teologia para leigos

15 de janeiro de 2015

TEOLOGIA E ECONOMIA 1/2 [J.M.SUNG]

Caritas in veritate -  a "forclusão" do capitalismo

«Bento XVI [Caritas in veritate] não tem um discurso sobre o capitalismo e as referências que lhe faz são meramente tangenciais; algumas revelam uma leitura sesgada do texto de João Paulo II que atrás citamos, quando acerca dele diz: "Na encíclica Centesimus Annus a moderna economia empresarial comporta aspectos positivos cuja base é a liberdade da pessoa expressa no campo económico e outros (n.32)." (…) Dizer isto é não ter assimilado a crítica que naquela encíclica se faz ao sistema capitalista: é colocar diafanamente umas tintas sobre a denúncia do capitalismo como sistema que pretende ser o modelo a adoptar por todo o lado após o "fracasso" do socialismo. A Encíclica dá a sensação de, constantemente, não estar ajustada à realidade que nos últimos tempos se vive. A sua publicação deveria coincidir com o aniversário da Populorum progressio, mas os acontecimentos do ano 2007 tornaram prudente a sua postergação enquanto não se tivesse uma medição mais exacta da profundidade dos mesmos. Essa medição parece ter sido feita com a mesma vara com que a fizeram os organismos internacionais e, por conseguinte, a encíclica desliza pela mesma pendente daqueles: miopia económica e presbiopia moral.» (…) Ou seja: Caritas in veritate padece de «uma visão neoagustiniana» baseada em um «naturalismo económico, [num] sobrenaturalismo político e [num] eclesiocentrismo» (Bernardo Pérez Andreo, "No podeis servir a dos amos", Herder 2013)

«Em muitas e diversas circunstâncias, a Igreja esqueceu o sentido último do seu ser no mundo: estar ao serviço dos homens construindo o Reino de Deus. Segundo o Concílio Vaticano II, "A Igreja é sacramento universal de salvação" (LG 48), mas, "como Cristo realizou a obra da redenção na pobreza e na perseguição de igual modo a Igreja está destinada a percorrer o mesmo caminho a fim de comunicar aos homens os frutos da salvação" (LG 8). "Desta maneira, demonstra que aquilo que a move não é a ambição terrena. Apenas deseja uma só: continuar, sob a guia do Espírito, a mesma obra de Cristo, aquele que veio ao mundo para dar testemunho da verdade, para salvar e não para julgar, para servir e não para ser servido" (GS 3). (Bernardo Pérez Andreo, "No podeis servir a dos amos", Herder 2013)

«Este serviço expressa-se de dois modos muito concretos: um, como serviço à verdade e, por conseguinte, como crítica a tudo quanto se oponha ao bem dos homens; o outro, como serviço aos oprimidos neste mundo cheio de injustiça com a qual muitos homens pretendem continuar a ocultar a verdade do amor de Deus.» (Bernardo Pérez Andreo, "No podéis servir a dos amos", Herder 2013)



UTOPIA SACRIFICIAL DA SOCIEDADE MODERNA






3.2 A Ciência e a legitimação do afã pelo lucro

A apresentação da maximização do lucro dentro do sistema de mercado, como o caminho para o progresso, trouxe consigo o primeiro grande desafio da nova forma de legitimação: “libertar”, o afã pelo lucro, dos entraves colocados pela ética tradicional. Segundo Weber, foi o ascetismo intramundano do protestantismo – em particular o calvinismo, o pietismo, o metodismo e as seitas batistas – que o libertou, rompendo os grilhões da ânsia de lucro, com o que não apenas o legalizou, como também o considerou como diretamente desejado por Deus. A luta dos puritanos contra as tentações da carne e contra a dependência dos bens materiais não era «uma campanha contra o enriquecimento, mas contra o uso irracional da riqueza».[1]

E o que vem a ser o uso irracional da riqueza? Analisando as sentenças de Benjamin Franklin, Weber diz que o summum bonum da ética capitalista - a obtenção de mais e mais dinheiro - combinada com o estrito afastamento de todo o gozo espontâneo da vida, é completamente destituída de qualquer carater eudemonista, isto é, de felicidade como princípio moral, ou mesmo hedonista. Após afirmar que ganhar dinheiro é pensado como uma finalidade em si, acima da felicidade ou utilidade, algo de totalmente transcendental e simplesmente irracional, ele diz que:

