teologia para leigos

21 de janeiro de 2018

SER CRISTÃO É SER SEGUIDOR DE JESUS [JULIO LOIS]



QUE SIGNIFICA SER CRISTÃO ENQUANTO "SEGUIDOR DE JESUS"?


Para começar, duas observações prévias acerca do próprio título da conferência e uma terceira de carácter metodológico.

A primeira observação poderia formular-se assim: ao ler o título pode ficar-se com a sensação de que ele é tautologicamente desnecessário e que deveríamos abreviá-lo. Ou seja, deveria bastar «que significa ser cristão?». Para quê acrescentar «enquanto seguidor de Jesus»? Porventura, não é óbvio que ser cristão é precisamente ser seguidor de Jesus? Seja qual for o ponto de vista quanto a esta questão (e o meu ficará claro ao longo desta conferência), a verdade é que, de facto, historicamente falando, a identificação entre "existência cristã" e "seguimento de Jesus" não parece tão óbvia assim.

«Quando somos obrigados a precisar em que consiste a identidade cristã sempre demos primazia, e conferimos valor autónomo, à aceitação intelectual do «depósito revelado», à confissão puramente verbal, ao cumprimento pontual desta ou daquela prática religiosa, etc., etc., e acabamos por deixar o "seguimento" de lado. É verdade que um sector importante da teologia cristã actual, bem como numerosas comunidades de crentes procuram «recuperar» o seguimento de Jesus como categoria constitutiva e central do existir cristão e, inclusivamente, como critério último da verificação da autenticidade desse mesmo existir. Contudo, não podemos dizer que se tenha conseguido um consenso unânime quanto a este tópico, nem que tal desejo já esteja a alimentar, no momento presente, a vida dos cristãos. Por isso, não me parece supérfluo insistir, tal como o faço no título, que ser cristão equivale a ser seguidor de Jesus.» (…)


Julio Lois Fernández [1935-2011], Conferência a 16 de Março de 1982.
«¿Que significa ser cristiano como seguidor de Jesús?
Catedra de Teología Contemporanea, Colegio Mayor «Chaminade»
Patrocínio: Fundación Santa María, Madrid. ISBN 84-348-1119-7.






9 de janeiro de 2018

A ÉPOCA PROBLEMÁTICA DO SEGUNDO «PÓS-CONCÍLIO» [J. PEREA]



A ÉPOCA PROBLEMÁTICA DO SEGUNDO «PÓS-CONCÍLIO»
— o que o Papa Francisco tem pela frente


Três lustros (15 anos) após o encerramento do Vaticano II, o optimismo – para não dizer a esperança suscitada por ele – esboroava-se. Inúmeras orientações emanadas da hierarquia durante a época pós-conciliar não estavam de acordo com o ideal proposto pelo Concílio. Vozes nem por isso alarmistas, como as de J. B. Metz em 1969 ou de K. Rahner três anos após, falavam de uma marcha atrás rumo ao gueto[1]. Generalizou-se o desencanto e, apesar de muitos – sobretudo pertencentes à hierarquia e às correntes católicas neoconservadoras – nunca o quererem designar assim, a verdade é que se produziu uma vasta e profunda crise no povo cristão. Os sintomas foram numerosos e bem evidentes. Agrupamo-los em três palavras-chave de modo a sermos melhor entendidos: (1) paralisação do processo de renovação; (2) silenciamento da teologia do "Povo de Deus"; (3) falhanço da reforma das instituições.

Concomitantemente produziu-se um fenómeno de resistência tenaz, silencioso, em boa parte reprimido, que, apesar do mau ambiente reinante, subsistiu, e que procurava tão só manter a chama conciliar acesa, à espera de tempos melhores. A segunda parte do capítulo 4 deste livro apresenta o ideário, quiçá não explícito, daqueles que mantiveram a todo o custo a vontade de reforma, o ideário daqueles que pensavam – cheios de razão – que nos documentos conciliares estavam formuladas as linhas de fundo duma fé para a nossa época, fé fiel à autêntica tradição, porém sem qualquer tipo de rotura, fé actualizada por via duma interpretação que consideravam adequada ao nosso tempo[2].


