uma espiritualidade da libertação
Situar-se na perspectiva do Reino é participar da luta pela libertação dos homens que são oprimidos por outros homens. É isto que muitos cristãos começaram a viver quando se comprometeram com o processo revolucionário latino-americano.
Se esta opção os afastou da comunidade cristã é porque muitos, nela, empenhados em domesticar a Boa Nova, os olham como membros desordeiros e até perigosos. Se nem sempre sabem expressar em termos apropriados as motivações profundas do seu compromisso, é porque a teologia que receberam e que partilham com outros cristãos não forjou as categorias necessárias para traduzir essa opção que procura situar-se de forma criadora frente às novas exigências do evangelho e do povo espoliado e oprimido deste sub-continente.
Mas, com o seu compromisso e com as suas tentativas de explicação, há mais inteligência da fé, mais fé, mais fidelidade ao Senhor que na doutrina (assim preferem chamar-lhe) «ortodoxa» dos círculos cristãos bem pensantes.[1] Doutrina, reforçada por medidas de autoridade e publicitada graças aos meios de comunicação, doutrina tão estática e desvitalizada, que nem sequer força tem para se afastar do evangelho ─ é o evangelho que a abandona.
No entanto, as categorias teológicas não são suficientes.
É necessária uma atitude vital: global e sintética, que informe a totalidade e o detalhe da nossa vida. É necessária uma «espiritualidade». A espiritualidade, no sentido estrito e fundo do termo, é o domínio do Espírito. Se «a verdade nos fará livres» (Jo 8:32), o Espírito, que «nos conduzirá à verdade completa» (Jo 16:3), conduzir-nos-à à liberdade plena ─ rumo à liberdade diante de tudo aquilo que nos impede de nos realizarmos como homens e filhos de Deus, e rumo à liberdade de modo a amar e entrar em comunhão com Deus e com os outros. Conduzir-nos-à pelo caminho da libertação, porque «aí onde está o Espírito do Senhor, aí está a liberdade» (2Cor 3:17).
Uma espiritualidade é uma forma concreta, movida pelo Espírito, de viver o evangelho, uma maneira precisa de viver «diante do Senhor» em solidariedade com todos os homens, «com o Senhor» e diante dos homens. Ela surge duma experiência espiritual intensa que imediatamente é tematizada e testemunhada. Em função dum compromisso com o processo de libertação, essa experiência está a começar a ser feita por alguns cristãos [este texto de G. Gutiérrez é de 1972]. Experiências de gerações anteriores amparam-na, mas também fazem-lhes ver que devem rasgar caminhos inéditos. Ao HOJE da história e do evangelho corresponde um PRESENTE da experiência espiritual que não pode ser escamoteado. Espiritualidade significa uma reordenação dos grandes eixos da vida cristã em função do tal presente. A novidade está na síntese que se opera ao provocar o aprofundamento de certos temas, ao fazer vir à superfície aspectos desconhecidos ou esquecidos e, sobretudo, na forma como tudo isso é transformado em vida, oração, compromisso, gesto.
A verdade é que um cristianismo que seja vivido no compromisso com o processo libertador apresenta problemas próprios que não podem ser descurados e encontra escolhos que é necessário superar. Para muitos, o encontro com o Senhor nessas circunstâncias pode eclipsar-se a favor daquilo que suscita e alimenta: o amor ao homem. Será um amor que ignora toda a plenitude que encerra em si. A dificuldade é real. Porém, as pistas de solução devem nascer no coração do próprio problema. Doutro modo, será apenas um remendo, um novo impasse. Este é o desafio que enfrenta a espiritualidade da libertação. Ali onde a opressão e a libertação do homem parecem esquecer Deus ─ um Deus catado pela nossa especial e ampla indiferença diante dessas questões ─ deve brotar a fé e a esperança naquele que vem extirpar de vez a injustiça e oferecer, de modo imprevisível, a liberdade total. Trata-se duma espiritualidade que ouse lançar raízes no solo constituído pela situação de opressão-libertação.
A espiritualidade da libertação estará centrada na conversão ao próximo, ao homem oprimido, à classe social espoliada, à raça desprezada, ao país dominado. A nossa conversão ao Senhor passa por este movimento. A conversão evangélica, com efeito, é a pedra de toque de toda a espiritualidade. Conversão significa uma transformação radical de nós próprios, significa pensar, sentir e viver como Cristo presente no homem despojado e alienado. Converter-se é comprometer-se com o processo de libertação dos pobres e dos explorados, comprometer-se lúcida, realista e concretamente. Não só de uma forma generosa, mas também através duma análise da situação e segundo uma estratégia de acção. Converter-se é saber e experimentar que, contrariamente às leis do mundo e da física, segundo o evangelho, só se está de pé quando o nosso eixo de gravidade passa fora de nós.
