teologia para leigos

24 de novembro de 2015

«O MEU CRISTO PARTIDO DE CASA EM CASA» [R.CUÉ, sj]




«O MEU CRISTO PARTIDO DE CASA EM CASA»

– um invulgar êxito editorial, uma extraordinária companhia antes de adormecer


«Até que um dia… − e aqui começa propriamente o segundo episódio de "O Meu Cristo Partido" − aconteceu o inesperado. Se bem que, tratando-se de Cristo, tudo se possa esperar. Ele guia-se por dois padrões diferentes.

«Eu tinha estado ausente durante toda a tarde e regressava a casa cansado e aborrecido, depois de me ter esquivado a dois pedidos insistentes para lhes emprestar o Cristo. Tinha sido uma cena desagradável e violenta. Eu regressava com mau sabor de boca. E, pela primeira vez, comecei a duvidar da legitimidade da minha atitude e a suspeitar que me estava a deixar levar pela teimosia duma arbitrária decisão inicial.

«Seria um mero capricho?

«Estava disposto a reexaminar o problema. Até mesmo a mudar de opinião, se o novo exame assim o exigisse. Mas amanhã. Esta tarde, não tinha serenidade para isso.

− Bem! Vou perguntá-lo a Cristo. Ele que resolva! – disse de mim para mim, para acabar de me tranquilizar.

«E entrei em casa.

«Dois minutos depois, estava no meu escritório. Da porta, dirigi o meu olhar para o culpado de toda aquela tensão que tanto me angustiava: o Cristo.

«Fiquei estupefacto.

«O lugar que a imagem costumava ocupar estava vazio. Nem queria acreditar. Parecia-me uma alucinação, provocada pelo desgosto daqueles dias. Abeirei-me da parede. Era verdade. O meu Cristo partido tinha desaparecido.

«Sobre o damasco vermelho do fundo, só restava a marca do seu corpo – sem cruz e sem braço direito – recortada num tom mais vivo, que a luz do sol tinha respeitado.

«Não fui capaz de reagir.

«Ignoro o tempo que ali passei imóvel, em pé, de olhos cravados naquela silhueta desenhada no fundo vazio e desbotado do pano. Como se o damasco estivesse a sangrar por aquele vermelho mais vivo, qual ferida nele deixada pela imagem de Cristo.

«O choque apanhou-me tão desprevenido que fiquei sem capacidade de reacção, simplesmente aniquilado.

«Até que, ao mexer a cabeça, dei pela presença branca de uma carta à beira da lamparina que ardia sem interrupção junto do Cristo e que continuava acesa, alheia ao sucedido.

«O sobrescrito estava em branco e aberto. Continha um papel com quatro linhas escritas à mão numa letra clara e firme:

"Levo o seu Cristo porque preciso dele. Não lho pedi porque sei que é inútil e eu preciso dele. Não fique preocupado. Terei muito cuidado com ele, pois gosto dele pelo menos tanto como o senhor. Fique descansado. Devolver-lho-ei".

«A letra parecia espontânea e sem disfarces. […]

«Eu estava furioso. Tinham-me pisado no ponto mais sensível: o meu amor-próprio. E a minha heróica atitude de inquebrantável recusa a emprestar a imagem de Cristo jazia ridiculamente por terra.

«A essas horas, como estariam a rir, à minha custa, os que soubessem do sucedido!»


[…]


Cristo organiza o Seu escritório

− A bagagem de Cristo

− Manobra de Cristo num «Rolls-Royce»

− A lista negra de Cristo

− Cristo visita uma Confraria

− etc.


(A aventura continua… em mim… em ti… Dorme bem!)






«Mi Cristo roto de Casa en Casa», Ramón Cué, jesuíta, Santiago de Compostela.
«O meu Cristo partido de casa em casa», R. Cué sj, Editorial Perpétuo Socorro, Rua Visconde das Devesas, 630, Vila Nova de Gaia, 20ª edição. ISBN 972-563-184-6 (à venda na Livraria Paulinas, Rua de Cedofeita – Porto)



9 de novembro de 2015

O MEU CRISTO PARTIDO [R.CUÉ, sj]

«O MEU CRISTO PARTIDO»

– um invulgar êxito editorial, uma extraordinária companhia antes de adormecer





«O meu Cristo partido» é a história de um padre – o Autor – que compra uma imagem de Cristo muito mutilada [na feira de velharias ou do Rastro]: sem rosto, sem um braço, sem uma perna, sem … cruz.

