Crise:
lugares de certezas e incertezas
Por vezes, quase
parece que foi um luxo anterior à crise. Algo que fomos perdendo, ou
que se vai cruzando connosco cada vez menos, deixando de ocupar o espaço que
antes, saudável e laboriosamente, ocupava. O luxo de sermos interpelados pelo
mundo com perguntas que não suscitam respostas automáticas, com problemas sobre
os quais havemos de nos posicionar e que não têm solução simples nem evidente.
O luxo de reflectirmos sobre as áreas cinzentas, sobre o que não é
exclusivamente bom nem mau. O luxo de ponderarmos caminhos diversos, que por
vezes se cruzam, em vez de a todo o momento sermos confrontados com bifurcações
claras em que uma das vias é apenas desastrosa, trágica. O luxo da dúvida, da
incerteza que é desafiante para o pensamento individual e estimula a construção
amadurecida de projectos comuns.
À medida que a crise se agrava, surgem no encolhido espaço da dúvida cada
vez mais certezas, mais respostas já dadas. Porque as posições em confronto, as
diferentes visões de sociedade, se definem em torno de antagonismos que não são
novos na história, que já tiveram os seus argumentários construídos, debatidos e
até escrutinados pelo confronto com o real. Há uma certa sensação de reedição,
fora do tempo, de debates que na Europa tantos consideraram estar resolvidos,
por extensa que fosse (e era) a sua margem de melhoria.
Do modelo social europeu à dignidade do trabalho, do papel
estratégico e redistributivo
do Estado à centralidade dos princípios da cidadania, democracia e paz,
habituámo-nos a pensar que partilhávamos um contrato social dirigido para
finalidades ligadas ao bem-estar dos seres humanos, não para o bem-estar
da ínfima minoria de pessoas e instituições
que em si conseguem concentrar mais e mais riqueza.
Agruras dos períodos de refluxo, a lembrar que a história nada tem de
linear, que a democracia é uma construção frágil e que só pela acção colectiva
a poderemos consolidar e reorientar para finalidades justas.
D. Januário Torgal Ferreira, bispo |
[«eles fazem o seu jogo por baixo da mesa»]
Com o aprofundamento desta crise, sem fim à vista, cresce, de um lado, o anacrónico espaço das certezas, da
defesa daquilo por que não imaginámos ter de lutar neste século XXI. Mas cresce
também, noutra morada, o espaço das incertezas. Estas, expulsas do lugar onde
são úteis e criativas − no exercício da crítica e da transformação −, alojam-se
num quotidiano em que são fonte de sofrimento,
de medo, de desespero. No quotidiano imposto pela crise, certezas e incertezas
passam a habitar locais trocados, deslocam-se para onde não deviam estar e
tornam-se ambas corrosivas:
.as certezas facilitam posições
defensivas, em vez de estimularem a audácia da alternativa;
.as incertezas paralisam e
degradam as condições mínimas de estabilidade que facilitariam a
disponibilidade da maioria para se empenhar em soluções colectivas − não apenas
privadas, familiares − para os problemas de todos os dias.
Padre Jardim Moreira |
[«não se vai lá apenas com assistencialismo - é preciso justiça social»]
Vivemos hoje nesta
contradição. Na democracia portuguesa, o Estado-providência
nunca chegou a desenvolver-se de modo a substituir, na expressão de Boaventura
Sousa Santos, a
«sociedade-providência».
E hoje, quando o sofrimento que está
a instalar-se em camadas cada vez mais extensas da população já não diz
apenas respeito a incertezas futuras (que projectos de vida, que segurança no
emprego ou na reforma), mas invade o
presente (o que comer, como pagar a
electricidade ou os transportes, como não ter frio), há certamente
racionalidade em reinvestir, como tantos estão a fazer, nas redes dessa
sociedade-providência que ainda nos circunda. Mas
os nossos problemas colectivos não se resolverão apenas nessa esfera de
actuação.
Nem sequer terão
solução só no âmbito nacional, conhecida
como é a dimensão europeia, internacional, sistémica, de uma crise que vai
aproveitar até ao limite as possibilidades de destruir as funções sociais do Estado, de transferir recursos para interesses privados e de destruir os direitos associados ao
trabalho. Desapossando ao mesmo tempo os cidadãos dos instrumentos
democráticos de participação: da real capacidade que o seu voto tem de trazer
mudanças, porque os centros de decisão são deslocalizados, até ao pleno uso do
seu direito de protesto, porque os poderes apostam, como já estamos a ver, em
perspectivas securitárias e criminalizadoras desse mesmo direito.
Padre Anselmo Borges |
[«Nestas
circunstâncias, não bastam boas intenções. É preciso reflectir e tentar ver claro.
Deixo aí alguns pensamentos sobre a crise, a partir de reflexões do teólogo
José Ignacio Calleja, prestigiado professor de Teologia Moral Social na
Faculdade de Teologia de Vitoria, num texto em que afirma precisamente que "há um golpe de
Estado financeiro no mundo, gerido por políticos", sendo necessário
"impedir o fascismo social, para poder sair da crise".», Padre Anselmo Borges]
Será
na esfera pública, dando visibilidade a ideias disponíveis que são
alternativas viáveis à tragédia europeia em curso, que poderá deter-se o
colapso social que se anuncia. O projecto neoliberal deve grande parte da sua
capacidade de implantação ao facto de não dizer o seu nome, de não ser claro
quanto aos seus propósitos e, pelo contrário, se escudar em dispositivos
discursivos e práticas que o elidem: não há alternativa, é assim porque é assim, a culpa é das
vítimas (polícia mau) ou isto é o melhor para elas (polícia bom).
Parte do combate à crise passa, de facto, por obrigar o neoliberalismo a
dizer o seu nome. Não tratar os seus defensores, e menos ainda os que o
aplicam, como adversários menores. Não lhes facilitar saídas fáceis, como
acusá-los de serem mais técnicos do que políticos (quando são
políticos a impor políticas neoliberais) ou de apenas gostarem de
ser bons alunos da Europa (quando são políticos que se revêem ideologicamente
na linha dominante na União Europeia).
Nas ocasiões em que os neoliberais falam com clareza, como fez o
primeiro-ministro Pedro Passos Coelho ao referir-se aos países sob intervenção
dos planos de ajustamento estrutural como «aqueles que foram
indisciplinados» e a Angela Merkel como alguém com quem «em vez de
colagem há coincidência de posições» (Público, 4 de Dezembro de
2011), o que importa sublinhar é um posicionamento político-ideológico que é
contrário aos interesses das periferias europeias no quadro do saque em curso.
Porque só quando as escolhas políticas são claras podemos ter democracias
substantivas. Já o sabemos mas, nestes tempos de certezas e incertezas
trocadas, convém repeti-lo: sem política, as escolhas são cegas; sem
instrumentos para as levar à prática, são vazias. E o nosso lugar não é entre a cegueira e o vazio.
por Sandra Monteiro
8 de Dezembro
de 2011