também, o silêncio dos núncios e do Vaticano diante das atrocidades que as ditaduras de direita cometeram por todo o mundo, concretamente na América Latina. Sabe-se, por exemplo, que o Cardeal Laghi era amigo dos generais da Argentina ao ponto de jogar ténis com eles…


Segundo: a legitimação

Hoje temos a sorte de ter entre nós François Houtart, um dos primeiros nomes da sociologia das religiões. Todos vocês sabem que a função da religião é legitimar as instituições públicas, concretamente suas actuações e suas narrativas. Isso acarreta um reconhecimento do poder constituído e, naturalmente, realiza a legitimação desse mesmo poder diante da opinião pública e diante da sociedade. Não vou apresentar nenhuma novidade. Apenas sumariar a (…)

José Maria Castillo, sj

[11 pp.]






[1] Edição castelhana esgotada. Ainda existe, no Brasil, em alfarrábios– em sêbos – alguns exemplares em português do Brasil.

17 de fevereiro de 2013

OPÇÃO NÃO-PREFERENCIAL PELOS POBRES [VIGIL]

A Opção pelos Pobres é «Opção pela Justiça»,
(e não é Preferencial)

Para um reenquadramento teológico-sistemático
da
«Opção pelos Pobres»


Os pais da «Teologia da Libertação»



Situação da questão

Sempre dissemos que a Opção pelos Pobres se fundamenta em Deus mesmo, no ser de Deus, e tem, portanto, natureza “teocêntrica”.[1] De alguma maneira, podemos dizer que o próprio Deus é quem faz a opção pelos pobres - Deus “é” opção pelos pobres. Era um consenso universalmente sentido que esta Opção pelos Pobres se baseava, precisamente, no Amor-Justiça do Deus bíblico e cristão.[2]

Entretanto, com o advento da “crise da Teologia da Libertação”, alguns autores suavizaram o seu discurso sobre a “Opção pelos Pobres”, preferindo abandonar a perspectiva do Amor-Justiça,[3] substituindo-a quase completamente pela da “gratuitidade” de Deus como fundamento da Opção pelos Pobres. Neste novo posicionamento, Deus, simplesmente “prefere” os pobres, tem uma “fraqueza” misericordiosa, uma “ternura” incontida para com eles, e não é preciso procurar muitas razões para esse facto, precisamente porque é “gratuito”.

A Opção pelos Pobres resultaria numa espécie de “capricho” de Deus para com os “pequenos”, os “fracos”, os “insignificantes”. É destes que hoje se deveria falar, e já não mais dos “pobres” no sentido forte[4] do discurso clássico, o qual hoje estaria já ultrapassado. A própria teologia da Opção pelos Pobres deveria desvincular-se do tema forte da justiça e ser adjudicada ao tema suave da gratuitidade.

A minha tese é (…)


José María Vigil

[14 pp.]






[1] “Digamo-lo com clareza: a razão última dessa opção está no Deus em quem cremos. (...) Trata-se, para o crente, de uma opção teocêntrica, baseada em Deus”. G. GUTIÉRREZ, “El Dios de la Vida”, Christus 47(1982)53-54, G. GUTIÉRREZ, La fuerza histórica de los pobres, Lima, 1980, pp 261-262.

[2] Apesar de ser uma obviedade, ver a tese doutoral de J. LOIS, Teología de la Liberación: opción por los pobres. Madrid: IEPALA 1986. Aí se estuda a Opção pelos Pobres em vários dos principais teólogos da libertção do período clássico.

[3] Um caso claro pode ser o de Gustavo GUTIÉRREZ. Numa palestra pronunciada diante de Ratzinger, afirma: “A temática da pobreza e da marginalização convida-nos a falar de justiça e a ter presentes os deveres do cristão a respeito. Na verdade é assim, e esse enfoque é sem dúvida fecundo. Mas não se deve perder de vista o que faz que a opção preferencial pelos pobres seja uma perspectiva tão central. Na raiz dessa opção está a gratuidade do amor de Deus. Este é o fundamento último da preferência”. A partir desse momento, já não volta a aparecer a palavra “justiça” na sua dissertação e toda a Opção pelos Pobres gira em torno à “gratuidade”. Cf. G. GUTIÉRREZ, Una teología da liberación en el contexto del tercer milenio, in VÁRIOS, El futuro de la reflexión teológica en América Latina. Bogotá: CELAM, 1996, p. 111. Não se trata de um texto isolado, mas sim, na minha modesta opinião, de uma perspectiva suavizada comum na teologia da Opção pelos Pobres de G. Gutiérrez já há mais de uma década; cfr. G. GUTIÉRREZ, Pobres y opción fundamental, in  Mysterium Liberationis, San Salvador, UCA Editores, 1991, pp. 303ss, 310.

