teologia para leigos

31 de agosto de 2012

MORAL CATÓLICA & PROGRAMA POLÍTICO

O ÓDIO AOS POBRES
SOB A FORMA DE AMOR


Trav. das Liceiras_Porto



Nunca antes havíamos ouvido falar tão abertamente de “pobres” como durante este Governo PSD-CDS/PP. Com Pedro Mota Soares, ministro do Ministério da Solidariedade e da Segurança Social, começaram-se a ouvir afirmações como: “encontrar respostas para que os mais fracos e desprotegidos…” Ou: “Como cristãos – e o CDS é um Partido democrata-cristão  – movem-nos preocupações sociais sobretudo para com os mais pobres”. Tal como David Cameron na Inglaterra aquando dos gravíssimos confrontos urbanos de há um ano e Viktor Urban na Hungria, subitamente, os neoliberais portugueses lembraram-se da sua “consciência social” e da sua preocupação para com os fracos e os pobres: estes são o novíssimo alvo da política.





Essa referência explícita aos «pobres», curiosamente, tem vindo da parte de pessoas publicamente conotadas com o CDS/PP e/ou conotadas com a Igreja Católica. É o caso de destacados dirigentes do CDS/PP que publicamente se afirmam cristãos (ex.: Assunção Cristas, vice-presidente do CDS e ministra da Agricultura, do Mar, do Ambiente e do Ordenamento do Território), é o caso de Isabel Jonet, presidente do Banco Alimentar contra a Fome. Introduzida no discurso social com a maior das ingenuidades, a palavra “pobres” ainda desperta ressonâncias sociológicas e psicológicas fortemente ligas ao regime salazarista, em que, até aos anos 1960, «ser pobre era crime punido por lei».






Acresce a esta terminologia, a anunciada determinação, por parte do Governo, em obrigar o beneficiário dos programas sociais a «devolver, como dever, à sociedade, sob a forma de trabalho socialmente útil», aquilo a que teve direito

A introdução de um certo tipo de linguagem moralizante (“os pobres” por oposição aos “utentes”) associado a uma tipologia mental que estigmatiza e criminaliza quem fique fora do mercado de trabalho (“direitos sim, mas com deveres”, nomeadamente, com trabalho não remunerado…) é a evidência de que estamos perante uma revolução política e moral.

Do ponto de vista político, regressamos a um estado pré-social e à mendicidade. Do ponto de vista moral, regressamos à valorização moral apenas da ‘esmola’, da ‘caridadezinha’. Aliás, foi o próprio ministro Pedro Mota Soares que deixou bem claras estas questões ao dizer que o Estado Social de social tem pouco [«o Estado não tem vocação para dirigir instituições sociais…», sic].



Se formos investigar, o discurso oficial deste ministro democrata-cristão é sobreponível ao do do Estado Novo dos anos 1930-40.

«Em 1934, o I Congresso da União Nacional reforçou o papel "supletivo" do Estado. Era uma ajuda aos "anormais físicos, psíquicos e sociais". E o Estatuto da Assistência Social de 1944 só atribuiu ao Estado a missão de "suscitar, promover e sustentar" obras de assistência, se as privadas faltassem. Mas nunca deveria favorecer a "preguiça" ou a "pedinchice".

O diploma reflectia já as mudanças na Europa ao criticar as teorias do filantropismo do século XIX. Mas, em vez das estruturas de segurança social criadas em Inglaterra, nos anos 40, a partir do relatório Beveridge (1942) - que propôs a cobertura a toda a colectividade de protecção de riscos sociais, uma política de redistribuição de rendimento e o alargamento das coberturas já existentes (doença, maternidade, invalidez, velhice, morte e desemprego) -, o Estado Novo fixou, antes, que o esforço essencial assentava no espírito caridoso dos portugueses, uma das suas "qualidades naturais".

"Os dirigentes do regime e o próprio Salazar", sintetiza Flunser Pimentel, "atribuíam a miséria em Portugal a dois defeitos: a preguiça e a imprevidência. A assistência social, se fosse excessiva, acabava por estimular o "parasitismo"." Por isso, o Estado devia retirar-se de cena.» [João Ramos de Almeida, PÚBLICO, 23:VIII:2011; link AQUI:]


Paralelamente, e sem falar já no convite descabelado a emigrar!, assiste-se à saturação do espaço mediático pela retórica da “sensibilidade social”, da “solidariedade social”, da “ajuda social”, do “voluntariado”, do “microcrédito”, por vezes, muito colados à promoção do “empreendedorismo” como outras vias de saída para a Crise. São estas as novas versões (globalizadas) da antiga expressão (da beira da porta) “caridade cristã”.

