teologia para leigos

25 de janeiro de 2014

EUCARISTIA - ADORAÇÃO DO SANTÍSSIMO? [CASTILLO]

Eucaristia






I.           As dificuldades

Tal como se costuma hoje em dia celebrar a Eucaristia, é evidente que, para muitos cristãos, se torna difícil compreender e viver correctamente aquilo que, segundo os relatos da instituição, Jesus disse ao instituir este sacramento: «Fazei isto em memória de mim» (1Cor 11:25; Lc 22:19). Ou seja: «Fazei isto mesmo, para que vos lembreis de mim, para que actualizeis a minha presença e a minha memória entre vós». Porém, será que podemos estar assim tão seguros de que uma missa pontifical solene celebrada no contexto grandioso das nossas catedrais e com a pompa e circunstância que tal acarreta, evoca espontaneamente a memória e a presença viva do Jesus do Evangelho? Não se trata de uma pergunta retórica, mas de algo tão óbvio que o estranho é que esta pergunta produza mal-estar ou indiferença em muitos cristãos. Será que desvirtuamos a esse ponto (ao ponto de causar estranheza a pergunta) a memória e a presença de Jesus entre nós?

Estas perguntas têm a sua razão de ser não só na liturgia e nos costumes da Igreja, mas sobretudo na teologia eucarística que elaboramos e continuamos a ensinar às pessoas. E isto pelas seguintes razões:

1. Porque a teologia, desde o séc. XI até hoje, colocou a sua preocupação suprema na afirmação da presença de Cristo na eucaristia e nas questões relacionadas com a explicação aristotélico-tomista dessa presença.

2. Porque como consequência ao explicar a eucaristia, o que mais se ensinou aos fiéis foi o tema da presença e da comunhão.

3. Porque daí seguiu-se que, a fé na eucaristia, se centrou mais na devoção e na piedade pessoal e menos na celebração da comunidade cristã, com as suas exigências de união e solidariedade.

4. Porque a evolução histórica quanto ao modo de celebrar o sacramento da eucaristia orientou de tal maneira as coisas que acabou por prevalecer o «sagrado» sobre o «comunitário». Assim se explica que aquilo que começou com uma Ceia de Fraternidade acabou numa solene cerimónia sagrada, que em nada se assemelha a uma refeição partilhada.

5. Porque um dos problemas que mais preocupa a teologia eucarística actual é uma questão que não se colocou nem no Novo Testamento nem na Tradição dos dois primeiros séculos do cristianismo. Trata-se do debatido assunto do ministro que pode (ou não) celebrar a eucaristia: tem de ser necessariamente um ministro ordenado? As mulheres poderiam presidir à eucaristia? Questões deste tipo apaixonam, inclusivamente, determinados sectores da opinião pública, e isso acarreta duas consequências negativas:

a)                  Coloca-se excessivo interesse em questões que em nada tocam o núcleo central da eucaristia;
b)                  A crescente escassez de ministros ordenados na Igreja traz consigo o facto de, para muitos cristãos, ser impossível ir à missa todos os domingos. O mais grave é que parece que isso preocupa muito pouco as autoridades eclesiásticas; preocupam-se muito mais em manter, firmemente, a prática estabelecida no que se refere ao ministro da eucaristia.


Seja qual for a solução que se dê a essas dificuldades, é fundamental perceber que não se trata de meras questões práticas. Ao centrar a atenção nestas questões, trata-se do seguinte: a teologia desviou a sua atenção daquilo que é fundamental, no que se refere ao sacramento que, na expressão do concílio Vaticano II, é «fonte e cume de toda a vida cristã» (LG 11,1).

[…]


IV. A experiência da primeira comunidade

Em Actos 2:42-47, resume-se o ideal daquilo que deve ser uma comunidade cristã. Trata-se de uma comunidade que «frequenta o Templo», «parte o pão nas casas» e todos «comem juntos, louvando a Deus». O texto, por um lado, fala do «Templo», já que os membros da comunidade eram judeus de Jerusalém e, por outro, da «fracção do pão», que se celebrava nas «casas». Distingue-se, então, o espaço sagrado do espaço profano. E a eucaristia, como acto próprio e específico da comunidade, localiza-se no âmbito do profano. Não era, portanto, um ritual religioso, mas um símbolo comunitário.

