teologia para leigos

21 de agosto de 2012

OBRIGADO, PS...


Universidades, 20 anos depois

Mercadorização e Elitização do ensino..., o «NOVO MODELO».


Uma vez mais, do ensino superior público chegam profundas preocupações com o futuro, já no próximo ano lectivo. Vai-se difundindo uma narrativa segundo a qual a situação do sector resulta da grave crise que o país atravessa, aconselhando solidariedade com os cortes e sacrifícios exigidos. Mas o presente não chegou de repente. Foi preparado, pelo menos, durante as duas últimas décadas. E as mudanças que foram introduzidas no ensino superior público são muito ilustrativas do ponto a que haveríamos de chegar.

Passaram vinte anos desde que, a 14 de Agosto de 1992, foi publicada no Diário da República a Lei n.° 20/92, que aumentou as propinas no ensino superior público. A contestação estudantil que se verificou antes e depois da promulgação da lei [1] foi um espaço central de exercício de cidadania e de politização de toda uma geração. Adiou durante quase dez anos a aplicação das concepções neoliberais a este grau de ensino. Mas não conseguiu impedir um rumo que continua a ter expressão internacional, como recentemente se viu no Chile, em Espanha ou no Canadá [2].

Depois da lei de 1992, o ensino superior deixou de ser tratado como um direito de acesso universal e gratuito, assegurado por um serviço público que urgia democratizar, para elevar o baixíssimo nível de qualificações dos portugueses (ainda hoje é baixo, apesar da evolução). O montante pago pelos estudantes foi subindo e ultrapassou agora a barreira dos mil euros; a qualidade do ensino e a acção social escolar nem por isso aumentaram; o destino das receitas das propinas foi substituindo as dotações do orçamento de Estado, até para pagar as mais básicas despesas de funcionamento, como os salários.

Os argumentos dos defensores do novo modelo não resistiram à prova do tempo e da realidade. O co-financiamento dos custos do ensino pelos estudantes e suas famílias, além de desresponsabilizar o Estado, sobrecarregou duplamente quem já contribuíra por via fiscal para o financiamento público e encetou uma corrida a parcerias com investidores externos que transporta para as universidades perigosas lógicas de mercadorização do ensino e dos saberes.

As famílias com estudantes no ensino superior público estão numa situação muito desfavorável no contexto internacional: tendo em conta os rendimentos medianos do país, fazem um esforço que apenas é superado pelo que é feito no México, Japão, Austrália e Estados Unidos [3]. A esta situação, desvalorizada quando se fala de «competitividade» face ao exterior, juntam-se duas evoluções que contrariam qualquer objectivo de justiça social.

Por um lado, a composição da estrutura social do ensino superior sofreu uma forte elitização, com a classe dos rendimentos mais elevados (9,9% da população portuguesa) a ocupar 38,2% dos lugares em 2010-2011 (em 1994-1995 preenchia 14,4% dos mesmos). Por outro lado, a tendência de afastamento dos estratos de rendimentos mais baixos (entre 1994 e 2004, cerca de um terço destes estudantes já saíra) apenas está a ser «compensada», em 2010-2011, por uma enorme diminuição da presença de uma classe média agora muito afectada pelo desemprego (em 2004 eram oriundos desta camada 74,1% dos estudantes, em 2010 eram apenas 43,8%) [4].

A história do modelo de financiamento assente nas propinas fez-se também acompanhar de um aumento exponencial (pelo menos de 600%) do recurso ao crédito. Crescem diariamente entre as famílias e os estudantes afectados pela crise os casos de impossibilidade de cumprir os pagamentos. Uns abandonam os estudos, outros desistem de sequer entrar. A armadilha da dívida sufoca as famílias, que deixam de poder servir de almofada social. E exige das universidades respostas à altura das suas responsabilidades sociais.

As consequências da elitização e da financeirização do ensino superior desenham um panorama muito inquietante, sobretudo numa sociedade que tenderá a tornar-se ainda mais desigual, onde o desemprego está nos 15,4% e o desemprego jovem chegou aos 36,4% (no segundo trimestre de 2012).

As legítimas expectativas da geração mais qualificada de sempre são substituídas por um horizonte sem perspectivas.

Mas está também em causa o papel social do ensino superior na mobilidade ascendente, que se repercute em melhor emprego e maior contribuição para a receita do país.

Habituámo-nos aos alertas cada vez mais angustiados dos responsáveis do ensino superior, desde logo o Conselho de Reitores das Universidades Portuguesas (CRUP): «asfixia financeira»; ameaças à «estabilidade» e «sustentabilidade» do sector. No final de Julho, face a um corte orçamental para o próximo ano lectivo que pode ser, em média, consoante os estabelecimentos, de 2,5% a 4% (com uma redução orçamental acumulada de 20% desde 2005), as preocupações ainda mais subiram de tom. Usando de uma metáfora com ressonâncias estivais, António Rendas, presidente do CRUP, afirmou que «nós somos muito solidários com a situação global do país» e «cumprimos as restrições orçamentais»mas, depois de anos de financiamentos curtos que obrigaram a tapar aqui para destapar ali, «já não estamos só com a manta curta, estamos com a manta rota» [5].

Com esta atitude, os responsáveis destas instituições arriscam-se a ser reduzidos a gestores do declínio. Em vez disso, podiam aproveitar o conhecimento hoje existente das dinâmicas em curso desde 1992 e suscitar, com todos os actores do ensino superior público, um debate sobre as transformações que terão de ocorrer para fugir às armadilhas do sub-financiamento, valorizar as formações e os saberes, respeitar os profissionais, contrariar o processo que converte estudantes em «clientes» e envolver a comunidade universitária em escolhas democráticas e participadas.

Nos últimos vinte anos, o ensino superior ilustra o processo de captura dos serviços públicos pelas concepções neoliberais que explodiram na crise iniciada em 2008. Elas ameaçam um ensino de qualidade e com dimensão internacional desde que corroeram a sustentabilidade financeira, a gestão democrática e as finalidades sociais do sector, a começar pelo combate às desigualdades.


Maria de Lurdes Rodrigues



A crise no ensino superior público não é o resultado de uma crise recente e sem precedentes no país. Houve foi, em 1992, um corte fundamental em que eram já visíveis os precedentes político-ideológicos da crise actual, com os seus cortes austeritários. Não é tarde para os cortar pela raiz.

Sandra Monteiro
2 de Agosto de 2012
Le Monde diplomatique – edição portuguesa, Agosto de 2012.

Notas

[1] E até depois da sua suspensão provisória (1995) e substituição (1997) por uma versão suavizada, desde logo na fórmula de cálculo dos montantes a pagar (cf. Lei n.° 113/97 de 16 de Setembro).
[2] Ver Pascale Dufour, «A persistência dos estudantes do Quebeque», Le Monde diplomatique – edição portuguesa, Junho de 2012.
[3] Ver Luísa Cerdeira, «Quem são e quanto pagam os estudantes do ensino superior português?», Le Monde diplomatique – edição portuguesa, Julho de 2012.
[4] Ibid.
[5] Entrevista no Grande Jornal da RTP Informação, 25 de Julho de 2012.