teologia para leigos

21 de novembro de 2016

DEVOLVER JESUS AO POVO 4/5







O ENFRENTAMENTO EM JERUSALÉM



VIII - A PROPOSTA POLÍTICA



1 – A concepção do poder (Mc 9, 33-37; 10, 35-45)

Enquanto Jesus subia para Jerusalém com os seus discípulos…

«…Tiago e João, filhos de Zebedeu, aproximaram-se dele e disseram: «Mestre, queremos que nos faças o que te pedimos.» Disse-lhes: «Que quereis que vos faça?» Eles disseram: «Concede-nos que, na tua glória, nos sentemos um à tua direita e outro à tua esquerda.» Jesus respondeu: «Não sabeis o que pedis. Podeis beber o cálice que Eu bebo e receber o baptismo com que Eu sou baptizado?» Eles disseram: «Podemos, sim.» Jesus disse-lhes: «Bebereis o cálice que Eu bebo e sereis baptizados com o baptismo com que Eu sou baptizado; mas o sentar-se à minha direita ou à minha esquerda não pertence a mim concedê-lo: é daqueles para quem está reservado.» Os outros dez, tendo ouvido isto, começaram a indignar-se contra Tiago e João. Jesus chamou-os e disse-lhes: «Sabeis como aqueles que são considerados governantes das nações [árkein ton éthnesin] fazem sentir a sua autoridade sobre elas [katakyrieúousin], e como os grandes se assenhoreiam delas e exercem o seu poder [katexousiádsousin] sobre elas. Não deve ser assim entre vós. Quem quiser ser grande entre vós, faça-se servo [diákonos] de entre vós e quem quiser ser o primeiro entre vós, faça-se o escravo [doúlos] de todos. Pois também o Filho do Homem não veio para ser servido [diakonethésai], mas para servir [diakonésai] e dar a sua vida em resgate por todos.» (Mc 10, 35-45)

Estamos perante a última fase do projecto de Jesus: a subida a Jerusalém a fim de enfrentar os inimigos do Reino, abrigados no lugar onde se encontra o centro do poder. É por isso que o tema do enfrentamento do poder adquire profundidade e urgência. O ambiente, à volta de Jesus, ferve. Erguem-se ansiedades, expectativas, medos, entusiasmos. Numa palavra, um emaranhado de sentimentos contraditórios típico dos momentos em que se sente que algo de grandioso está para acontecer.

Tiago e João pertencem ao círculo restrito que Jesus constantemente consulta. Eles estiveram presentes aquando da ressurreição da filha de Jairo e na Transfiguração. Eles sabem que está prestes o momento da decisão definitiva: o Reino de Deus está à distância dum gesto. Importa, pois, apressarem-se, ou seja, adiantarem-se (em relação aos outros discípulos) a fim de ocupar os lugares de destaque na nova sociedade que está para ser instaurada.

Adiantam-se aos outros, tomam a iniciativa e solicitam a Jesus os primeiros lugares na nova sociedade: «Concede-nos que, na tua glória, nos sentemos um à tua direita e outro à tua esquerda.». "Na tua glória" (en te doxa). A glória (doxa) é o brilho especial que todo o poder sempre irradia, é a magnificência, o esplendor, a majestade.

Na Bíblia, tal como em diversos mitos e religiões, há determinados atributos ou qualidades que se personificam. Assim, a justiça, a prudência, a riqueza passam a ser deuses na mitologia grega. De igual forma, na Bíblia a glória, como atributo essencial do poder, e a magnificência passam a ser a personificação do próprio Deus, sendo este interpretado como o todo-poderoso, o rei, o senhor do universo.

O exemplo clássico, encontramo-lo no livro de Ezequiel. A maneira como a glória aí se apresenta não podia ser mais gráfica e vibrante:

«Olhei e vi uma figura que se assemelhava a um homem que, dos rins para baixo, tinha a aparência de fogo e dos rins para cima, era como um clarão vermelho. Estendeu-me uma espécie de mão e agarrou-me pelos cabelos.Em seguida, nesta visão divina, o espírito arrebatou-me entre o céu e a terra e conduziu-me a Jerusalém, até à entrada da porta interior que dá para norte, onde era o lugar do ídolo rival, que provoca ciúmes. E eis que lá se encontrava a glória do Deus de Israel [Yahvé], semelhante à da visão que tivera no vale.» (Ez 8, 2-4)

A Glória de Yahvé é o próprio Yahvé. Indica o poder, a magnificência, o brilho, o resplendor. Yahvé dá conhecimento a Ezequiel dos pecados que se cometem no seu santuário, identifica os pecadores e enumera os castigos destinados a estes últimos. Manda marcar com uma cruz todos aqueles que não pecaram e ordena a execução da sentença de morte aos outros, os pecadores: «E aos outros ouvi-o dizer: "Ide pela cidade atrás dele [do homem vestido de branco que tinha à cintura os apetrechos de escriba] e feri os seus habitantes. Que o vosso olhar não poupe ninguém nem tenha piedade. Velhos, jovens, virgens, meninos e mulheres, matai-os a todos e exterminai toda a gente; mas não toqueis naqueles que foram marcados na fronte. Começai pelo meu santuário." E começaram, então, pelos velhos que estavam diante do templo. Depois disse-lhes: "Profanai o templo, enchei de mortos o vestíbulo e saí." Depois, eles saíram e feriram os que estavam na cidade.» (Ez 9, 5-7)