Com elas, fica, assim, traçado o triângulo perfeito: se o Estado puder (“Estado Social mínimo”), se a sociedade quiser (“voluntariado”) e se tu te dispuseres (“empreendedor”)… podes deixar de ser pobre!

Ora, já vamos sabendo que é a Austeridade que faz com que a Taxa de Desemprego divirja da Taxa de atribuição do RSI, sendo as políticas de austeridade, e não o oportunismo, as culpadas pela situação de dependência social da maioria dos ditos “pobres”.




Igualmente sabemos que a ajuda social com base no RSI pode ser significativamente estruturante para os jovens (sendo muito menos estruturante para os desempregados com idades elevadas), não devendo por isso ser tão perseguida e tão policiada (sobretudo, se comparada com a fraude fiscal):


Ora, já vamos sabendo também que «o trabalhador desempregado está apto a trabalhar e quer trabalhar. O trabalhador desempregado não quer esmola, quer emprego com direitos para si e para os seus concidadãos.» As mais recentes entrevistas televisivas a que assistimos o demonstram de modo testemunhal indesmentível (cf. recrutados - jardineiros - pela Câmara Municipal do Porto).


Já desmitificamos igualmente a eventualidade da “solidariedade social” e do “empreendedorismo” poderem vir a ser uma saída para a crise [CLICAR AQUI e AQUI].

Igualmente, foi longamente demonstrado, pelo Prof. João Ferreira do Amaral, que não bastam atitudes locais ou reivindicações regionais para regressarmos ao bem-estar social de antes da crise: impõe-se uma atitude política supra-nacional “anti-germânica” [CLICAR AQUI].


A Esmola desligada da denúncia do sistema que gera a pobreza (almoços de beneficência, chás de caridade, tômbolas, etc); a Tele-Beneficência que não arranca do sofá do seu estatuto quem se limita a ligar para o número que passa no rodapé do ecrã do seu televisor (bem denunciada em «O Crepúsculo do Dever», por G. Lipovetsky); a Beneficência Interesseira: Fundação António da Mota, Leopoldina, Popota, Fundação Manuel dos Santos, Fundação EDP, etc; os Hipócritas, falsos-exemplos de Pobreza-Humildade (o culto duma imagem pobretana de Steve Jobs-Apple ou do fundador do IKEA [Ingvar Kamprad Elmtaryd Agunnaryd], o primeiro sempre de t-shirts e ténis e o segundo de casaco roto guiando um pequeno carro muito velho; a propaganda dos Bill Gates beneméritos…),…


…todos estes «novos exemplos morais» poderiam, hoje, levar, mais uma vez, F. Nietzsche a dizer que a culpa da situação a que chegamos é da Moral sendo a «compaixão e a moral altruísta» (…) «um sintoma de retrocesso, um perigo, uma sedução, um veneno, um narcótico que» dá a vida «a expensas do futuro». [“A genealogia da moral”]


Pergunta-se: a Igreja católica, os seus dirigentes, não têm nada a dizer a estas políticas? Nem a estes políticos cristãos?

É compreensível que não tenha… até porque está trilhada pelo próprio sistema que soube amarrá-la à estratégia governamental (vide relações IPSS’s e Governo); por outro lado, a leitura que a Igreja Católica sempre fez da situação social contemporânea raramente foi estruturante, resvalando para o moralizante por medo de ser acusada de ‘fazer política’.


Os «problemas sociais» que o primeiro-ministro britânico identificava prometendo ter «a coragem de os enfrentar», resumiam-se a «um lento desmoronamento moral»: «Fihos sem pais, escolas sem disciplina e recompensas sem esforço». Promover a lógica segundo a qual a pobreza decorreria de problemas comportamentais, de falhas (ou mesmo de escolhas) individuais constitui uma boa forma de legitimar o projecto conservador de corte dos orçamentos ligados à protecção social. Uma das mais contestadas propostas do governo consistiu em limitar o apoio à habitação, concedido principalmente a trabalhadores pobres.»”