“O homem é dominado pela produção de dinheiro, pela aquisição encarada como finalidade última da vida. A aquisição económica deixa de estar subordinada ao homem como meio de satisfazer as suas necessidades materiais[2]. Esta inversão do que poderíamos chamar relação natural, de um ponto de vista ingénuo tão irracional, é evidentemente um princípio orientador do capitalismo, tão seguramente quanto ela é estranha a todos os povos fora da influência capitalista.”[3]

Nesta afirmação de Weber encontramos duas noções de racionalidade: a capitalista e a pré-moderna ou “ingénua”. O que é racional para uma não o é para a outra. Não há um critério objetivo que possa discernir entre as duas opções de racionalidade. Razão pela qual Weber diz que o summun bonum da ética capitalista é transcendental e irracional. Mas, só é irracional de um ponto de vista ingénuo, não do ponto de vista do uso racional do capital dentro da racionalidade capitalista. Nem mesmo a “relação natural”, isto é, a aquisição de bens materiais como meio de satisfação das necessidades humanas, serve como critério de discernimento entre estas duas racionalidades. Pois, segundo Weber, esta inversão de considerar a aquisição de bens materiais não já como meio, mas como um fim em si, só é irracional de um ponto de vista ingénuo, e não de um ponto de vista capitalista: muito pelo contrário, nisto consiste um princípio orientador do capitalismo, do seu uso racional da riqueza. Ou seja, o que parece ser natural não é tão natural assim.

A inversão da relação natural não é uma inversão ou uma irracionalidade, a não ser que a racionalidade capitalista seja racional. Mas, como é evidente, pelo menos para os “ingénuos”, que a finalidade do trabalho humano para a aquisição de bens materiais é o ser humano ou que a actividade económica deve estar subordinada ao ser humano – sujeito e fim da ação económica –, Weber encontra duas saídas para fundamentar a racionalidade capitalista: a) o ganhar dinheiro como uma finalidade em si - o summun bonun do capitalismo - é transcendental; b) não se pode discutir cientificamente as finalidades e os valores, eles dependem exclusivamente das opções e das perspectivas decorrentes das opções tomadas pelos agentes económicos.

Esta conceção de racionalidade é fruto de uma profunda mudança no conceito de razão no pensamento ocidental. Segundo Horkheimer, durante longo tempo predominou uma teoria objetiva da razão (entre os grandes sistemas filosóficos como o de Platão, Aristóteles, o escolaticismos e o idealismo alemão) que «afirmava a existência da razão não só como uma força da mente individual, mas também do mundo objetivo: nas relações entre os seres humanos e entre classes sociais, nas instituições sociais, e na natureza e suas manifestações.»[4] Para Horkheimer, este conceito de razão objetiva jamais excluiu a razão subjetiva, mas considerou-a como a expressão parcial e limitada de uma racionalidade universal. «Quando se concebeu a ideia da razão, o que se pretendia alcançar era mais que a simples regulação da relação entre meios e fins: pensava-se nela como um instrumento para compreender os fins, para determiná-los[5]

Habermas refere-se a isso dizendo que o pensamento metafísico pressupõe que a razão cognoscente se encontra no mundo estruturado racionalmente ou que ela mesma empresta à natureza, ou à história, uma estrutura racional, «seja ao modo de uma fundamentação transcendental, seja pelo caminho de uma penetração dialética do mundo».[6] E diz ainda que:

“Uma totalidade racional em si mesma, seja do mundo, seja da subjetividade formadora do mundo, garante, respetivamente aos seus membros e aos momentos particulares, a participação na razão. A racionalidade é pensada como material, como uma racionalidade que organiza os conteúdos do mundo, podendo ser lida a partir deles. A razão é razão do todo e das suas partes.”[7]

Na perspectiva subjectivista, dentro da qual Weber «aderiu de modo definitivo»[8], a razão refere-se exclusivamente à relação de um meio, objecto ou conceito com um determinado fim ou propósito. Não existe um propósito racional como tal, e discutir a superioridade de um objectivo sobre outros, em termos de razão, torna-se algo sem sentido.