Tiago e João julgam que, na nova sociedade, Jesus ocupará o lugar de um rei assim, todo-poderoso. Tal mentalidade corresponde à clássica concepção da "tomada e exercício do poder". Estão todos às portas de Jerusalém, lugar do poder. Uma vez aí chegados é o momento de tomar o poder e de ocupar o lugar dos que até então aí o exerceram. Estes discípulos ainda não tinham abandonado a típica concepção do poder monárquico. O poder está no alto, em cima: há que atingir o topo. Uma vez aí chegados e bem-sucedidos, há que repartir o poder entre os que chegarem ao topo, entre os que se apoderaram dele.

O pedido que fazem a Jesus é que um se sente «à sua direita» e o outro «à sua esquerda». A típica postura dum rei é estar sentado num trono. A partir desta posição, administra a justiça, condena à morte, concede a graça e o perdão, declara a guerra ou decreta a paz. Os que com ele partilham o poder sentam-se ao seu lado. À direita, o segundo na linha do poder; e à esquerda, o terceiro. No «Credo», os cristãos, referindo-se a Jesus Cristo, rezam: «Está sentado à direita de Deus-Pai todo-poderoso. E daí virá para julgar os vivos e os mortos.»

Isto quer dizer que Tiago e João pedem para ser os primeiros por quem se reparta o poder mal Jerusalém seja tomada, ou, por outras palavras, mal se realize a revolução. Na terminologia política das nossas repúblicas, «sentar-se à direita» equivale a ser vice-presidente ou primeiro-ministro ou ministro da economia e finanças, e «sentar-se à sua esquerda» seria como que, digamos assim, ministro do interior ou da administração interna.

Aquilo para que importa chamar a atenção, na intervenção de Tiago e João, é a concepção do poder que ela implica: essa era a concepção de poder dominante na nova sociedade – no Reino de Deus – da qual eles eram militantes. Para Tiago e João (e, eventualmente, para todos os mais chegados a Jesus, para os da tal «mesa coordenadora») "poder" e "poder monárquico" correspondiam-se: esse era o único modelo imaginável, à época. É claro que poder é poder de dominar e, Ꞌem vez dos actuais dominadoresꞋ – diriam Tiago e João – Ꞌestaremos nós a dominar, nós que não somos corruptos nem pactuamos com os profanadoresꞋ. Acontece que – mas isso já era pedir demais à mentalidade dos discípulos – as relações entre dominadores e dominados em nada mudaria.

Os que possuem essa concepção de poder não são apenas Tiago e João: dela participam também os demais discípulos. De facto, quando estes se apercebem da iniciativa dos filhos de Zebedeu, indignam-se e, entre eles, desencadeia-se uma áspera discussão por aqueles dois se terem adiantado em segredo.

A resposta que, de chofre, Jesus dá aos filhos de Zebedeu sempre foi interpretada, pela Igreja, como o anúncio da Sua morte de cruz. De facto, ao lê-la fica-se com a sensação de que a resposta mescla o histórico com o hermenêutico, mistura aquilo que facticamente sucedeu com a interpretação que a comunidade de Marcos fez. De facto, não é de todo descabido pensar que, por essa altura, Jesus, como hipótese, começasse a vislumbrar a possibilidade de vir a ocorrer a sua morte, tendo, por isso, incluído na sua resposta "o cálice a beber" como símbolo dessa mesma morte.

Porém, o símbolo do cálice a beber, mesmo que não se referisse à morte de Jesus, podia relacionar-se com as lutas que se avizinhavam, e, com ela, com todos os sofrimentos consequentes. Isto, sim, tem toda a probabilidade histórica. Porém, a comunidade de Marcos começou a ler o símbolo do cálice a beber à luz da morte de Jesus na cruz. A parte final da resposta de Jesus – o sentar-se à minha direita ou à minha esquerda não pertence a mim concedê-lo – pertence à comunidade de Marcos; já é teologia.

A reacção dos outros discípulos e a discussão entre eles tem todo o tipo de serem históricas. Sem dúvida que correspondem a uma série de discussões que existiram no seio do grupo e que se agudizaram nos momentos em que o triunfo ameaçava acontecer. Esta reacção é aproveitada por Jesus para esclarecer o tipo de poder que ele concebe.

Quando fala em público sobre o poder, Jesus não fala de uma realidade sagrada apartada da realidade social e política: não está a falar da Igreja. Jesus refere-se ao «Reino de Deus», ou seja, à sociedade aquando da realização do Reino de Deus. Jesus fala do poder, do poder político que se realiza quer ao nível do Estado, quer nos diversos âmbitos da sociedade civil: empresas, sinagogas e na família patriarcal.