I – A CRISE PÓS-CONCILIAR

1.      Paralisação do processo de renovação

Os historiadores da Igreja sabem bem que os períodos de recepção dos Concílios são sempre longos e que, frequentemente, o pós-concílio é sempre um tempo de movimentações e estratégias claramente contrárias às deliberações conciliares. Ora, acontece que hoje em dia, 50 anos após o encerramento conciliar, estamos a viver uma situação bastante diferente dessa inicial e movimentada fase. O dinamismo emanado do Concílio Vaticano II foi dificultado durante anos e anos por círculos conservadores que têm grande influência – inclusivamente, influência económica – na condução da Igreja. Mais ou menos silenciosamente, vive-se uma polarização subliminar entre duas frentes. Sobre muitos refluiu a nostalgia da cristandade, com a sua respectiva arrogância confessional. A comunhão, na Igreja, tornou-se meramente verbal, e a coresponsabilidade aos mais diversos níveis foi asfixiada pelo Direito. O diálogo autêntico tornou-se – e continua a ser – difícil com os bispos. Muitos com responsabilidades eclesiais deixaram-se levar pela perda da confiança na renovação eclesial. Bastantes foram catalogados de suspeitos por parte dos seus superiores na Igreja.

Como consequência de isto tudo, um contingente significativo de católicos perdeu qualquer interesse no acontecimento Vaticano II e deixaram de se inspirar nele. Círculos cada vez mais amplos foram apanhados pela desilusão, e neles ocorreu uma certa emigração «interna» ou externa. Muitos católicos, mergulhados neste desaguisado, caíram na tentação de viver a sua fé – parafraseando Hugo Grocioetsi Ecclesia non daretur, como se a igreja não existisse. Parece que o Concílio ficou perdido nas brumas duma memória, sobrevivendo como princípios de minorias sensíveis, resistentes à evolução dum mundo donde retiram alguns argumentos para fundamentar a reclamação de mudanças ou respostas aos desafios da sociedade actual, petições a que ninguém há muito liga nenhuma.

Apesar da nova era que se iniciou com o Papa Francisco, há quem ainda tente travar o processo de recepção do Concílio.[3]

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[3] Cf. Robert Dodaro, osa (Edit.), «Permanecer en la verdad de Cristo – Matrimonio y comunión en la Iglesia católica», Ed. Cristiandad 2014, ISBN 978-84-7057-601-0. Andrew Brown, The Guardian, 24 de Dezembro de 2017, «A guerra contra o Papa Francisco»: Exclusivo «The Guardian» / PÚBLICO. Tradução de António Domingos. Este artigo encontra-se publicado no P2, caderno de domingo do PÚBLICO. [NdT]



Na verdade, a «recepção do Concílio» começou a ser travada cerca de cinco anos após a sua clausura e as figuras de proa do aparelho curial nunca deixaram de trabalhar sobre os seus documentos-axiais (nomeadamente, Lumen gentium e Gaudium et spes) no sentido de «regressar aos textos autênticos do autêntico Vaticano II» a fim de «defender a verdadeira Tradição da Igreja» (palavras do cardeal J. Ratzinger, no livro de Vittorio Messori, «Informe sobre la fe», BAC Popular N.66, 22005, p. 37). [NdT]

Cf. igualmente Pedro Rodríguez (Dir.), «Eclesiología – 30 años después de "Lumen Gentium"», Ediciones Rialp S.A., Madrid 1994, ISBN 84-321-3066-4. Na página 22, a seguinte definição parece datar de tempos ante-conciliares: «a Igreja é a reunião dos homens que se encontram unidos pela comunhão do Credo e dos sacramentos, conduzidos pelos pastores legítimossobretudo pelo Papa. Por isso, a Igreja é uma formação social que é tão tangível e visível como um Estado» - Cardeal Gerhard Ludwig Müller citando Belarmino, "Controv. Gen. 4 III/2; 3 II". Que contraste com a abordagem libertadora de H. Kung: «Todos os crentes são Povo de Deus, portanto fica excluída qualquer clericalização da Igreja»; «todos [os povos] são povos de Deus pelo chamamento divino, portanto fica excluída qualquer exclusividade da Igreja»; «o povo de Deus formado por todos os crentes é um povo histórico e isso exclui a idealização da Igreja», etc. (in Hans Küng, «La Iglesia», Herder 1969, pp. 152-158). Revelando um evidente mal-estar pelo ambiente de irrupção de inúmeras novidades e de uma buliçosa efervescência de ideias teológicas e pastorais na sequência dos debates conciliares, o cardeal J. Ratzinger (referindo-se aos anos 70-80 do século XX; anos de "autodestruição", segundo o seu ponto de vista) diz: «É inquestionável que os últimos vinte anos foram decididamente desfavoráveis para a Igreja católica». (ibidem, «Informe sobre la fe», p. 35) [NdT]

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Não se trata de contestatários explícitos dos textos promulgados, mas de críticos do «acontecimento» conciliar (tal como atrás o definimos), pessoas que temem que se renove tudo o que aquele acontecimento significou para a época. No seu subconsciente, persiste a desvalorização do Concílio, que classificam de um concílio «pastoral», ignorando ou menosprezando o sentido profundo deste termo.