As consequências que esta experiência comunitária acarretava ficaram claramente afirmadas nos sumários dos Actos dos Apóstolos: «os crentes viviam todos unidos e tinham tudo em comum» (Act 2:44); «no grupo dos crentes, todos pensavam e sentiam o mesmo, possuíam tudo em comum e ninguém considerava seu nada do que tinha» (Act 4:32). Estes textos idealizavam o que de facto ali ocorria. Expressam, com vigor, as consequências que devem ser levadas a sério pela comunidade, quando esta celebra a eucaristia correctamente. Não se trata, primordialmente, de consequências de carácter “religioso”, mas de consequências de ordem “social”. À medida que cada um possuía algo (nessa altura já havia propriedade privada), colocava-o à disposição dos demais.


V. Quando a eucaristia se torna impossível

As exigências sociais da eucaristia são afirmadas, com mais força ainda, em 1Cor 11:17-34. Trata-se das severas advertências que Paulo faz à comunidade de Corinto, precisamente, porque aí se celebrava mal a eucaristia. A falha não estava no facto de que se deixasse de cumprir determinadas normas litúrgicas. Nem que o ministro das celebração não estivesse devidamente «ordenado». Ou que os coríntios tivessem ideias equivocadas sobre a presença de Cristo no pão e no vinho. Nada daquilo que agora preocupa os teólogos no que diz respeito à eucaristia era, então, motivo de preocupação. O que se passava era que os cristãos estavam divididos, porque entre eles havia ricos e pobres, de maneira que os ricos comiam e bebiam até embriagar-se, enquanto os pobres passavam fome (1Cor 11:21). E porque, depois disso, todos se reuniam para celebrar a mesma eucaristia.

Ora, Paulo diz a esses cristãos: quando assim se celebra a eucaristia já não é celebrar a «ceia do Senhor»; também pode traduzir-se assim: «assim é impossível comer a ceia do Senhor» (oúk éstin kyriakon deipnon phagein) (1Cor 11:21). Quer dizer, os que se reúnem para celebrar a eucaristia, na realidade não se reúnem primordialmente para um acto de devoção, de piedade ou de religião, e muito menos para um acto social ou de carácter político ou inclusivamente militar, mas para fundirem-se num só (synergomenon epi to auto) (1Cor 11:20). A divisão ou o enfrentamento entre pessoas ou grupos torna impossível a celebração da eucaristia. Um facto social impossibilita um acontecimento teológico. A «ortodoxia» depende essencialmente da «ortopráxis».


VI. A significação fundamental

De tudo aquilo que se disse se deduz que a significação fundamental da eucaristia se deve interpretar a partir do símbolo da refeição partilhada. Partilhar a mesma mesa é partilhar a mesma vida. E como na eucaristia a comida é o próprio Jesus, segue-se que a eucaristia é o sacramento em que os crentes se comprometem a partilhar, entre eles, a mesma vida no amor e na solidariedade.

É isso que o evangelho de João proclama. Este evangelho que, no capítulo seis, fala amplamente da eucaristia, não faz memória do (…).

José Maria Castillo










17 de janeiro de 2014

IGREJA - SACRAMENTO UNIVERSAL [CASTILLO]

«A Igreja, sacramento universal de salvação»






[...] Sempre se disse que a Igreja carece sempre de reforma (ecclesia semper reformanda), mas a experiência histórica ensina-nos que tal necessidade de reforma sempre foi colocada mais frequentemente do lado da conversão pessoal dos cristãos que do lado da renovação e da mudança das estruturas organizativas da própria Igreja. Não se pretende realizar, aqui, nenhuma disjuntiva: optar por um dos lados contra o outro. É claro que ambas as reformas são necessárias. Importa perceber que, quando todos os problemas da Igreja são focados na conversão dos indivíduos, está-se, com isso, a querer dizer que o centro das preocupações da Igreja tem a ver com a conversão do pecado e com a santidade dos seus membros. Não se discute que a Igreja se tenha ou não de preocupar com isso e interessar-se por tal. Porém, se a igreja se ficar apenas ou principalmente por aí corre o risco de incorrer no erro que a ela e a inúmeros povos e culturas custou bem caro, sobretudo naqueles onde ela se implantou. Tal erro tem a ver com colocar o “pecado” que ofende a Deus acima, em maior destaque, e em segundo plano o problema do “sofrimento”, que torna os homens desgraçados. É evidente que, quando falamos de conversão e de santidade, estamo-nos a referir ao problema do pecado e à questão das ofensas a Deus.