Jesus começa por caracterizar o tipo de poder dominante para, de seguida, corrigi-lo e explanar qual deve ser o conceito e a prática do poder na nova sociedade. «Sabeis como aqueles que são considerados governantes das nações [árkein ton éthnesin] fazem sentir a sua autoridade sobre elas [katakyrieúousin], e como os grandes exercem o seu poder [katecsousiádsousin] sobre elas.» O poder é exercido como dominação: o "outro" não é reconhecido como "outro", mas como «dominado»[1].

«Dominar», em grego, diz-se árkein. A tradução literal do texto grego, em vez de ser «ser governantes das nações», deveria ser «dominadores das nações». O substantivo arké tanto significa princípio, como fundamento, causa primeira, autoridade, domínio, império, reino. O poder é como um "princípio", o fundamento de uma sociedade. Desse fundamento, tudo depende. É por isso que, segundo esta concepção, não há reconhecimento do outro como um outro, bem pelo contrário: o outro é dominado. O dominador faz dele um objecto.

Jesus diz: «se assenhoreiam», se fazem "senhores". O dominador é o célebre kyrios, o senhor da forca e do cutelo, aquele que poderia decretar a morte baixando o polegar e conceder a vida, elevando-o. Nesta concepção só há espaço para senhores e servos, amos e escravos. Neste momento, na memória profética de Jesus avivam-se as experiências históricas do povo hebreu: a perda da liberdade da primeira Confederação, o domínio da monarquia davídico-salomónica, os crimes de David e de Salomão a fim de se apoderarem do poder e o esmagamento das comunidades camponesas.

Após a morte de Salomão, o reino divide-se aquando da resposta negativa de Roboão (em Siquém) perante o pedido para que baixasse os impostos que os esmagavam. Foi, então, que os representantes das tribos do norte (Israel) se retiraram aos gritos: «Todo o Israel viu então que o rei não queria ouvi-los, e replicaram assim ao rei: "Que temos nós a ver com David? Nós não temos herança com o filho de Jessé! Vai para as tuas tendas, Israel! A partir de agora, cuida da tua casa, David!" E Israel foi para as suas tendas.» (1Rs 12, 16) Mas, mesmo assim, as tribos do norte não conseguiram refundar a Confederação. É então que surgem os grandes profetas, sempre prontos a enfrentar o poder de dominação monárquico-sacerdotal.

Sem dúvida que, nesses momentos, Jesus recordaria a luta intransigente de Elias contra a dominação do casal Acab-Jezabel; as diatribes furibundas de Amós contra o rei e os poderosos da corte; as de Miqueias contra a capital de Jerusalém, sede da monarquia e do sacerdócio, que oprimia e tosquiava as comunidades camponesas; o discurso de Jeremias contra o Templo. Lembrar-se-ia do regresso dos sacerdotes do Exílio (na Babilónia) para implantar, sob a protecção da monarquia persa, um projecto de sociedade sacerdotal dividida em puros e impuros. Recordar-se-ia da resistência do povo que ficara na terra após a destruição de Jerusalém pelos babilónios e que tinham lançado as mãos a reconstruir as suas vidas. Lá estavam os livros de Ruth, Judith, Jonas e Ester a mostrar essa resistência e essa vontade de viver contra a opressão dos poderes de dominação. E reflectia, seguramente, acerca do modo como essa história acabaria por desembocar na situação em que o seu povo agora vivia sob o duplo poder de dominação imperial e sacerdotal. A fortaleza Antónia, que alojava a legião romana, e o Templo, onde residia o corpo sacerdotal, eram os símbolos desse poder de dominação, que se assenhoreara do povo.

Diante desta concepção e esta prática de poder, a proposta de Jesus soa assim:

«Não deve ser assim entre vós. Quem quiser ser grande entre vós, faça-se servo [diákonos] de entre vós e quem quiser ser o primeiro [prótos] entre vós, faça-se o escravo [doúlos] de todos. Pois também o Filho do Homem não veio para ser servido [diakonethésai], mas para servir [diakonésai] e dar a sua vida em resgate por todos.» (Mc 10, 43-45)

Nesta resposta encontra-se sintetizado o núcleo da concepção do poder de Jesus e da comunidade de Marcos. É uma proposta inovadora e revolucionária, que, ao contrário da configuração dos impérios, das monarquias e repúblicas, se encontrará nas comunidades cristãs como um gérmen corrosivo, que não dará descanso aos dominadores.


Rubén Dri
Professor e Investigador de Ciências Sociais da Universidade de Buenos Aires.