As gerações jovens, incluindo os presbíteros novos, não sabem em que consistiu o Concílio: para eles o Concílio não lhes diz nada[4]. Sentem-se mais tocados pelo catolicismo que o precedeu, sobretudo, pelas suas seguranças/certezas e por um certo autoritarismo clerical que os protege dos problemas que a comunidade cristã sempre suscita.

Após o Sínodo de 1985, a estratégia clerical foi a de regressar aos comportamentos anteriores ao Concílio plasmando-os no «novo» Código do Direito Canónico (CJC) de 1983, o qual trancou definitivamente as portas à abertura inspirada no Vaticano II. Assim, se tornou histórica e definitivamente inoperante o Concílio Vaticano II. Muitas disposições deste CJC significam um regresso ao passado ante-conciliar, na medida em que partem de uma interpretação restrictiva do Vaticano II, interpretação essa que pura e simplesmente elimina as novidades mais radicais do Concílio dos anos sessenta. Não houve o mínimo esforço em compreender a viragem que aconteceu no Concílio e, por isso, fez-se tudo o que se pôde por passar ao largo de tão profunda reforma.

A autoridade curial empenhou-se na maior uniformidade possível. Bloquearam-se, firmemente, todo o tipo de iniciativas que partissem das Igrejas locais, e isso com mão de ferro a partir do centro do poder. Em concreto, descafeinou-se completamente a colegialidade episcopal. Na verdade, o sínodo dos bispos tornou-se, não um Colégio com actuação e autoridade decisória verdadeira, mas apenas um organismo que «aconselha» o Papa, o qual é livre de aceitar ou ignorar as propostas da assembleia episcopal.

Em suma, a instituição eclesial no seu todo não reconheceu a evidência de que nos encontramos numa situação de paralisia que afecta toda a Igreja e que exige profundas reformas a vários níveis para que o organismo funcione: reformas na presidência da comunidade, na celebração dos sacramentos, no funcionamento dos órgãos da coresponsabilidade, na liberdade da investigação teológica, na participação das mulheres, etc. O reconhecimento de tal situação de paralisia está a custar, à Igreja, os olhos da cara. Apesar da insistência resiliente do Papa Francisco, existem muitos crentes que se interrogam se a hierarquia será capaz de realizar de per si a reforma eclesial que muitos consideram imprescindível para que se possa anunciar o Evangelho de Jesus como deve ser, no mundo actual.

Ou seja, durante quase trinta anos, assistimos ao contrário daquilo que o Papa João XXIII procurava com o Concílio, e que expressou na imagética de «abrir as janelas da Igreja de par em par». Na prática, não só se fecharam todas as janelas como também as portas, de modo a cortar a comunicação com o mundo exterior e a reforçar a disciplina a fim de evitar fugas.

2.      Silenciamento da teologia do "Povo de Deus"

Este aspecto merece uma consideração pormenorizada, por causa da importância única e decisiva que a categoria «Povo de Deus»[5]ideia axial – mereceu do Concílio. Já se escreveu, à saciedade, que o conteúdo do capítulo II da Constituição sobre a Igreja (Lumen Gentium – LG, "Sobre a Igreja") ocupou, neste texto conciliar, o lugar que antes estava reservado aos capítulos referentes ao ministério, ao laicado e à vida religiosa. Isto quer dizer que, após o Vaticano II, todas estas dimensões da vida eclesial (ministérios, laicado e vida religiosa) passam a estar subordinadas à categoria básica de Povo de Deus[6], sujeito eclesial que abraça todos os demais sujeitos diferenciados; a não ser assim, aquela ordenação no corpo do texto (em 1º lugar o Povo, depois os Ministros, …) torna-se inconsequente.