[4] Pobres que eram uma realidade “coletiva, conflitiva e socialmente alternativa”: C. BOFF, ¿Quiénes son hoy los pobres, y por qué?, in J. PIXLEY / C.BOFF, Opción por los pobres, Madrid: Paulinas, 1986, pp. 17ss.



13 de fevereiro de 2013

«EXTRA PAUPERES NULLA SALUS» [JON SOBRINO]

“A vueltas con Dios,
A vueltas con los pobres”





Pediram-me para escrever o epílogo a um livro que mal tempo tive de ler. (…) Bem sabemos o quanto se discute, hoje, se a Teologia da Libertação goza de saúde ou se, pelo contrário, está já bem morta e bem enterrada. Eu também me interrogo. No entanto, de mil maneiras, continuam a ouvir-se aquelas palavras lapidares: «Em bem vejo a aflição do meu povo e ouço o clamor que os seus capatazes lhe arranca. Por isso, desci para o libertar» (Ex 3:7-8). Assim é o nosso mundo. Assim é o nosso Deus.

«Deus» e «povo que sofre» são realidades últimas, tal como nos acaba de lembrar Don Pedro Casaldáliga: «tudo é relativo, menos Deus e a fome». (…)

Não pude ler o livro pausadamente e com atenção, porém pretendo dizer algumas palavras acerca do título «Descer os pobres da cruz», que está escrito sobre a bela ilustração de Máximo Cerezo. Comecemos com uma reflexão sobre «os pobres».

Os da minha geração recordarão um famoso livro, dos anos sessenta, com o discreto título «Às voltas com Deus». Deus é mistério, santo e ao mesmo tempo próximo. Se o deixarmos ser Deus, sem o querer manipular ou domesticar, andaremos sempre «às voltas com Deus». E isso, porque a teologia apenas consegue dizer que «o mistério permanece eternamente mistério», como dizia Karl Rahner.

A misteriosidade do mistério de Deus permanece, mas, colado a ele, encontramos o mistério dos pobres. Isso está nas Escrituras, nas tradições cristãs e em veneráveis religiões. Em Medellín apenas para colocar uma referência temporal   esse mistério deixou-se ver   ophté como mistério inesgotável, luz poderosa e exigência convocante. A partir de então, de modo muito real e existencial, Deus, sem deixar de ser Deus do mistério, abriu espaço para o mistério dos pobres. É por isso que, com mais ou menos sorte, teremos que continuar «às voltas com os pobres». É por isso que me agrada que eles estejam no título do livro.

Quem e quantos são, porque o são, até quando o serão, são perguntas essencialmente categoriais. Uns estudam-nos para aprofundar a sua realidade, outros para os fazer chegar, educadamente, um pouco para lá da nossa vista. Muitos teólogos e teólogas, que andaram «às voltas com os pobres», iluminaram-me muito. Pessoalmente, tentando relacionar os pobres com a nossa realidade   à qual, aliás, não pertenço formulei as seguintes conclusões.

Pobres são os que não dão por adquirido ter vida (ter vida como algo normal), pelo que eu não sou um deles, já que o dou por adquirido. Pobres são os que têm (quase) todos os poderes deste mundo contra eles, dimensão dialéctica   expressão de outrora   na qual, pelo simples facto de eles existirem, faz com que a sua condição de pobres se constitua, para mim, na pergunta se estou a favor ou contra. Pobres são os que não têm nome: as oitocentas mil pessoas de Kibera, chacinadas, praticamente sem latrinas.[1] Pobres são, seja-me permitido um disparate, os que não têm calendário: eles não fazem a mínima ideia o que seja o 7O, ainda que saibam todos o que é o 11S. O 7O é o 7 de Outubro, dia em que as democracias bombardearam o Afeganistão como resposta ao 11 de Setembro. Sem nome e sem calendário, os pobres não têm existência. Não são. Diante disso, interrogam-me: que palavra dizer, ou não, para que o sejam?