[pp. 66]






[1] A História – palco por excelência da barbárie − sempre foi a História escrita pelos dominadores. Escrita depois de «feita» dominação, esmagamento, anulação da identidade do dominado. A História do Mundo é a história da tirania, à qual se opõem os mártires-resistentes (guerrilheiros combatentes) e os que «oferecem toda a sua vida junto das vítimas» (missionárias e missionários). Os pequenos oásis da História que salva são os crentes no "Deus da Vida" que − também Ele − veio para habitar no meio das vítimas (Jo 1, 13-14 – neste «veio para montar a Sua tenda no meio das vítimas da escuridão» está todo o segredo do futuro da Humanidade; cf. Simone Weil, «O Enraizamento», Relógio d’Água). «A Europa até 1492 não existia senão como periferia do mundo muçulmano. Quando os espanhóis chegam às Índias Ocidentais e os portugueses à África e às Índias Orientais, pela primeira vez a Europa tem a sua periferia. A Europa é, agora, centro. (…) A Europa provinciana e renascentista, mediterrânea, transforma-se na Europa "centro" do mundo, na Europa "moderna". Dar uma definição "europeia" da Modernidade é não entender que a Modernidade da Europa torna as outras culturas a sua "periferia". (…) A América não é descoberta como algo que resiste distinta, como o Outro, mas como a matéria onde é projectado "o si-mesmo": encobrimento… A Europa tornou as outras culturas, mundos, pessoas, num objecto lançado diante dos seus olhos. O "coberto" foi "des-coberto": europeizado, mas imediatamente "en-coberto" como Outro.» (Enrique Dussel, «1492 – O encobrimento do Outro – a origem do mito da modernidade», Conferências de Frankfurt, tradução de Jaime A. Clasen, VOZES 1993)


2 de outubro de 2016

DEVOLVER JESUS AO POVO 3/5





VI. O MOVIMENTO DE JESUS


1 – A caracterização do movimento

Faz parte da nossa cultura cristã interpretar a prática e o projecto de Jesus como acções viradas essencialmente para a fundação da Igreja. Refiro-me à prática e ao projecto, mas, na leitura que as igrejas fazem, fala-se frequentemente de "ministério" de Jesus, "pregação" de Jesus, como se Jesus fosse à partida o "sacerdote" da Igreja Católica ou o "pastor" das Igrejas protestantes.

Hoje em dia, não existe nenhuma exegese séria que dê suporte a tal ponto de vista. No horizonte histórico-cultural do povo hebreu em que Jesus desenvolveu toda a sua actividade, o tema «Igreja», tal como é concebida na cultura católica, na protestante, na ortodoxa ou na arménia, era absolutamente impensável. Tal enfoque nasce no mundo helenista, após a morte de Jesus.

A imensa maioria dos inúmeros estudos que se realizaram sobre Jesus, a sua actividade, a sua mensagem, provêm de teólogos que têm por trás deles uma instituição, uma igreja. A epistemologia deles está enquadrada pelo contexto dessa instituição. Isso faz com que os pressupostos prévios estreitem as possibilidades que as fontes que consultam lhes abrem.

A abertura dos estudos teológicos às ferramentas hermenêuticas e críticas provenientes de distintas disciplinas sociais é recente e choca necessariamente com dogmas estabelecidos há muitos séculos. Como poderá, por exemplo, um teólogo católico que dirige uma cátedra de teologia numa universidade católica aceitar que Jesus não tenha fundado nenhuma igreja? Poderá, ele, admitir que a célebre afirmação que Mateus coloca nos lábios de Jesus, sobre o poder de atar e desatar, não corresponde ao Jesus histórico?

Quanto a isso, os teólogos provenientes da tradição protestante gozam de maior liberdade, mas até esses possuem os mesmos constrangimentos provenientes, quer das igrejas a que pertencem, quer do quadro epistemológico da própria teologia que, em geral, não inclui ou não parte de uma análise histórica, económica, política e social prévia.[1]

Isso não quer dizer que possamos fazer exegese e hermenêutica desprovidas de qualquer resquício de preconceito. Impossível: todos o temos. Quanto a isso, o pior que nos pode acontecer é pensar que estamos livres deles e, dessa maneira, sermos capazes de um conhecimento objectivo, porque, então, não só não nos libertamos de todo o preconceito como perdemos a oportunidade de manter sobre eles a necessária vigilância epistemológica.

Do meu ponto de vista, é esta a falha fundamental dos trabalhos de Gonzalo Puente Ojea, no que diz respeito a esta questão. Ojea pretende realizar a hermenêutica com «uma postura de plena independência intelectual» (FIP, p. XVII), e reflectir «sem preconceitos» (idem, p. 26), mas, ao mesmo tempo, vê em todos os outros autores neotestamentário má-fé, intenções enganosas, adulterações e todo o tipo de maldades.

Depois dos brilhantes e profundos estudos weberianos sobre as estreitas relações entre o religioso e a sua expressão conceptual, entre o teológico e o económico-social, não é possível fazer teologia sem ter em conta o contexto sociopolítico. O teológico tem que ver com o simbólico, com o significado. A teologia não descobre factos novos, mas significados novos.