Lamentavelmente, desde o Sínodo dos bispos de 1985, esse termo chave desapareceu do ensino magisterial prático[7]: o Povo de Deus continua a ser objecto eclesial (da acção pastoral) subordinado ao ministério eclesiástico. A eclesiologia bíblico-teológica e patrística do Povo de Deus, tão rica de conteúdo espiritual, deixou de ter interesse, quiçá porque afirma, com toda a clareza, a dignidade fundamental de todo o Povo de Deus. Os antigos privilégios dos clérigos travaram o passo a qualquer caminhada rumo a uma comunidade futura renovada. A categoria paulina básica de «carisma», a que o Apóstolo conferiu carácter estruturante da Igreja e que foi repescada na Lumen gentium (cf. N. 4; 7; 12, etc.) e noutros textos do Vaticano II, foi completamente moldada através de estratégias hierárquicas de modo a que essa categoria paulina fosse colocada em espaços ocos ou em nichos deixados livres pelos ministérios previamente estabelecidos. Estes ministérios estabelecidos mantiveram-se, assim, imunes a qualquer tipo de nova configuração eclesial que pudesse vir a ser proposta. A única coisa que aconteceu foi uma certa integração dos ministros na comunidade cristã, mas sem partilharem do estatuto de sujeito em pé de igualdade com os membros não ministeriais da Igreja. Os ministros pré-estabelecidos não assumem o facto de eles também procederem do amplo Povo de Deus, ou de eles se deverem posicionar lado-a-lado de outros sujeitos com quem devem partilhar a solidariedade como membros de um único povo sacerdotal. Continua a falar-se dos membros do Povo de Deus como os que são «guiados», «ensinados», «cuidados» (a famosa cura pastoralis) pelos sujeitos do ministério. Na prática, continua a desconhecer-se que todo o Povo de Deus participa no ministério sacerdotal de Cristo, na experiência, na configuração e no testemunho da fé, na celebração divina, na coresponsabilidade e no envio ao mundo.

Consequentemente, ignora-se outra importante insistência do Concílio acerca do «sentido sobrenatural da fé de todo o Povo» de Deus (LG 12,1). Assim se paralisa a criatividade da base cristã, constitutiva da concepção viva da tradição, bem como não se valorizam os múltiplos discernimentos, nomeadamente éticos, com os quais a Igreja se comprometeu nestes últimos tempos. Enquanto os bispos e os presbíteros continuarem a pensar as actividades pastorais como território da sua única exclusividade, as afirmações acerca do Povo de Deus enquanto sujeito – aspecto basilar do Concílio – permanecerão ineficazes, ao mesmo tempo que os monopólios presbiterais e magisteriais instalados permanecerão intocáveis.

A doutrina conciliar teve de fazer frente às estruturas do poder espiritual antigas e ao duro monopólio do clero. O Concílio perdeu essa batalha.[8] Nunca conseguiu saltar de uma linguagem teórica e de belas imagens bíblicas de carácter simbólico rumo a concretizações que transformassem as estruturas e o direito eclesiástico. Fazer derivar todos os ministérios da acção do Espírito fazendo dele o coordenador funcional da missão salvífica da Igreja teria emprestado conteúdo eclesiológico aos novos "colaboradores", aos "assistentes pastorais", aos "ministérios laicais", aos "leigos-livres" (seja lá como quer que lhe chamemos) recentemente criados por razões pragmáticas. O que é certo é que a condição eclesial destes nunca chega aos calcanhares dos privilégios e das prerrogativas, nem à prioridade do lugar e do poder dos ministros estabelecidos desde antanho, os quais apelam, a seu favor, ao «direito divino» da tríada da ordenação. Todas estas formulações maciçamente doutrinárias foram mantidas como estabilização e sanção não apenas teológica, mas também ideológica daquelas posições de superioridade. Não há maneira de fazer saltar ou abrir a tampa do cartel do poder, tal como dolorosamente podem constatar os colaboradores pastorais não ordenados.[9] Falta-lhes não apenas a ordenação, mas também a plena incorporação num novo espectro de serviços e ministérios eclesiais.

Em suma: estamos para ver quando se dará a inclusão estrutural (não apenas conjuntural) de todos os sujeitos do Povo de Deus nas realizações vitais da Igreja. As tarefas de direcção devem ser coordenadas e vinculadas na linha da igual dignidade de todo o Povo de Deus: só assim a sua valorização ao nível dos princípios será consequente no plano estrutural. Quando todos os membros e todas as funções nascerem desta base, nunca se produzirá a separação que hoje existe: a Igreja «docente» nunca dispensará a função de escuta e até a sua doutrina deve radicar na experiência e na articulação comunitária da fé; a Igreja «discente» estará sempre autorizada a pronunciar a sua própria palavra e participará activamente no testemunho docente da fé.