Se no início do capitalismo o afã pelo lucro foi legitimado pelo puritanismo, com a crescente racionalização e secularização da sociedade moderna o afã pelo lucro foi legitimado por um novo conceito de razão: uma razão desvinculada dos valores morais tradicionais concebidos numa perspectiva metafísica. A legitimação dá-se pela exclusão da discussão sobre o objetivo de se ter o maior lucro possível. Como não se pode discutir cientificamente este objetivo, também não se pode condená-lo.

A anulação dos valores supremos e sublimes da vida pública é, segundo Weber, o destino do nosso tempo marcado pela racionalização e, sobretudo, pelo desencantamento do mundo. «Tais valores encontraram refúgio na transcendência da vida mística ou na fraternidade das relações diretas e recíprocas entre indivíduos isolados.»[9] E as pessoas que não conseguem suportar virilmente este destino da nossa época, devem, segundo Weber, voltar silenciosamente aos braços abertos e misericordiosos das velhas igrejas e realizar o «sacrifício do intelecto», o qual «constitui o traço decisivo e característico do crente praticante».[10] Roberto Campos, o famoso ex-ministro dos governos militares brasileiros e economista neoliberal, chamou a isto os «dois reinos» que não podem ser confundidos: o reino da economia – o «reino da produtividade e eficiência» – e o «reino da ética e da justiça».[11]

Esta separação entre a ciência e a ética divide o mundo em dois. «Dois mundos e duas verdades».[12] O domínio físico e social ficou desligado da ordem metafísica e transcendental. Está definitivamente superada a sociedade tradicional. A partir de agora, a teologia fala das realidades celestes e é aceite socialmente como «uma racionalização intelectual da inspiração religiosa»[13], restringida ao campo privado. Foi, assim, criada uma armadilha para a teologia e para a Igreja: com a divisão em dois mundos, a teologia e a Igreja podem reinar sem concorrentes sérios no «reino da ética e da justiça» ou no reino da vida mística, na esfera privada. Acontece que perdem relevância histórica no campo público.[14]

Com a pretensa neutralidade ética das ciências modernas e a divisão da realidade em «dois reinos», a teologia perdeu de vez o papel social relevante na esfera pública. Se na sociedade tradicional, o discurso teológico sobre Deus e sobre as «realidades celestes» era de certa forma entendido igualmente como um discurso sobre realidades «terrestres», na sociedade moderna, o discurso sobre Deus é compreendido como um discurso que se refere somente a uma realidade “mística”, a um “outro mundo”, sem vinculações ou implicações na realidade social. A realidade social tornou-se o campo exclusivo das ciências humanas e a teologia não pode nem tem mais sentido emitir juízos sobre estas realidades a partir de valores religiosos.

Joan Robinson, estudando os problemas filosóficos da ciência económica, também diz que a ciência económica surgiu tendo como uma das suas funções justificar esse afã pelo lucro:

ˮÉ precisamente a busca do lucro que destrói o prestígio do homem de negócios. Embora possa comprar todas as formas de respeito, a riqueza nunca as encontra de graça. A tarefa do economista era superar esses sentimentos e justificar os caminhos de Mammon para o homem. Ninguém gosta de ter uma má consciência. Cinismo puro é um tanto raro. (…) O trabalho do economista não é nos dizer o que fazer, mas mostrar como o que estamos fazendo está de acordo com princípios adequados”[15]

Por isso, ela diz que, no fundo, os economistas são substitutos dos teólogos.[16] Os economistas, na sociedade moderna, realizam o mesmo papel que os teólogos realizavam na sociedade tradicional: legitimar, moralmente, uma determinada acção e uma determinada organização social. A preocupação inconsciente por trás da teoria económica neoclássica era principalmente «elevar os lucros ao mesmo nível da respeitabilidade moral dos salários».[17] Para compreendermos melhor esta afirmação, precisamos ver as diferenças fundamentais entre a economia política clássica e a economia neoclássica.