Lendo os evangelhos sinópticos, e em particular o de Marcos, nunca tropeçamos numa igreja. Apenas nos encontramos com Jesus que anda sempre a caminho, que passa a vida daqui para acolá, que faz curas numa casa, numa sinagoga ou no campo, que fala ao povo no campo ou na margem dum lago. Atravessa o lago em todas as direcções e até arrisca ir à Sirofenícia.[2]

No entanto, para lá desta actividade contínua e incansável, Jesus organiza algo e não reduz a sua acção apenas a comover consciências sem cuidar o mínimo do futuro desse impacto espiritual. A resposta de Jesus está na construção dum «movimento». Jesus não funda uma Igreja, mas um movimento. Devemos, então e antes de mais nada, perceber em que consiste um movimento.

O primeiro problema que nos surge é que, por princípio ou em essência, não podemos definir um movimento. E não se consegue, porque definir alguma coisa é delimitá-lo, e um movimento que o seja a sério arrasa com todo o tipo de limites, ultrapassa todo o tipo de institucionalização. É semelhante a um rio que salta fora das margens, que rompe todos os diques e taludes.

A lógica do movimento é heraclítica.[3] É como um rio no qual é impossível banhar-se duas vezes na mesma água, porque flui constantemente. O movimento é como a seiva de uma árvore, como um «impulso vital» ao qual se refere Henri Bergson. A seiva é incompatível com estruturas. A árvore bem tenta aprisioná-la através do tronco, dos ramos e das folhas. Inutilmente, pois a seiva segue sempre o seu caminho: quer sempre mais e, por isso, a árvore vê-se na obrigação de fazer brotar novos ramos, novas folhas.

O movimento é o impulso vital dum povo. Neste sentido, pode-se-lhe aplicar a categoria de «carismático», formulada por Max Weber. Para Rafael Aguirre o movimento é «um grupo carismático que surge ao lado das instituições estabelecidas, frequentemente em contraposição a elas, que defende comportamentos não habituais, sobretudo no campo económico, e que se encontra polarizado por objectivos imediatos» (Mjic, p. 34). Isto não é uma tentativa de definição de "movimento" – porque, como ele o dizia, é coisa impossível – mas uma tentativa de aproximação. É incorrecto querer colocar um «grupo» como o sujeito-cabeça do movimento, porque isso faz com que se valorize a parcialidade. O impulso vital e a força que configura o núcleo do movimento são constituídos pela conjunção de diversos sectores sociais cujos contornos são indefinidos.

Não é por acaso que, nas sociedades não capitalistas nas quais propriamente não existem classes sociais, as respostas sociais que surgem sejam de tipo ꞋmovimentistaꞋ. O mesmo acontece, hoje e dia, nos países terceiro-mundistas. Os movimentos da época moderna surgem nestes países do terceiro-mundo e não naqueles em que o capitalismo atingiu um certo grau de desenvolvimento.

Os movimentos são constituídos por vastos sectores sociais populares, aquilo que na nossa prática política sempre denominamos por "campo popular". Falamos mais de «sectores populares» que de classes sociais, porque, nas sociedades nas quais se desenvolvem os movimentos populares, os grupos sociais não existem com os contornos específicos que são próprios das classes sociais.

Assim, na nossa sociedade, é muito difícil atribuir essa categoria de «movimento» a uma classe social propriamente dita (p. ex., aos que trabalham por conta própria, aos tendeiros, aos que fazem trabalho temporário, aos desempregados, etc.), que sempre constituiu uma percentagem significativa da população, e que a partir da imposição do neoliberalismo conservador passou a ser a imensa maioria. Não se pretende negar a existência de classes sociais, mas deixar claro que elas se encontram socialmente mal desenhadas e com contornos confusos.

Os sectores que estão incluídos num movimento vão desde a classe operária até aos desempregados, aos bairros de lata, passando por mesclados e por vastos sectores intermédios até aos pequenos e médios empresários. Se existe algo ambíguo e sumamente complexo é aquilo que se designa por «classe média».

O «movimento» surge à margem das instituições estabelecidas. Mais: é alérgico a todo o tipo de institucionalização, porque isso implicaria a imposição de limites e freios ao impulso vital, ou seja, à essência do movimento. Contudo, o movimento deve institucionalizar-se, caso não queira diluir-se e desaparecer como uma nuvem de vapor ou ser manipulado a bel-prazer por alguém.

Assim se produz uma contradição intrínseca no movimento: recusa todo o tipo de institucionalização ao mesmo tempo que a exige sob pena de desaparecer. Se se procura institucionalizar o movimento, ele desaparecerá, congelando-se. A solução será: a instituição e as instituições em que o movimento se exprime não o devem abarcar totalmente, mas servi-lo dentro de objectivos determinados. As instituições são instrumentos que se oferecem ao movimento a fim de que ele realize as missões que lhe são exigidas.

Não serve qualquer tipo de instituição, mas apenas aquela ou aquelas que respondam aos objectivos que deram origem ao movimento. Em primeiro lugar, muitos movimentos acabam por morrer traídos pelas instituições ou pela instituição que o deveria encarnar. É o caso do Partido Justicialista, sobretudo a partir da década de 90, mas também antes, quando o seu surgimento significou a morte do movimento peronista, e o do Partido Radical aquando da época alvearista, na década de 30 (Marcelo Torcuato de Alvear, 1868-1942), o que significou a morte do movimento yrigoyenista (Hipólito Yrigoyen, 1852-1933).