3.      O falhanço da reforma das instituições

É desta situação que provém o fracasso da pretensa reforma das instituições. A causa que travou o início dum processo vigoroso de rejuvenescimento da Igreja, e que ameaça impedir uma recepção construtiva dos impulsos que se geraram no Concílio é a falta de articulação entre as orientações teológicas, pastorais e espirituais plasmadas na sua eclesiologia e uma renovação institucional coerente com elas. A importante elaboração eclesiológica e as indicações pastorais do Concílio tiveram, no pós-Concílio, uma influência raquítica, demasiado insuficiente ao nível das estruturas. Nem sequer se chegou a fazer uma revisão profunda das instituições eclesiais que as tornasse mais transparentes, flexíveis, ligeiras e coerentes com as exigências evangélicas.

A razão é muito simples. A superação do clericalismo, impulsionada pelo Concílio, implicava o abandono da referência que as instituições eclesiásticas e a sua autoridade – enquanto centro e medida da fé cristã e da Igreja – desempenhavam. Aquele impulso conciliar obrigava a redescobrir outras dimensões constructoras de Igreja: a , a comunhão, a disponibilidade para o serviço. São estes os valores com os quais se deve medir, quer a possibilidade, quer as instituições eclesiásticas em matéria de adequação ao Evangelho.

Pois bem, reconhecer o critério eclesial da referência ao Evangelho – como valor supremo acima da lógica interna das instituições – constituía uma mudança de mentalidade demasiado profunda a realizar. Lamentavelmente, as instituições haviam-se consolidado de tal maneira que acabaram por se atrasar quanto à missão que lhes incumbia no mundo. Na sua lógica interna, guiavam-se demasiado pelo uso do poder (mesmo que este poder se mascare com o adjectivo de sagrado ou espiritual) em vez do uso do serviço, convertendo-se, assim, em guardiãs da «ordem estabelecida», encobridoras dos conflitos latentes reais.

Um dos axiomas da sociologia das organizações diz, com certo cinismo, que toda a organização tem como principal objectivo sobreviver, ampliar a sua área de influência e incrementar o seu poder. Com a mira focada apenas no crescimento e no aumento dos recursos, muitas organizações são capazes de sacrificar os objectivos para os quais foram fundadas. Outras, no seu afã de se protegerem do exterior, acabam por incorrer em práticas autodestrutivas que as condenam à irrelevância, ao ostracismo e ao desaparecimento. Nunca devemos menosprezar as advertências dos sociólogos. Essas advertências devem ser repensadas na linha dum diálogo mais proveitoso e eficaz com outros credos religiosos e outras sabedorias espalhadas por esse mundo fora.

Ali onde confluem hierarquia e opacidade, será aí que preferencialmente se darão todo o tipo de abusos. Quanto maior assimetria de poder entre hierarquia e fregueses [=per-ecclesiæ, leigos], entre administradores e administrados maior é a probabilidade de a organização se anquilosar. A história da Igreja mostra que, também dentro dela, as autoridades eclesiásticas são propensas à tentação do poder, com a agravante de a cultura moderna oferecer novas formas mais subtis e muito eficazes de acumulação do dito poder. A Igreja assume mais riscos que qualquer outra instituição, por causa da sua configuração institucional, na medida em que concentra, em muito poucas mãos, uma enorme autoridade, autoridade frequentemente nada transparente. Máxime quando, por deferência para com a autoridade, são os próprios fregueses que de antemão renunciam ao controlo dessas instituições e confiam que os responsáveis, na sua sabedoria, saberão melhor do que ninguém autolimitarem-se e autocorrigirem-se.

Quanto a isto, a questão candente é o eclesiocentrismo: acima de tudo, a Igreja e os seus interesses! Acontece que o eclesiocentrismo é irmão gémeo de uma exigência amplificada de institucionalização. O risco de que a Igreja-instituição ofusque a Igreja-mistério torna-se, então, enorme. E quando isso sucede, solta-se a tampa de todas as ambições pessoais, o carreirismo, a aparência baseada numa imagem vaidosa, as lutas intestinas, as divisões no seio do corpo eclesial, inclusivamente a necessidade de pôr de lado a justiça a fim de defender o «bom nome da Igreja».