O elemento teórico central que diferencia estes dois pólos «é o ponto de partida radicalmente distinto delas. A economia política enfoca a economia a partir do problema da reprodução dos factores de produção, enquanto a teoria neoclássica a enfoca desde o ponto de vista da alocação óptima dos recursos».[18]

O pensamento económico moderno começou, com os seus principais representantes Adam Smith, Malthus e Ricardo, como economia política. Eles elaboraram o seu enfoque a partir da reprodução dos factores de produção, o que os levou a uma teoria do salário baseada na necessária subsistência dos trabalhadores e, portanto, independente da escassez relativa da mão-de-obra no mercado de trabalho.

O pensamento de Marx compartilha este ponto de vista. Só que ele concentra o problema da reprodução dos factores na reprodução de um só factor: os produtores. A reprodução da vida humana aparece como a última instância de todas as decisões económicas e políticas; e a reprodução de outros factores de produção são vistas como uma consequência da reprodução material da vida humana. A partir desse ponto de vista, Marx transforma a economia política burguesa com a afirmação de que somente a transformação da sociedade burguesa em sociedade socialista pode assegurar esta reprodução.

Frente a esta alternativa radical […]

Jung Mo Sung
Prof. em pós-graduação nas Ciências da Religião da Universidade Metodista de São Paulo-Brasil

[pp. 55]





[1] M. Weber, «A Ética protestante e o espírito do capitalismo», op. cit., p. 122.
[2] Cf. O colecionismo − é um traço «natural» da vontade humana de posse; a caminhada espiritual corre paralelamente ao despojamento de bens e ao amadurecimento humano, libertação do colecionismo, pois então, da parentela e até mesmo do nome de família… O empresário (com ligações ao «caso BPN») que tinha uma enorme coleção de mais de cem Mercedes Benz (de coleção), e que pagava a um mecânico para que lhes fizesse a manutenção diária de que necessitassem, é bem o exemplo deste conceito de «aquisição». [NdE]
[3] Ibidem, p. 33. [o grifo é nosso]
[4] Max Horkheimer, «Eclipse da razão», op. cit., p. 12. Sobre esta questão vide também, Manfredo Araújo de Oliveira, «A filosofia na crise da modernidade», São Paulo, Loyola, 1989.
[5] Max Horkheimer, «Eclipse da razão», op. cit., p. 18.
[6] Jürgen Habermas, «Pensamento pós-metafísico», Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 1990, p. 44.
[7] Ibidem, p. 44.
[8] Max Horkheimer, «Eclipse da razão», op. cit., p. 16, nota 1.
[9] Max Weber, «Ciência e política: duas vocações», 4ª edç., São Paulo, Cultrix, 1984, p. 51.
[10] Ibidem, p. 50.
[11] Roberto Campos, «Além do cotidiano», op. cit., 2 edç., 1985, p. 65.
[12] Hilton Japiassu, «Nascimento e morte das ciências humanas», Rio de Janeiro, Francisco Alves, 1978, p. 30.
[13] Max Weber, «Ciência e política:…», op. cit., p. 50.
[14] Este fenómeno não é exclusivo do cristianismo. Bernardo Sorj, analisando o judaísmo na modernidade, diz que «traduzir o judaísmo rabínico à prática da vida moderna implicou a separação entre o domínio público e privado (para o qual era relegada a vida judaica) e na lealdade ao Estado nacional e suas instituições (…) Existencialmente, os tempos modernos significaram um conflito constante entre os valores tradicionais e os novos valores – os primeiros vistos como particulares e os segundos como universais –, entre a lealdade à colectividade étnica e a lealdade ao Estado nacional – ou humanidade.». Em: Sorj, B., Grin, M., (orgs.), «Judaísmo e modernidade», Rio de Janeiro, Imago, 1993, p.8.
[15] Joan Robinson, «Filosofia económica», op. cit., p. 22.
[16] Ibidem, p. 120.
[17] Ibidem, p. 51.
[18] Hinkelammert, Franz, «Democracia y totalitarismo», São José, DEI, 1987, p. 5.