Pretendendo mandá-la restaurar, Cristo opõe-se-lhe radicalmente, pois é assim partido, mutilado, que Ele se identifica com os que sofrem:

"Quero que, vendo-me partido, te lembres de tantos irmãos que convivem contigo e que estão, como Eu, partidos, esmagados, oprimidos, doentes, mutilados… Sem braços, porque estão desempregados ou ainda não conseguiram o primeiro emprego; sem pés, porque lhes bloquearam os caminhos da vida; sem cara, porque lhes roubaram a fama, o mérito, o prestígio…".


(para nos ajudar a superar o gnosticismo e o monofisismo de hoje, para que falemos menos de Cristo ou de Jesus Cristo e mais de Jesus de Nazaré…)


— "Disse-te no primeiro dia, quando te comprei em Sevilha, que te mandaria restaurar, que ficarias completo… E foste Tu que te opuseste, que não deixaste!" – disse o padre.

— "Como podes ser tão tolo…" – disse o Cristo.









«Mi Cristo roto», Ramón Cué, jesuíta, Santiago de Compostela.
«O meu Cristo partido», R. Cué sj, Editorial Perpétuo Socorro, Rua Visconde das Devesas, 630, Vila Nova de Gaia, 33ª edição, Outubro de 2007. ISBN 978-972-563-018-1 (à venda na Livraria Paulinas, Rua de Cedofeita – Porto)




28 de outubro de 2015

QUEM É JESUS DE NAZARÉ? [J.COMBLIN]




A Família

[…] «Ninguém ignorava a procedência de Jesus: era de Nazaré da Galileia, filho de uma família modesta, comum, sem nada que a destacasse das outras. Era como se disséssemos ser filho de um humilde artesão de Catolé da Rocha ou de São José do Egito, lá no fundo do sertão. A ausência total de mistério quanto à origem não chamava a atenção do povo: «Quanto a este sabemos donde vem, enquanto o Cristo, quando vier, ninguém saberá de onde vem» (Jo 7,27). Se ele era descendente de David (de acordo com as genealogias que muito mais tarde os evangelistas acrescentaram à narrativa dos seus actos), se no tempo em que nasceu houve acontecimentos extraordinários, etc. nada disso era do conhecimento do povo. Aos olhos de todos, nada havia nele que parecesse notável ou digno de atenção nesse filho de família pobre do interior.

«Durante trinta anos, Jesus confundiu-se de tal maneira com essa família humilde, com esse contexto insignificante da Nazaré, pareceu tão semelhante aos seus parentes, destacou-se tão pouco no meio dos seus concidadãos que foi uma surpresa total quando um dia ele se separou deles e começou uma carreira que os espantou. Diziam os de Nazaré: «Não é esse o carpinteiro, o filho de Maria, o irmão de Tiago, de José, de Judas e de Simão? E as suas irmãs não estão elas aqui, entre nós?» «E ficavam chocados com ele» (Mc 6,3). A incompreensão foi tal que um dia eles o expulsaram da sinagoga de Nazaré (Lc 4,28ss). Vendo a agitação que Jesus provocava no povo e o sucesso que fazia, os seus familiares ficaram com vergonha diante do povo da cidade – ou com medo. Quando voltou a casa, afluiu de novo a multidão, de modo que nem puderam comer. E, os seus, quando ouviram isto, foram ter com ele para o dominar, pois diziam: «Perdeu o juízo» (Mc 3,20-21). Mais tarde, porém, vendo que o êxito perdurava, começaram a perceber o proveito que poderiam tirar da fama de um parente que tanto prestigiava a família. Diziam-lhe: «Sai daqui e vai para a Judeia, para que vejam também os teus discípulos as obras que fazes; pois ninguém, se pretende colocar-se em evidência, age em segredo. Já que fazes tais coisas, mostra-te ao mundo» (Jo 7,3-4). Os seus familiares falavam como os parentes de um jovem vereador que teve êxito na sua cidadezinha do sertão, convencidos que já está na hora de se projectar na capital, se quiser candidatar-se a deputado.