Ora bem, uma Igreja centrada nesse ponto é uma Igreja que se centra e concentra na administração dos sacramentos, pois é para isso que existem os sacramentos, do baptismo (“para o perdão dos pecados”) até à eucaristia, na qual recebemos o corpo (“que se entregou por vós”) e o sangue (“que foi derramado para o perdão dos pecados”). Donde que, a partir desta mentalidade, todo o sistema sacramental da Igreja esteja pensado e organizado para resolver o problema do pecado, e não para humanizar este nosso mundo e para aliviar a dor humana: o baptismo, para nos limpar do pecado original e para nos conceder a graça que nos santifica; a confirmação para complementar o compromisso baptismal naquela mesma direcção; a penitência como o sacramento específico e próprio para perdoar os pecados; a eucaristia para nos unir ao sacrifício de Cristo, que morreu pelos nossos pecados; a unção dos enfermos, por mais que se diga que é para dar vida e saúde, de facto, é um sacramento que se administra aos moribundos para que Deus lhes perdoe os pecados que ficaram por perdoar mediante o sacramento da penitência; o matrimónio como sacramento a partir do qual as pessoas podem exprimir o seu amor sem pecar; a ordem sacerdotal como o sacramento que confere o poder de consagrar a eucaristia e o poder de perdoar sacramentalmente os pecados, tal como o diz o Canon número um da secção XXIII de Trento (DS 1771). A partir desta mais que resumida enumeração dos sacramentos da Igreja, qualquer pessoa se apercebe da centralidade avassaladora que o tema do pecado tem na teologia sacramental da Igreja.

Ora, se os sacramentos da Igreja estão concebidos assim e são administrados pastoralmente a partir de tal mentalidade, é a prova mais que evidente que a Igreja está presente neste mundo como a instituição que possui a função e a missão de gerir e resolver o problema do pecado, problema – o pecado – que os dirigentes eclesiásticos trataram de empalavrar e apresentar de forma tão desproporcionada que, para evitar pecados ou para os perdoar quando já cometidos, essa Igreja muitas vezes não tenha hesitado em causar sofrimentos indescritíveis a pessoas e grupos inteiros neste mundo. As consequências desta teologia, para a Igreja, foram destruidoras: (…)


A razão de ser deste protagonismo das práticas sacramentais na reforma da Igreja reside no facto de, como sabemos, os sacramentos serem, nos momentos mais marcantes da vida, a manifestação do sacramento primordial que a própria Igreja é. O que quer dizer que a crise das práticas sacramentais é, em última análise, a manifestação mais visível da crise da Igreja na sua totalidade. Por outro lado, importa não esquecer que os sacramentos (e a forma concreta de os celebrar) são a dimensão mais imediatamente visível da Igreja. De um modo geral, o povo cristão não tem ao seu alcance o conhecimento dos complicados estudos e análises teológicas da Igreja. O que o povo vê e ouve são baptizados, missas, confissões, casamentos e ordenações sacerdotais. É assim que se torna presente (ou ausente) a Igreja, para a maioria da população cristã. Donde, a importância determinante de uma renovação e duma actualização de tais celebrações, se se quiser conseguir uma reforma a profunda da Igreja.

Concretizando mais. É urgente que os sacramentos deixem de ser meros actos sociais, como de facto o são para a maioria dos cidadãos. Isto é mais que claro, especialmente em determinados sacramentos, como é o caso dos baptizados, das comunhões e dos casamentos. (…)


José M. Castillo Sánchez