”Desmoronamento moral” - Não ouvimos frequentemente, os cristãos, dizer que «a crise é antes de tudo uma crise de valores», uma crise moral? Nesse ponto, a Igreja católica e David Cameron coincidem. Coincidem? Atada de pés e mãos, a Igreja Católica está MORALMENTE obrigada a coincidir (cf. a resposta do ministro Pedro Aguiar-Branco à posição televisiva do bispo das Forças Armadas: «O sr. bispo tem de se decidir entre ser comentador político ou bispo».... A Igreja Hierárquica surgiu de imediato a demarcar-se do... bispo!, mas não da política). Está moralmente obrigada a coincidir até porque retira significativos benefícios dessa relação com o poder político.

Subitamente, a Moral da ‘caridadezinha cristã’ surge, pela mão do poder político, no espaço social de uma forma descabelada, confiante em que nada nem ninguém a questionará.

Oficialmente, a Igreja Católica não reagiu às medidas de destruição do Estado Social promovidas por políticos cristãos. É compreensível que não reaja: talvez esses dirigentes governamentais estejam em sintonia com aquilo que a Universidade Católica ensina…


Perante os escrutinadores ‘à outrance’ da «justiça» e da «bondade» um euro mal gasto em subsídios sociais é muito grave...»], F. Nietzsche disse:

«Que querem estes psicólogos? De certo pôr em evidência a parte vergonhosa do nosso mundo interior e procurar o princípio activo, condutor decisivo, da evolução, precisamente no ponto em que o orgulho intelectual do homem não o esperava achar (…). O que é que impele os psicólogos neste direcção? Será o instinto secreto e pérfido de amesquinhar o homem? Será uma perspicácia pessimista, ou a desconfiança do idealista desiludido e triste, todo bílis? Ou talvez certa hostilidade subterrânea (…), certo rancor inconsciente? Ou antes uma perversa afeição às excentricidades, aos paradoxos, às incertezas e aos absurdos da existência? Ou, finalmente, um pouco de tudo isto, um pouco de vilania, um pouco de amargura, (…) um pouco de prurido?...

«Asseguram-me que não passam de umas rãs mucilaginosas e importunas, que saltam e se metem no peito do homem, como se ali estivessem no seu elemento, num charco.

«Eu repelo esta ideia e desejo que seja exactamente o contrário; desejo que estes investigadores, que estudam a alma ao microscópio, sejam criaturas generosas e dignas, que saibam refrear o coração e sacrificar os seus desejos à verdade, a toda a verdade (…).  Para mim, é evidente que esta teoria tira a sua origem do conceito «bom» num lugar aonde não está: o juízo «bom» não emana daqueles a quem se prodigalizou a «bondade». Foram os próprios «bons», os homens distintos, os poderosos, os superiores que julgaram «boas» as suas acções; isto é, «de primeira ordem» estabelecendo esta nomenclatura por oposição a tudo que era baixo, mesquinho, vulgar e vilão. Arrogavam-se da sua altura o direito de criar valores e determinismos (…) O instinto de dominar acabou por encontrar a sua expressão» [‘A genealogia da moral’]

O Estado não tem mais nada a oferecer se não «uma previdência mínima» e a Igreja Católica oficial não tem mais nada a oferecer se não apelar para aquela «qualidade natural» chamada «o espírito caridoso dos portugueses», que, porém, alguns (Isabel Jonet) consideram pernicioso por fomentar a preguiça… É o desmoronamento moral da Igreja Católica portuguesa sob a forma de um programa político neoliberal (e logo ela que não quer ‘fazer política’…).



Custa ver as IPSS’s a sujarem-se no mesmo desrespeito pelo valor do trabalho que este Governo neo-liberal manifesta e a colaborarem na destruição dos serviços públicos e na redução do papel redistributivo do Estado… [clicar AQUI]



Perante este súbito "interesse" para com os pobres por parte dos cristãos do CDS/PP, é bem provável que Nietzsche volte a ter razão: «de entre todos os perigos fosse a moral o perigo por excelência».

A Igreja Católica oficial ficará historicamente associada a um dos períodos mais negros da nossa história: pecado por incapacidade de denúncia profética, pecado por consentimento e omissão. A Igreja Católica, qual Caifás, colocou-se do lado do Poder. A História repete-se: 'é preferível que morra o pobre do que o nosso Lugar santo pereça'... [Jo 11:45-51]

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