A «TEOLOGIA DA LIBERTAÇÃO» em julgamento
Poucos meses depois de, em 1984, ser conhecida a INSTRUÇÃO SOBRE ALGUNS ASPECTOS DA «TEOLOGIA DA LIBERTAÇÃO», pelo punho do cardeal Joseph Ratzinger (na altura Prefeito da Congregação para Doutrina da Fé e actualmente Papa Bento XVI), deu-se início, sobretudo na América Latina, a um debate vivíssimo sobre a profundidade teológica e exegética da ‘Teologia da Libertação’ (TdL).
De entre as várias questões em juízo, relevam-se, à sorte, três. (1) O significado da expressão ‘libertação’; (2) as consequências fracturantes, para a comunidade eclesial, da TdL; (3) as teologias da libertação vs a autêntica TdL. Assistiu-se, assim, ao aprofundamento de conceitos e à extracção das consequências pastorais disso mesmo.
A «Instrução» apela para uma definição «radical» da libertação, procedendo, assim, a uma separação da «libertação religiosa» («libertação do coração»; cf. Jer 31:31ss; Ez 36:26ss) face à «libertação temporal» (Ex 3; Ex:5ss) como se fossem duas realidades que corressem paralelas uma à outra.
Por outro lado, a «Instrução» apela a uma «neutralidade» teológico-exegética que permita conciliar harmoniosamente, sem tensões fracturantes, as classes sociais mais abastadas com as mais desfavorecidas, sendo este ponto considerado como um ponto da TdL «perigoso» para a unidade da igreja sul-americana. Esta crítica tem que ver com a metodologia (‘crítica’ ou ‘não crítica’) da leitura da realidade (dos chamados SINAIS DOS TEMPOS), ou seja, este ponto relaciona-se com Ciências Sociais ‘dóceis’, ‘submissas’ ou ‘não dóceis’. A Instrução esquece-se que «os Sinais dos Tempos não dizem respeito às aspirações humanas estudadas pelas Ciências Sociais, mas àquelas que são objecto de um “discernimento crítico” proveniente desse critério epistemológico superior e religioso que é “a luz do evangelho”. [Juan Luis Segundo, ‘Respuesta al Cardenal Ratzinger’, Ed. Cristiandad, col. Senda Abierta, 1985 p. 57]
Por fim, a «Instrução» distingue ‘as teologias’ da libertação (III,3) da ‘correctamente entendida’ ou ‘autêntica’ TdL (IV,1 e VI,7), que é a que brota do entendimento que a Congregação faz dos pressupostos bíblicos mais vezes citados pela TdL. A Congregação presume que seja qual for a teologia que se produza seja em que ponto do globo for, ela terá que, inculturalmente, ser formulada sob os mesmos termos conceptuais independentes das circunstâncias em que é elaborada. Com isto recusa qualquer inculturação da fé (como se tal fosse possível…). A ser assim, a estas horas ainda estaríamos a celebrar a nossa fé pascal na sinagoga judaica… e o cristianismo não teria passado duma tendência ou corrente dentro do judaísmo. Nada mais absurdo!
Aliás, este terceiro ponto remete para uma questão central em matéria de interpretação das Escrituras. Após Pio XII, com “Divino Afflante Spiritu”, e após o Concílio Vaticano II, com “Dei Verbum”, os «exegetas católicos devem respeito ao sentido literal, ou seja, devem levar plenamente a sério a intenção e o contexto, bem como o género literário das passagens bíblicas que se examinem». [ibidem, JL Segundo, p.61]
Ora, tal princípio ─ o da «intenção do autor» ─ também deverá ser aplicado ao texto da «Instrução»: qual é a intenção do autor da Instrução? Onde quer ele chegar? Bem como outras questões: É ela neutra? É discutível ou será, porventura, de origem ‘divina’, dogmática, isenta de erro?
Prestes a fazer 20 anos sobre esta séria ‘advertência’ à TdL, que tanto sofrimento iria produzir nas Comunidade de Base na América Latina e ‘sangue’ iria fazer correr[1] por esse já martirizado continente (a lista dos teólogos da libertação ‘condenados’ por heresia espalha-se, hoje, por mais de um continente), constata-se que a disputa ainda continua: a questão está de pé. Veja-se o caso Torres Queiruga. Importa que cada um se debruce sobre ela: a questão é demasiado importante, não só pelos princípios teológicos que cada facção defende, mas sobretudo pelas consequências pastorais. Em última análise, trata-se de saber que tipo de igreja queremos.
[LER RESPOSTA DE JUAN LUIS SEGUNDO AQUI]
[1] Veja-se o debate fracturante entre os irmãos Boff (Leonardo e Clodóvis) no qual entrou o teólogo austríaco Paul Weiss com acrescentos valiosos.