A conversão é um processo permanente, no qual, muitas vezes, os impasses nos obrigam a desfazer o caminho já feito e a começar de novo. Da nossa disponibilidade para o encetar, da nossa infância espiritual depende a fecundidade da nossa conversão. Qualquer conversão implica rotura, e querer converter-se sem conflitos é enganar-se e enganar os outros. «Todo aquele que ama o seu pai e a sua mãe mais do que a mim, não é digno de mim». [Mt 10:37] Não se trata de uma atitude intimista e recolhida ─ a nossa conversão está condicionada pela envolvência socioeconómica, política, cultural, humana em que ela se desenrola. Sem uma mudança nessas estruturas não haverá autêntica conversão. Trata-se de uma rotura com as nossas categorias mentais, com a forma de nos relacionarmos com os outros, com o nosso modo de nos identificarmos com o Senhor e com o nosso meio cultural, com a nossa classe social, isto é, rotura com tudo aquilo que entrava uma solidariedade real e profunda para com aqueles que, em primeiro lugar, sofrem porque estão submetidos a uma situação de miséria e de injustiça. Só assim, e não com pretensas atitudes puramente interiores e espirituais, é que surgirá o «homem novo» a partir dos escombros do «homem velho».
O cristão ainda não operou suficientemente a sua conversão ao próximo, à justiça social, à história. Não percebeu, ainda, com a desejada clareza, que conhecer a Deus é realizar a justiça. Ainda não vive, num único gesto, com Deus e com os homens. Não se situa ainda em Cristo prescindindo de evadir-se da história humana concreta. Falta-lhe percorrer o caminho que leva a procurar efectivamente a paz do Senhor no coração da luta social.
Uma espiritualidade da libertação deve estar impregnada de uma vivência de gratuidade. A comunhão com o Senhor e com todos os homens é, antes de mais, um dom. Daí a universalidade e a radicalidade da libertação que ele oferece. Um dom que, antes de ser um chamamento à passividade, exige uma atitude vigilante. Este é um dos temas bíblicos mais constantes: o encontro com o Senhor supõe atenção, disposição activa, trabalho, fidelidade à sua vontade, frutificação dos talentos recebidos. Saber que na raiz da nossa existência pessoal e comunitária se encontra o dom da auto-comunicação de Deus e a graça da sua amizade enche de gratuidade a nossa vida. Isso faz-nos ler como um dom os nossos encontros com os outros homens, os nossos afectos: tudo o que acontece na nossa vida é dom. Só se ama autenticamente quando há entrega gratuita, sem condições nem coacção. Só o amor gratuito vai à raiz de nós mesmos e faz brotar a partir daí um verdadeiro amor.
A oração é uma experiência de gratuitidade. É um acto «ocioso», tempo «desperdiçado» que nos recorda que o Senhor está para lá das categorias do útil e do inútil.[2] Deus não é deste mundo. A gratuidade do seu dom, criadora de necessidades profundas, liberta-nos de qualquer alienação religiosa e, em última instância, de todo o tipo de alienação. O cristão comprometido no processo revolucionário latino-americano tem que encontrar os caminhos duma oração autêntica e não evasiva. Não se pode negar que a respeito disto estamos em crise e que facilmente enveredamos por becos sem saída.[3] Muitos são aqueles que, com nostalgia e no «exílio», evocando anos anteriores da sua vida, dizem com o salmista: «A minha alma estremece ao recordar quando passava em cortejo para a Casa do Senhor, entre gritos de júbilo e de louvor da multidão em festa» [Sl 42:5] Mas não se trata de voltar atrás: novas experiências e novas exigências tornam intransitáveis os caminhos familiares e tranquilizantes e fazem-nos tomar atalhos nos quais esperamos ser possível dizer, um dia, como Job: «Os meus ouvidos tinham ouvido falar de ti, mas agora vêem-te os meus próprios olhos.» (Job 42:5)
O único Deus credível, dizia com razão D. Bonhoeffer, é o Deus dos místicos. Porém, não é um Deus sem relação com a história humana. Bem pelo contrário. Como recordávamos no parágrafo anterior, se é verdade que é necessário passar pleo homem para chegar a Deus é igualmente verdade que a «passagem» por esse Deus gratuito me despoja, me desnuda, me universaliza e torna gratuito o meu amor pelos outros. Exigem-se esses dois movimentos dialecticamente para uma síntese. Esta síntese dá-se em Cristo: no Deus-homem encontramos Deus e o homem. Em Cristo, o homem dá uma face humana a Deus e Deus dá uma face divina ao homem.[4] Só assim poderemos compreender que a «união com o Senhor», que toda a espiritualidade proclama, não seja uma separação do homem: para chegar a essa união há que passar por esta síntese e ela, ao mesmo tempo, faz-me encontrar plenamente o homem. Com isto não se procura «equilibrar» o anteriormente dito, mas sim aprofundá-lo e enxergá-lo em todo o seu significado.