São muitos os que pretendem que a presente realidade da Igreja se mantenha absolutamente homogénea, e, quanto àqueles que não concordam, que "vão à vida" sem fazer ruído, sem importunar demais. A dificuldade para que tal situação mude está em nos encontrarmos diante de uma mentalidade e uma realidade profundamente enraizada, quer estrutural, quer cultural, quer pré-organizativamente. Enfrentamos uma estrutura institucional montada assim desde há muitos séculos e que choca de frente com as tendências sociais actuais absolutamente irreprimíveis que avançam numa via de aumento da diversidade dos grupos e de autonomia das pessoas.

Como consequência destes últimos trinta anos, forjou-se, de facto, uma cultura eclesial hegemónica que impõe um certo modelo de edificação de Igreja, ao mesmo tempo que, a outros modelos legítimos mas não hegemónicos, não se lhes deixa margem de manobra nem direito de cidadania, nem muito menos a possibilidade de interagir suficientemente com o anterior.

As estruturas existentes antes do Vaticano II sempre estiveram em vantagem. As novas posturas, que deveriam ter transformado o sistema, enfrentaram-se com uma doutrina jurídica forjada em tempos remotos e com uma situação de conditio possidentis por parte do governo e da política eclesiástica.

É por isso que a reforma e a adequação da estrutura e das instituições eclesiásticas só serão possíveis se elas se cotejarem e se medirem forças com o critério eclesial supremo: a fidelidade a Cristo e ao Evangelho, a consciência da fé, os valores da comunhão e da disponibilidade para o serviço.

Deviam ter sido tiradas as devidas consequências, para a praxis eclesial, das posições de princípio definidas pelo Concílio. Depois de ter falado do Povo de Deus, os capítulos subsequentes sobre a hierarquia, sobre o ministério papal e episcopal, o laicado, etc. tinham de ter chegado a conclusões concretas e não se terem deixado ficar apenas pelo terreno dos princípios. Devia ter-se lutado firmemente para que o primado fosse inserido necessariamente na responsabilidade colegial dos bispos, de modo a que as igrejas locais fizessem frente ao centralismo romano. Deveria ter-se trabalhado com um horizonte de futuro de modo a integrar novos ministérios eclesiais no mesmo grau de ordem existente nos ministérios até agora privilegiados. Nunca se deveria ter acreditado ingenuamente que viesse a ocorrer a traslação automática da eclesiologia do Povo de Deus para um ordenamento jurídico concreto, para uma estrutura institucional e para uma política eclesial: deveriam ter sido dados previamente esses passos e, depois, deveria controlar-se criticamente essa passagem, supervisionando o traslado para a praxis eclesial e pastoral, etc. Nada disso foi feito.

O pior é que a questão da reforma das instituições nunca é meramente pragmática: ela tem repercussões muito sérias na concepção de Igreja que se pretende. Basta uma olhadela retrospectiva para que nos apercebamos, claramente, do contexto em que muitas das medidas foram tomadas, e concluir que, através dos trabalhos secretos à volta da Lex Ecclesiæ Fundamentalis (imediatamente compilados e reunidos no Código de 1983), se modificou de modo determinante a constituição da Igreja católica. Com efeito, o poder jurisdicional ocupa a cadeira principal no pensamento oficial das instituições. Falar apenas de paralisação ou de centralização, já seria muito grave. Mas, muito mais perigoso para o futuro da Igreja é a sua juridicização. A questão teológica de fundo é a seguinte: a estrutura interna da Igreja de Jesus Cristo é desde os seus começos apostólica e, posteriormente e no concreto, episcopal. Essa estrutura própria da Igreja apoia-se no ordo, ou seja, na consagração, pelo que, o poder da ordem ocupa uma posição prioritária sobre o poder de jurisdição, e nunca o contrário; a jurisdição depende da ordem. Assim o ensinou claríssima e rotundamente o Concílio Vaticano II (cf. LG 21)[10]. Hoje em dia, é mais que evidente a supremacia do poder jurisdicional na organização eclesial e a secundarização do poder da ordem. Esta fundamentação opera, subliminarmente, alterações de mentalidade na hierarquia e nos membros do Povo de Deus. Tais alterações favorecem novas medidas que rebaixam a Igreja católica ao nível de uma mera hierarquia organizacional.» (Cont.)