Em segundo lugar, para construir um movimento, os diversos sectores sociais unem-se à volta de grandes eixos que exprimam os seus problemas fundamentais e os problemas de toda a nação. Assim, quando se formou o peronismo da década de 40, alguns desses eixos foi a criação de organizações laborais (grémios/sindicatos), de obras sociais, a questão da industrialização, a nacionalização de sectores fundamentais para a economia, o voto das mulheres, etc.

Em terceiro lugar, os movimentos surgem a partir de baixo segundo um processo de gestação lenta, à volta das necessidades comuns dos sectores populares, que se exprimem nos grandes eixos que acabo de citar. O peronismo surge, à luz do dia, a 17 de Outubro de 1945. De um certo ponto de vista, pode dizer-se que não foi preparado por ninguém. O «17 de Outubro» foi uma reacção espontânea de sectores populares diante da agressão das classes dominantes. Segundo um outro ângulo de visão, deve dizer-se que teve um longo processo de preparação. Desde a crise do movimento yrigoyenista, que foi ultrapassado, que se vinha gerando o peronismo nas entranhas do povo.

É assim que acontece com todas as revoluções: com o surgimento de movimentos sociais e políticos que se constituem em protagonistas de grandes mudanças. Isto está conforme com o que dizia Hegel, «o espírito que se vai constituindo amadurece lenta e silenciosamente rumo a uma nova configuração; ligado ao mundo anterior, o espírito vai-se soltando dele partícula a partícula, sendo os estremecimentos desse mundo novo apenas anunciado por meio de sintomas isolados» até que surge «a aurora que, subitamente como um raio ilumina totalmente a imagem do mundo novo» (FE, p. 12).

A vitalidade do movimento exige que a instituição ou as instituições não o fagocitem. A instituição ou as instituições são instrumentos do movimento ou da vida. Existirá sempre o perigo que o instrumento – a instituição – suplante o movimento. Este, na medida em que mantenha a sua vitalidade, ultrapassará o instrumento por todos os lados.

Neste sentido, as assembleias que surgiram a partir da aurora que iluminou o rosto nas jornadas de 19-20 de Dezembro de 2001 constituíram um movimento formado por uma multidão de movimentos. Todos aqueles que não sejam capazes de formar uma organização no sentido amplo diluem-se. Se se mantiverem apenas como rizomas, desaparecerão.


1.1.     O movimento de Jesus é um movimento popular profético

Na verdade, todo movimento profético é popular. Nunca é demais dizê-lo por causa das interpretações «religiosas» daquilo que é profético, as quais costumam desligá-lo do seu profundo enraizamento popular. Para além disso, a partir de tudo aquilo que estamos a analisar neste trabalho, referirmo-nos à prática e ao projecto de Jesus e prescindir do povo – o óklos – é impossível.

Trata-se de um movimento profético no sentido dos movimentos proféticos aos quais pertenceram os grandes e radicais profetas de Israel. Com efeito, e tal como já vimos, o povo reconhece-o como tal (Mc 8, 27-29). Os sectores populares, ao falar de Jesus, referiam-se aos grandes profetas da sua história. Para eles era evidente que Jesus era um representante dessa estirpe de profetas populares que marcaram a sua história.

Jesus fora discípulo de João Baptista, fez parte do seu movimento, do qual se afasta por achar que o movimento deve ter características diferentes daquelas que o Baptista havia traçado. Mas é por de mais evidente que, apesar das contradições entre os dois movimentos, eles têm uma característica comum: o serem proféticos. A prova de que é assim é que parte do movimento do Baptista passa-se para o grupo dos primeiros cristãos pós-pascais.[4]

Quando Jesus vai à sua aldeia – Nazaré – para aí anunciar também a sua mensagem do Reino, os seus camponeses, que o conheciam como um deles, com a mesma formação deles, não podiam aceitar que ele agora pretendesse anunciar-lhes a salvação. E rechaçaram-no. Então, Jesus exclama: «Um profeta só é desprezado na sua pátria, entre os seus parentes e em sua casa.» (Mc 6, 4) Ou seja, Jesus reconhece-se como um profeta.

No período intermédio entre a formação do movimento na Galileia e o enfrentamento dos poderes estabelecidos, Marcos intercala o texto teológico apocalíptico conhecido como «Transfiguração». Nesse texto apresenta-se Jesus dialogando com Moisés e Elias. Estes dois, segundo a opinião popular, são as figuras máximas do profetismo. Moisés[5] é o profeta que guiou o povo[6] aquando do seu Êxodo do Egipto e Elias é o profeta que enfrenta, sem concessões, o casal real Acab e Jezabel (1Rs 18, 13; ler todos os 3 capítulos deste livro: cap. 17, cap. 18 e cap. 19).