[…]


Em Espírito e Verdade

[até aqui] «Ainda não encontramos na vida de Jesus a presença de Deus. Porque demoramos tanto? A razão é que na realidade a missão de Jesus gira em torno de duas preocupações ou, se quiser, de dois eixos principais: a mensagem de libertação e a mensagem de fraternidade a fim de refazer a Aliança de Israel, a verdadeira e eterna aliança. Nas memórias evangélicas, Deus permanece muito discreto: não ocupa quase nenhum lugar. Essa constatação, se proferida há bastantes anos atrás, teria provocado estranheza em leitores mais antigos. Na verdade, estes, projetando nos Evangelhos a sua intensa preocupação religiosa e cultural, nem seriam capazes de entender tal facto desconcertante: Jesus não pratica nenhum acto religioso, nem parece preocupar-se lá muito com a prática religiosa dos seus discípulos. Não somente não toma parte no culto do seu povo, como não funda nenhum culto novo. Há, nos Evangelhos, a esse respeito, um silêncio muito significativo. Qual é, então, o lugar que Deus ocupa na vida e na mente de Jesus?

«Em primeiro lugar, dissemos que ele não pratica os actos religiosos do seu povo: parece ser alguém que se emancipou e que quer emancipar os discípulos. Referindo-se ao Templo de Jerusalém, em nenhuma circunstância os evangelistas nos mostram Jesus exercendo um acto de culto: quando ele vai ao Templo, vai para tomar a palavra [pregar a Boa Nova] ou para expulsar os vendedores – não vai para oferecer sacrifícios, participar das cerimónias sagradas ou recitar orações. Usa o Templo como tribuna ou teatro das suas atividades num sentido totalmente secularizado: o Templo é um lugar em que se encontram muitas pessoas reunidas. Para Jesus, o Templo até pode ser destruído (Mc 13,2): o Templo já não cumpre nenhum papel na Aliança Verdadeira. Já «vem a hora em que nem neste monte nem em Jerusalém adorareis o Pai… vem a hora, e já é chegada, em que os verdadeiros adoradores adorarão o Pai em Espírito e em verdade. E são esses os adoradores que o Pai deseja» (Jo 4,21-23).

«Com isso, Jesus não quis dizer que doravante se poderiam edificar templos em qualquer lugar. Ele quer dizer que, doravante, o verdadeiro culto de Deus não consistiria em construir templos e exercer neles o culto. Consistiria, pelo contrário, em agir sob a moção do Espírito, fazendo a Verdade.

«Jesus não oferece sacrifícios, nem incita os discípulos a manifestar nem que seja um pouco de piedade. Não os leva a tomar parte nas liturgias do Templo. Não frequenta regularmente a Sinagoga. É verdade que ele esteve nas sinagogas várias vezes, porém, as memórias evangélicas mostram que Jesus foi à sinagoga para se revelar a si mesmo e não por devoção ou necessidade de culto. Nesse sentido, nem Jesus nem os apóstolos são muito religiosos.

«Atacando os fariseus, Jesus não poupa nem sequer a piedade deles. «Quando orardes, não sejais como os hipócritas, que gostam de rezar de pé nas sinagogas e nos cantos das ruas, para serem vistos pelos homens. Em verdade vos digo: já receberam a sua recompensa.» (Mt 6,5) «Simulam longas orações» (Mc 12,40).

«É verdade que Jesus esteve algumas vezes em Jerusalém para participar das festas. Contudo, não o vemos exercer nenhum acto de culto. Quando o grupo se aproxima de Jerusalém, no fim da missão de Jesus, para a última ascensão à capital, são os apóstolos que perguntam: «Onde queres que vamos preparar a Ceia pascal?» (Mc 14.12). Jesus responde a uma preocupação deles. A festa dos judeus fornece a Jesus uma ocasião de se encontrar com a multidão: não desperta nele ardores religiosos.

«Mais surpreendente ainda é o facto de Jesus não ter fundado nenhum culto novo. Não organiza uma nova maneira de adorar a Deus, de lhe prestar homenagem e de lhe apresentar dons e súplicas. Institui a Ceia, porém é difícil reconhecer na Ceia um acto de culto. Essa transformação [de ceia em acto de culto] não foi feita por Jesus, e não há nenhum sinal de que ele tenha pensado nessa possibilidade. A Eucaristia virou Missa dentro de um contexto de civilização do mundo mediterrânico, como adaptação cultural. Na instituição da Ceia não há nenhum acto dirigido a Deus. Por outro lado, não contém nenhuma liturgia nova.