Os pobres são sim! Neles resplandece um grande mistério: a sua «santidade primordial». Com temor e tremor escrevi: «extra pauperes nulla salus». Eles transportam salvação.

Tudo isto é questionável. Pretendo, contudo, insistir em que, pelo menos numa teologia cristã, não podemos sacudir os pobres como o fazemos à caspa dos ombros, muito menos devemos colocá-los em segundo plano: é nobre e necessário um comportamento ético para com eles. O motivo já o avancei: os pobres tornam presente um mistério. Os pobres oferecem uma mistagógia para que nos introduzamos no mistério de Deus. A inversa é igualmente verdadeira: a fim de que, a partir de Theos, nos abeiremos melhor do seu mistério.

Monsenhor Romero conhecia a sentença de Ireneu «Gloria Dei vivens homo», e, semanas antes de ser assassinado, formulou-a deste modo: «Gloria Dei vivens pauper». Donde resulta ainda que soe imperdoavelmente abstracta   que «pobres são aqueles que, vivendo, são a glória de Deus». Usando palavras mais prementes, Deus sai de Si mesmo com prazer, alegra-se, quando vê que esses milhões de seres humanos empobrecidos, desprezados, ignorados, desaparecidos e assassinados, respiram, comem e dançam, vivem uns com os outros, dão as mãos aos que não são pobres como eles, inclusivamente perdoam aos que os vêm oprimindo ao longo de séculos. Confiam em Deus como a um pai ou a uma mãe amorosa e alegram-se com o seu irmão Jesus. (…)

Deles, Puebla disse que Deus, independentemente da sua situação pessoal e moral, «defende-os e ama-os», e disse-o por esta ordem. Ora, quando se tem que defender alguém é porque há inimigos por perto. Os inimigos dos pobres são, sobretudo, os ídolos da riqueza e do poder, segundo o ponto de vista de Puebla. A figura do pobre fala-nos de uma «luta de deuses».






Quando vi a capa do livro, o que em primeiro lugar me ocorreu foi esta centralidade do pobre. Sugeriu-me aquilo que hoje pode constituir-se como o concentrado, a «fórmula breve do cristianismo»: «gloria Dei vivens pauper». Mas, na capa do livro há mais!

Na pintura de Maximino Cerezo, os pobres homens e mulheres pendem duma cruz. Não se trata de uma metáfora de economistas, nem «povo crucificado» é uma expressão politicamente correcta. Pender da cruz pode ser linguagem da Arte, mas, não entre muitos, tal linguagem é também de teólogas e de teólogos.

Pobres são os que ficam (…)

Na noite de Natal de 1978, com estas palavras o disse Monsenhor Romero:

«A Igreja prega a partir dos pobres. Nunca nos envergonhemos de dizer Igreja dos pobres, pois entre os pobres Cristo colocou sua cátedra de redenção».

A cristologia da libertação tem muitos mais temas para tratar, mas deve dar um contributo importantíssimo à construção dessa igreja. Com isso, resolverá também muitos demónios do nosso tempo, quer na sociedade, quer nas igrejas. São eles, o docetismo   viver no irrealismo, viver na abundância e na pompa num mundo em que se morre de fome; o gnosticismo procurar a salvação no esotérico e não no seguimento de Jesus; uma fé e uma liturgia light quando o que a realidade está a exigir é uma fé robusta, audaz. Ao invés, usando palavras fortes espera-se da cristologia que, diante do Cristo que se fez presente no nosso mundo latino-americano como num ingente Mateus 25, não ajude, mesmo que inconscientemente, a dizer como o Grande Inquisidor: «Senhor, não voltes».

A nossa esperança é outra. Que o Cristo de Medellín regresse e fique neste continente. Que nos surja através de muitas outras testemunhas de igrejas e de religiões. E que o conheçamos melhor para o podermos amar mais e segui-lo.

Jon Sobrino, sj

[10 pp.]