Joaquín Perea, teólogo

EXCERTOS DE:
«Del Vaticano II a la Iglesia del Papa Francisco», PPC.
«Otra Iglesia es posible – eclesiología práctica para cristianos laicos», Ediciones HOAC.





[1] Veja-se Joaquín Perea, José I. González Faus, Andrés Torres Queiruga y Javier Vitoria (eds.), «Clamor contra el gueto – textos sobre la crisis de la Iglesia», Madrid, Trotta, 2012, pp. 278 (inclui a colaboração de perto de 40 teólogos…). ISBN 978-84-9879-256-0 [NdT].
[2] Esta curta introdução refere-se a um vasto período histórico que Andrés Torres Queiruga contextualiza com brilhantismo em Concilium (RIT) N.364, Fevereiro 2016, pp. 28-29 (Editorial Verbo Divino). [NdT]
[4] Há, a este respeito, duas obras que devem ser adquiridas:
Daniel Moulinet, «El Vaticano II contado a los que no lo vivieron» e Gustave Martelet, «No olvidemos el Vaticano II». [NdT]
[6] «A SALA DE CIMA» - 17 OUTUBRO 2012, "O debate decisivo", JM Castillo [NdT]:
«A SALA DE CIMA» - 18 OUTUBRO 2012, "Quem tem o poder na Igreja?", JM Castillo [NdT]:
[7] Dez anos após o encerramento dos trabalhos conciliares, o Papa Paulo VI promulgou o documento Evangelii Nuntiandi (08-12-1975). Nele se reflectem ainda os ecos mais primaveris e mais fecundos vindos da sala conciliar; vejam-se, a título de exemplo, os pontos 8 e 9. Até à chegada do Papa Francisco, nunca mais a Igreja Oficial pós-conciliar foi tão contundente assim. Citemos apenas um fragmento: «Como evangelizador, Cristo anuncia em primeiro lugar um reino, o reino de Deus, de tal maneira importante que, em comparação com ele, tudo o mais passa a ser "o resto", que é "dado por acréscimo". (Cf. Mt 6,33) Só o reino, por conseguinte, é absoluto, e faz com que se torne relativo tudo o mais que não se identifica com ele[NdT] FONTE:
[8] Cf. José Mª González-Ruiz, «Modelos de Iglesia en el Nuevo Testamento», in VV.AA., “Por la senda de Medellin y Puebla”, Diakonia, CICA Manágua-Nicarágua, Marzo 1984, N. 29, p. 106-107; a propósito de GS N.40, "…a Igreja avança conjuntamente com toda a humanidade, experimenta a sorte terrena do mundo", J.M.G. Ruiz diz: «… o triunfo profético da Igreja como povo de Deus exigia dos cristãos o desmantelamento da "Igreja-cristandade" ou "sociedade-perfeita". Este último modelo pretende conferir à Igreja a autoridade de resposta a todas as perguntas humanas: religiosas, sociais, políticas, económicas e até científicas. Assim se explica a condenação de Galileu e a excomunhão daqueles que não se submeteram ao seu poder temporal. Logicamente que esta desmontagem não se pode fazer em pouco tempo. Entretanto, o Vaticano II não completara ainda as suas bodas de prata e já víamos como sobreviviam profundas resistências ao abandono do modelo-cristandade. Logicamente que esta resistência é maior ali onde a Igreja está mais perto de qualquer tipo de poder, incluindo o poder eclesiástico que, entretanto, não se convertera em puro serviço evangélico.» [NdT]
[9] Cf.: «Que modelo de comunidade?», por Marco Politi, in blog «A Sala de Cima» (31-10-2014):
«Enquanto o primeiro ano de pontificado de Francisco era assinalado por este debate [«As mulheres estão totalmente ausentes das funções directivas da Igreja católica»], a Igreja anglicana da Inglaterra estabelecia no sínodo de 20 de Novembro de 2013 o princípio do acesso das mulheres ao episcopado, praticamente por unanimidade: 378 votos a favor, 8 contra e 25 abstenções. Vinte e um anos antes abrira às mulheres o acesso ao sacerdócio.» [NdT]
[10] Veja-se o extenso comentário do redactor principal da Constituição: G. Philips, «La Iglesia y su mistério en el Concilio Vaticano II». Barcelona, Herder, 1968-1969, pp. 307-335.