«Jesus ora, contudo, sem cerimónia. Para orar, Jesus isola-se. Não fornece aos discípulos nenhum modelo de como fazer essa oração. «De madrugada, muito antes de o raiar do dia, levantou-se, partiu para um lugar deserto e ali ficou a orar» (Mc 1,35). Em outra circunstância, Jesus despediu a multidão e «foi ao monte orar» (Mc 6,46). O que é que ele fez aí? Não o sabemos. Quando os apóstolos se preocupam com o tema da oração apelam para o exemplo de João Baptista. Eles devem ter tido a impressão de que Jesus não se interessa por esse assunto. Disse-lhe um dos discípulos: «Senhor, ensina-nos a orar, como João ensinou os seus discípulos» (Lc 2,1). O interessante é que foi necessário um pedido explícito dos discípulos que estranhavam a sua conduta, para que Jesus pensasse em entregar o formulário que, desde então, se tornou a fórmula clássica por excelência da oração cristã.

«Em matéria de oração, Jesus é e quer ser discreto, muito discreto. Não somente se esquece de falar disso aos seus discípulos, mas, quando fala, insiste sobretudo nos aspectos negativos da oração. «Ao rezardes não multipliqueis as palavras, como fazem os pagãos: acham que à força de muitas palavras é que são atendidos. Não sejais semelhantes a eles» (Mt 6,7-8). «Quando rezares, entra no quarto mais secreto, fecha a porta e reza a teu pai, que está presente num lugar oculto; e teu Pai, que enxerga no escondido, dar-te-á a recompensa» (Mt 6,6). Para Jesus, a ideia de "oração" vai acompanhada da ideia de "lugar oculto". Discrição no modo de fazer, na quantidade, no lugar. Tudo sucede como se Jesus quisesse fazer da Oração um exercício totalmente espontâneo e pessoal, sem condicionamentos sociais, sem constrangimento. Uma oração assim fica totalmente desprovida de aparato, de cerimonial, de exterioridade. Quase que não é culto, antes uma conversa familiar.

«Os Evangelhos não descrevem nenhuma manifestação mística na vida de Jesus. Isso quer dizer que os apóstolos não assistiram a experiências religiosas e que, até Jesus, não achou conveniente ou útil, sequer, relatar tais experiências, isto no caso de elas terem de facto acontecido. Dessa maneira, Jesus é bem diferente dos místicos cristãos que sobre ele se apoiaram e O invocaram. Além disso, Jesus não oferece nenhum caminho de ascensão mística nem receitas ascéticas para facilitar a vida mística. Os Evangelhos não nos mostram um Jesus «religioso», mas sim um Jesus livre de ritos, de cerimónias, formulários ou horários marcados. Isso não quer dizer que os cristãos não possam recorrer a tais coisas. Simplesmente, não podem é invocar o exemplo de Jesus.

«O único fenómeno religioso a que assistimos é o da Transfiguração. Mesmo assim não foi propriamente um fenómeno religioso no sentido cultual: não houve culto nem louvores. Na Transfiguração não aparece Jesus em estado de Oração ou em êxtase. Os discípulos não recebem instruções quanto ao modo de tratar Deus nessa circunstância.

«As orações de Jesus, que os Evangelhos referem, são as da Paixão. No Jardim da Agonia, Jesus ora. «Chegaram, então, a uma propriedade designada Getsémani, e Jesus disse aos discípulos: "Sentai-vos aqui, enquanto vou rezar". Tomou consigo Pedro, Tiago e João, e começou a sentir pavor e angústia. E disse-lhes: "Minha alma está a morrer de tristeza; ficai aqui e vigiai". Adiantando-se um pouco, caiu por terra e orou para que, se possível, passasse dele aquela hora. E dizia: "Abbá, Pai, tudo te é possível; afasta de mim este cálice! Mas não se faça o que Eu quero, e sim o que Tu queres."». (Mc 14,32-36) Nesta Oração, nenhum elemento de experiência religiosa, nenhum sentimento da presença do Pai: é a Oração do Silêncio de Deus! O leitor aguarda, espera, mas não chega nenhuma resposta da parte de Deus: não vem resposta. Mais tarde, na Cruz, Jesus pronuncia as suas palavras de solidão e de abandono: «Meu Deus, Meu Deus, porque me abandonaste?» (Mc 15,34). Não há oração mais despojada de qualquer experiência mística (os místicos dirão que não há oração mais verdadeiramente mística)

«Essas constatações negativas são muito significativas da «religião» instituída por Jesus. A Igreja, posteriormente, acrescentou-lhe uma Liturgia abundante. Contudo, essa Liturgia não está nas origens. Essa Liturgia não tem valor que se compare ao valor que a própria vida de Jesus tem. Ora, tudo leva a crer que o relacionamento de Jesus com o Pai é excepcionalmente livre de qualquer aparelho litúrgico ou cultual. O único culto que o Pai parece desejar é a própria missão de Jesus, as suas caminhadas, as viagens, as curas de enfermos, a instrução dada às multidões ou aos discípulos, aquilo que S. Pedro[1] chamará "culto realizado em Espírito" (Rm 12,1).