A atitude de Jesus diante dos sacerdotes e do Templo – o símbolo máximo do poder sacerdotal – é a mesma atitude dos profetas. De facto, o conflito entre o sacerdócio e o profetismo popular atravessa todos os séculos da monarquia hebraica, sobretudo desde o século VIII ao século IV, altura em que começa a sobressair a literatura apocalíptica.

Amós, o grande profeta das denúncias sociais mais radicais, enfrenta o sacerdote de Bethel, Amacias, funcionário da realeza do Reino do Norte. Amós é convidado pelo sacerdote a abandonar aquele território: «Sai daqui, vidente, foge para a terra de Judá e come lá o teu pão, profetizando. Mas não continues a profetizar em Betel, porque aqui é o santuário do rei e o templo do reino.» (Am 7, 12-13) O profeta indigna-se e formula ameaças terríveis contra o sacerdote (Am 7, 17).

O sacerdote e o poder, o sacerdote e o rei constituíam dois polos contraditórios do poder, contudo, sempre negociando entre si, sempre estabelecendo pactos. Eram uma associação de interesses mútuos, facto que se repetia em todas as monarquias e impérios: no acádico, no babilónio, no assírio, no egípcio. Desde que se operou a unificação do poder régio-sacerdotal numa única pessoa, a anterior e clássica negociação entre rei e sacerdote passa a ser substituída pela maneira como se combina o poder real com o poder sacerdotal.

O conflito entre Amós e Amacias repete-se com Jeremias, um século mais tarde, no Reino do Sul, em Judá. Diante dos poderes político e religioso, que haviam convencido o povo a depositar uma confiança cega no Templo pois aí estava Deus para o defender de todos os inimigos, o profeta Jeremias tenta convencer o povo a não confiar no Templo enquanto aí se cometerem crimes (o Templo havia-se convertido num covil de ladrões: v. 11; Jer 7, 4-15; Marcos 11, 17 par.). Ressoa, então, a recriminação que Marcos coloca na boca de Jesus, quando este enfrenta o Templo de Jerusalém: "Vocês pensam que a minha casa é um refúgio de assassinos?" (Jer 7, 11) A Bíblia de Jerusalém em vez de «assassinos» traduz por «ladrões», «bandoleiros», para ficar mais perto da expressão de Jesus, o qual diz "covil de ladrões" (spélaion lestón) (Mc 11, 17).

Desta maneira, Jeremias enfrenta os poderes real e sacerdotal. Tal como aconteceu a Amós, é precisamente o sacerdote quem enfrenta Jeremias: «O sacerdote Pachiur, filho de Émer, superintendente do templo do Senhor, ouviu o profeta Jeremias pronunciar este oráculo. Pachiur mandou espancar o profeta e pô-lo no cepo da prisão, que estava na porta superior de Benjamim, junto do templo do Yahvé.» (Jer 20, 1-2)

Contudo, o profeta Miqueias é quem será o mais radical de todos os profetas, em matéria de enfrentamento do poder real e sacerdotal: «Por isso, por vossa causa, Sião será lavrada como um campo, Jerusalém será reduzida a um monte de pedras, e o monte do templo será um outeiro na floresta.» (Mq 3, 12)

É a esta corrente profética – que enfrenta os poderes real e sacerdotal – que Jesus pertence, cujo acto supremo, nesta luta contra estes poderes, será a irrupção no Templo de Jerusalém, o qual, nas palavras de Jesus, é como uma figueira que não dá figos e, por isso, deve ser cortada e lançada à fogueira. (…)

Rubén Dri
Professor e Investigador de Ciências Sociais da Universidade de Buenos Aires.


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[1] Obviamente que existem excepções, e muitas delas notáveis, tais como John Dominic Crossan, Gerd Theissen, Rafael Aguirre, Florencio Mezzacasa e Ched Myers Binding the Strong Man: A Political Reading of Mark's Story of Jesus» – Deluxe Edition), para falar apenas de alguns trabalhos que me guiaram inúmeras vezes e cujas posições às vezes ponho em causa.

[2] Não concordo em nada com Puente Ojea que defende que «o Evangelho marquiano já é um evangelho eclesiástico, que apenas precisaria de uns quantos complementos por parte de Mateus e de Lucas. É um relato dogmático que, ainda que transido de grande emoção escatológica, tem os olhos postos no passado» (EM, p. 13). Ainda que nas Cartas Pastorais, dos finais do século I ou princípios do século II, já exista nelas uma certa inclinação para a ortodoxia, os dogmas são inaugurados no Concílio de Niceia no ano 325. Falar de dogmas ante-parto é um anacronismo: é o mesmo que pressupor a existência de uma Igreja, no sentido institucional, na comunidade de Marcos.
[3] Heráclito [500 aC] de Éfeso, o pai da dialéctica. [NdE]
[4] Acerca do tema da incorporação de membros do movimento Baptista na "comunidade do discípulo amado", cfr. Raymond Brown, «La comunidad del discípulo amado».
[5] A figura de Moisés é central na história do povo hebreu. Para a história yahvista, ele é um monarca. Para a história sacerdotal ele é apresentado subordinado ao sacerdote Aarão. E para a história elohista, tal como para a deuteronomista, é o maior dos profetas. Esta última é a concepção popular da figura de Moisés.
[6] Do Egipto não saiu nenhum "povo", apenas um grupo heterogéneo, um movimento. Na imaginação popular calou fundo, quanto à origem do povo, a gesta de libertação protagonizada por este grupo, que foi interpretado como o povo das Doze tribos. De facto, são os relatos yahvista e sacerdotal os que fazem esta interpretação, ao passo que a narrativa elohista mantém-se mais próxima dos aspectos históricos, na medida em que fala apenas de um grupo heterogéneo.