Esta conversão ao próximo, e, nele, ao Senhor, esta gratuidade que me permite encontrar em plenitude os demais, este único encontro fundador da comunhão dos homens entre si e dos homens com Deus, é a fonte da alegria cristã. Alegria que nasce do dom já recebido e, todavia, sempre esperado, e que se expressa no presente, pese embora a dureza e as tensões da luta pela construção duma sociedade justa. Todo o anúncio profético da libertação total vem acompanhado dum convite a participar no gozo escatológico: «Esta Jerusalém será a minha alegria e o meu povo o meu gozo.» (Is 65:19) Alegria que deve encher a nossa existência tornando-nos atentos ao dom da libertação inegral do homem e da história, bem como dos aspectos mais pequenos da nossa vida e da dos outros.
Este gozo não deve adormecer o nosso compromisso pelo homem que vive num mundo de injustiça, nem deve levar-nos à conciliação fácil e a baixo custo. Pelo contrário, a nossa alegria é pascal, é garantida pelo Espírito (Gal 5:22; 1Tm 1:6; Rm 14:17), passa pelo conflito com os grandes deste mundo e pela cruz até chegar à vida. Por isso a celebramos no presente recordando a páscoa do Senhor. Recordar Cristo é crer nele. E essa celebração é uma festa (Ap 19:7), uma festa da comunidade cristã, daqueles que confessam Cristo como Senhor da história, como libertador dos oprimidos. Essa comunidade é aquilo que se denominou ‘o templo estreito’ por oposição ao templo grande da história da humanidade.[5] Sem enquadramento comunitário não é possível nem o surgimento nem a vivência duma nova espiritualidade.
O Magnificat poderia expressar muito bem essa nova espiritualidade da libertação. Texto de acção de graças pelos dons do Senhor, expressa humildemente a alegria de se saber amado por ele: «O meu espírito se alegra em Deus, meu Salvador. Porque pôs os olhos na humildade da sua serva… O Todo-poderoso fez em mim maravilhas.» (Lc 1:47-49) Mas, ao mesmo tempo, é um dos textos com maior conteúdo libertador e político do Novo Testamento. Essa acção de graças e essa alegria estão estreitamente ligadas à acção de Deus libertando os oprimidos e humilhando os poderosos: «Derrubou os poderosos de seus tronos e exaltou os humildes. Aos famintos encheu de bens e aos ricos despediu de mãos vazias.» (52-53)
O futuro da história está em linha com os pobres e os espoliados. A libertação autêntica será obra do próprio oprimido: nele, o Senhor salva a história. A espiritualidade da libertação tem como ponto de partida a espiritualidade dos ‘anawim.
Mais do que teologias, são os testemunhos vividos os que assinalarão, ou que já estão a assinalar agora, o rumo da espiritualidade da libertação. É nessa tarefa que está empenhada, na América Latina, aquela que em páginas anteriores designamos por «a primeira geração cristã».
Gustavo Gutiérrez
Teologia de la Liberación – perspectivas
Ed. Sígueme 1972, pp. 265-273
[1] Basta ler Camilo Torres ou Néstor Paz Zamora (para citar dois que deixaram algo escrito) para nos convencermos disto mesmo. Mal fariam os teólogos, chocados com certas deficiências de expressão, em não se entenderem com estes esforços por desentranhar o que a palavra do Senhor diz ao homem no contexto latino-americano.
[2] Cf. José Maria Gonzalez Ruiz, Dios es gratuito, pero no supérfluo. Madrid 1970.
[3] Tal facto foi lucidamente assinalado no documento da Pastoral de elites, em Medellín, 126.
[4] Se Vallejo tinha razão quando dizia: «Meu Deus, se tivesses sido homem, hoje saberias ser Deus», então poderíamos dizer: «se tivesses sido Deus, hoje saberias ser homem».
[5] Conrad Eggers Lan, Cristianismo y nuestra ideologia. Buenos Aires 1968, 47-48, citado por J. L. Segundo, Desarrollo y subdesarrollo: polos teológicos: PD 43 (1970) 79.