O Nome

«Onde é que se situam, então, as relações entre Jesus e Deus? É o que precisamos de indagar de imediato. Primeiro, qual é o nome que Jesus usa para se referir a Deus? Jesus não propõe nenhum nome novo. Os nomes divinos que Jesus usa vêm da Bíblia. No entanto, os Evangelhos sinópticos praticam uma selecção significa entre todos os nomes divinos. E não se duvida que a selecção feita tenha sido feita por Jesus e imitada pelos primeiros cristãos.

«A tradição evangélica não evita o nome de Deus (o theos grego que traduz o nome hebraico), como fazem os judeus piedosos do seu tempo. A tradição evangélica, portanto, não pratica o maneirismo piedoso e refinado dos fariseus. O único caso em que se substitui o nome de Deus por outro, (por motivos religiosos) é a expressão mateana "Reino dos Céus". (Mt 3,1; 5,3; 7,21). Entretanto, o mais provável era Jesus dizer «Reino de Deus», de acordo com a tradição de Marcos. O nome «o Altíssimo» era excepcional, apesar de ser o mais comum entre os judeus. O nome «Rei» somente surge uma vez (Mt 5,35), num texto que parece referir-se a uma citação. Também o nome «Senhor» somente se encontra em contexto de citações, apesar de ser habitual entre os judeus, ou, então, em textos muito solenes. Visivelmente, esses não foram os nomes usados pelos primeiros cristãos. Jesus falava de outra maneira. O nome de Deus mais usado por Jesus é Pai. Essa apelação não era nova: já existia no Antigo Testamento e era bem conhecida na época de Jesus. Portanto, Jesus não a inventou, mas a insistência nesse título é que constituiu um facto novo.

«No modo de falar de Jesus, o nome «PAI» torna-se o nome próprio de Deus, tão próprio que lhe fica reservado. Na mente de Jesus, o nome «PAI» é reservado de tal modo que ninguém tem o direito de o usar. «E, na terra, a ninguém chameis ‘Pai’, porque um só é o vosso ‘Pai’: aquele que está no Céu.» (Mt 23,9). Além disso, o vocativo «PAI», Abbá-Pai, usado por Jesus, é fenómeno novo. Os judeus não se dirigiam a Deus dessa maneira[2]. Há nessa expressão um tom de familiaridade totalmente novo: uma ausência total de cerimónia. Por isso, não é possível que esse tratamento, tão sem constrangimento, tenha sido inventado pelos cristãos. Só Jesus poderia ter lançado um estilo tão novo.

«Os Evangelhos conhecem vários modos de usar o título "PAI": «o Pai», «meu Pai», «vosso Pai». Certos textos foram composição da tradição, por exemplo: a Oração de Jesus no jardim de Getsémani. Se os discípulos dormiam, não podiam ter ouvido a oração de Jesus. Contudo, não é possível que tenham inventado o título "Pai", se não tivessem guardado a memória do modo habitual de Jesus tratar Deus. A inspiração e a criação são de Jesus.

«Deus é Pai para Jesus e Pai para os discípulos e para os homens em geral. Há dois relacionamentos diferentes: os textos deixam claro que Deus não é pai da mesma maneira em ambos os casos. Contudo, o facto de que o mesmo tratamento seja atribuído a ambos mostra que há contacto entre as duas paternidades. A paternidade de Deus para com Jesus determina a paternidade de Deus para com os homens em geral. Também a atitude filial dos homens em geral deriva da atitude de Jesus.


Conhecer o Pai

«Jesus fala do Pai com muita simplicidade e familiaridade. Permite-o aos homens e sugere-lhes um comportamento semelhante. Todavia, não dá muitas explicações sobre o Pai. Ele não deu aos discípulos nenhuma doutrina sobre Deus, como Ele é, quais são os atributos d’Ele, e assim por diante. Os Evangelhos não expõem a essência de Deus. Ficam muito aquém dos filósofos e das religiões pagãs. O que interessa a Jesus, na sua pregação, não é falar de Deus, mas sim falar dos homens e do porvir dos homens. O Pai está sempre presente, mas sempre de forma discreta. O Pai fica oculto.