26 de setembro de 2016

DEVOLVER JESUS AO POVO 2/5




(cont.)

«Na continuação da Parábola do Semeador vem a célebre parábola do grão de mostarda:

«Dizia também: "Com que havemos de comparar o Reino de Deus? Ou com qual parábola o representaremos? É como um grão de mostarda que, ao ser deitado à terra, é a mais pequena de todas as sementes que existem; mas, uma vez semeado, cresce, transforma-se na maior de todas as plantas do horto e estende tanto os ramos, que as aves do céu se podem abrigar à sua sombra".» (Mc 4, 30-32)

O texto faz questão de sublinhar que se trata da «mais pequena das sementes» que se transforma na «maior das hortaliças». É um tema com longa tradição na história do povo hebreu: fora simbolizado pela luta do pastor David e a sua fisga contra o gigante Golias e a sua pesada armadura. Ezequiel tinha-o exprimido muito graficamente: «Eu próprio tomarei do cimo do cedro, do alto dos seus ramos colherei um broto, e plantá-la-ei num monte bastante alto. Plantá-la-ei na montanha elevada de Israel: deitará ramos, produzirá frutos e tornar-se-á um cedro magnífico». (Ez 17, 22-23)

O Reino de Deus surge da acção dos mais pequenos, ou seja, dos mais pobres, dos mais miseráveis, dos deserdados, dos sem poder. A princípio, a sua prática passará desapercebida, não dará nas vistas, será sem importância: fará o seu trabalho silenciosamente, debaixo da terra, até que romperá à flor da terra e então crescerá sem parar até se transformar na acção mais poderosa. Tudo transformará.

O Reino vem de baixo, não de cima. A prática da libertação é a prática do oprimido e não do opressor, do servo e não do senhor, do escravo e não do amo. Jesus confia na semeadura que ele realiza nos sectores marginalizados, entre os camponeses, entre os deserdados. É de aí que sairá o impulso imparável da libertação. Trata-se da construção do poder popular que é o poder de Deus, porque Deus está no povo.

A planta tem algumas propriedades especiais, pois é a mostarda, a qual, como diz Plínio o Velho, "com o seu gosto picante e seu efeito fogoso é extremamente benéfica para a saúde. Cresce em estado totalmente selvagem, ainda que melhore se for transplantada. Porém, depois de semeada, só se for destruída, pois, quando cai, imediatamente a semente começa a germinar" (cit. em Jbr, p. 96).

Primeiro, a planta tem qualidades terapêuticas pelas quais é apta para simbolizar o projecto do Reino de Deus. Uma das acções mais frequentes de Jesus é a cura de doenças, é sarar, é restabelecer a saúde corporal e espiritual. Com a realização da nova sociedade que o Reino simboliza, os seres humanos estarão livres de deformidades, de enfermidades, como acontece numa sociedade submetida ao domínio imperial e sacerdotal.

A planta cresce sob dois tipos de estado: silvestre e doméstico. Ela cresce, quer nos terrenos onde pasta o gado, quer nas hortas, nos campos de lavradio. Isto significa que não adianta impor-lhe grilhetas, limites, pois facilmente ela os quebrará, saltará por cima da cerca da horta e irá pelos baldios dos potros. Não existe organização que possa ter um perfeito controlo sobre ela: dará sempre a volta aos jardineiros. O Reino é assim: supera todas as fronteiras, os empecilhos, os dogmas que lhe queiram impor.

Mas a característica mais inquietante é a de ser invasora, pelo que "a única solução possível é livrarem-se dela". É comparável à graminheira, uma verdadeira praga para os semeadores, o terror dos agricultores. Estende as raízes por todo o lado, secando as sementeiras, reproduzindo-se sem cessar. Mesmo que arrancada, desde que fique uma pequena raiz, propaga-se infinitamente. O agricultor deve arrancá-la e deixar-lhe a raiz ao sol até que seque: é a única maneira de se ver livre dela.

Assim é o Reino. Cresce a partir de baixo, por baixo, em rizoma, imperceptivelmente, no oculto e propaga-se sem cessar. Grupos e grupos, comunidades e comunidades continuamente se formam; formam redes que a partir de baixo vão minando o poder opressor, os grandes monstros, como os descreverá a literatura apocalíptica. Assim se estendem as comunidades cristãs na geografia do vasto Império romano. (…)»

Rubén Dri
Professor e Investigador de Ciências Sociais da Universidade de Buenos Aires.

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