«Não é por acaso, ou fortuitamente, que as tradições evangélicas não contêm uma revelação a respeito de Deus: o silêncio é sistemático. Jesus leva o rigor da teologia hebraica ao extremo: Deus fica de tal maneira acima das criaturas que, embora presente em todas as partes, o seu segredo permanece totalmente inviolável. «Jamais alguém viu Deus» (Jo 1,18). É loucura, presunção, irreligiosidade procurar perceber algo de Deus.

«Mais tarde, S. João reflectirá sobre essa inviolabilidade de Deus, conjuntamente com o facto que foi a vida de Jesus. Deus permanece inacessível, tanto depois como antes, inconhecível. Porém, Ele dá-se a conhecer – melhor dito – dá sinal da Sua presença em acontecimentos que ocorrem no meio dos homens. O acontecimento significativo por excelência foi justamente a passagem de Jesus de Nazaré pelos sítios e pelos caminhos da Palestina. Quem vê e contempla com atenção esse Jesus de Nazaré entenderá tudo o que se pode entender acerca de Deus neste mundo. «O Filho único, que está no seio do Pai, ele o deu a conhecer» (Jo 1,18). Disse Filipe: «"Senhor, mostra-nos o Pai, e isso nos basta". "Há tantos anos que convivo convosco – disse-lhe Jesus – e ainda não me conheceis, Filipe? Quem me viu, viu o Pai. Como podes dizer «Mostra-nos o Pai?» Não crês que eu estou no Pai e o Pai em mim?"» (Jo 14,8-10).

«Que esta resposta não nos engane: Jesus não quer dizer que Ele tem aspecto de Deus, que há uma evidente aparência divina n’Ele. N’Ele, a divindade mostra a Sua presença sob a forma de sinais humanos.

«Não há nada, na aparência de Jesus, que não seja puramente humano.

«Em Jesus, Deus não se tornou visível, mas mostrou-nos o único caminho que nos leva seguramente a Deus. A mensagem de Jesus consiste em afirmar que não vale a pena tentar conhecer Deus em si mesmo, directamente. A única maneira de saber algo a respeito de Deus é situar-se na linha de Jesus, pôr-se em relação com Jesus. Quem entra no caminho dos discípulos aprende a conhecê-lo, pois um determinado modo de ser homem e de viver como homem constitui o acesso autêntico a Deus.

«Portanto, se quisermos conhecer Deus precisamos de ver como Jesus se relaciona com o Pai e entrar no mesmo processo de relacionamento, já que é Jesus quem mostra o caminho. (…)»





José Comblin, padre e teólogo. Belga de nascimento (1923-2011), trabalhou na América Latina a partir de 1958 como teólogo (Brasil, Chile, Equador), vivendo em comunidades pobres, que o inspiraram a criar um método teológico-catequético que ficou conhecido por "teologia da enxada"[3].

«Jesus de Nazaré – meditações sobre a vida e a acção humana de Jesus», VOZES, Petrópolis-RJ, Brasil, 1976, 4ª edição.






«José Comblin e a Igreja dos Pobres»
NOTA BIOGRÁFICA







[1] «Por isso, vos exorto, irmãos, pela misericórdia de Deus, a que ofereçais os vossos corpos como sacrifício vivo, santo, agradável a Deus. Seja este o vosso verdadeiro culto, o espiritual. Não vos acomodeis a este mundo. Pelo contrário, deixai-vos transformar, adquirindo uma nova mentalidade, para poderdes discernir qual é a vontade de Deus: o que é bom, o que lhe é agradável, o que é perfeito.» (Carta aos Romanos 12, 1-2).

[2] [NdE] Sobre esta questão, cf. a conferência de JOSÉ ARREGI «O Deus de Jesus, mais além, para lá da sua imagem de Deus» (Igreja em Diálogo 2013, «Deus Ainda Tem Futuro?», Ed. Gradiva, Seminário da Boa-Nova, Valadares), onde comentou as conclusões de J. Jeremias exaradas em «Abbá. El mensaje central del Nuevo Testamento» (Sígueme, Salamanca 19934, pp. 18-89; edição de 20056, pp.19-73) confrontando-as – e superando-as – com base noutras conclusões de outros autores, p. ex.: Theissen, G. – Merz, A., «El Jesús histórico», Sígueme, Salamanca 1999, p. 557; Perrot, Ch., «Jésus, Christ et Seigneur des premiers chrétiens», Desclée de Brouwer, Paris 1997, pp. 229-230.