teologia para leigos

21 de agosto de 2012

MOBILIDADE: gato escondido...

O mito da «classe global»




[…] Para muitos investigadores em ciências sociais, ensaístas e militantes, a existência dessa «classe global» umas vezes louvada, outras vezes denunciada impõe-se como uma evidência.[1]

Jacques Attali sonhava, desde 1996, com uma «revolução cultural» susceptível de favorecer a emergência de uma «sobreclasse europeia». «A aceitação do novo como uma boa notícia, da precariedade como um valor, da instabilidade como uma urgência e da mestiçagem como uma riqueza» permitiria o desenvolvimento de «tribos de nómadas constantemente adaptáveis, libertando mil energias e portadoras de solidariedades originais».[2] […]

Do lado dos grandes patrões, o mito do «criador de riqueza desenraizado» tem uma vantagem directa: justifica os exorbitantes rendimentos de donos do mundo cuja errância pelo âmago da selva dos mercados se interromperia se não obtivessem o mais forte dos salários. «Se não aceitarmos que haja remunerações elevadas», advertiu na rádio France Inter a presidente do Movimento das Empresas de França (MEDEF), Laurence Patrisot, em 11 de Março de 2008, «corremos o risco de fazer sair do nosso país os maiores talentos que aqui temos».

Mais recentemente, o primeiro-ministro britânico, David Cameron, prometeu «desenrolar o tapete vermelho» ante os abastados contribuintes franceses que um aumento para 75% da parte marginal sobre os rendimentos prometido pelo candidato François Hollande tenha levado a exilarem-se.[3] […]

Observada a uma escala mais vasta, a «classe global» parece ser espantosamente alérgica ao cosmopolitismo. Tanto nos Estados Unidos como nas grandes potências económicas europeias e asiáticas, as empresas mais importantes são quase todas dirigidas por pessoas locais. Em média, a proporção de dirigentes estrangeiros não ultrapassa os 5%. E baixa para 2% se tirarmos desse quadro os altos dirigentes pertencentes ao mesmo quadro linguístico (e amiúde cultural) que o do país de acolhimento, como é o caso dos suíços e dos austríacos na Alemanha ou o dos irlandeses, australianos e sul-africanos no Reino Unido e nos Estados Unidos. Mesmo numa das mais influentes multinacionais do mundo, a nata é de preferência recrutada «em casa».


Uma abertura muito relativa

Na China e em Itália, nenhum estrangeiro conseguiu içar-se ao cargo de chefia de uma grande empresa. No Japão e em Espanha há apenas uma excepção, resultante da fusão de um grupo local com um grupo estrangeiro ou da aquisição de um pelo outro. Em França há duas multinacionais dirigidas por estrangeiros, nos Estados Unidos há cinco, na Alemanha há nove e no Reino Unido há dezoito. Mas também aqui esse número reduz-se muito se tivermos em conta somente os cidadãos de países exteriores ao espaço linguístico e cultural onde operam; neste último caso, são apenas dois nos Estados Unidos, quatro na Alemanha e seis no Reino Unido. Sabendo-se que as empresas que dirigem são quase todas bi-nacionais, o cenário de uma grande mestiçagem cuja vanguarda seria composta pelas elites económicas não corresponde a realidade nenhuma.

Não passará tudo isto de um conto de fadas para alunos das escolas de comércio ou um espantalho para alter-globalistas? […]

À medíocre mobilidade geográfica dos grandes patrões junta-se, no escalão inferior, uma imobilidade ainda mais notória. O caso da Alemanha é a este respeito muito eloquente. Entre os cerca de 400 presidentes de conselhos de administração e de super-visão das 200 mais importantes empresas alemãs, há apenas 29 cidadãos estrangeiros, 7% do total. E não sofrem muito, por certo, com essa expatriação, visto dois terços serem oriundos da Áustria, da Suíça, da Dinamarca ou da Holanda. Se descermos mais um escalão na hierarquia, constatamos que os directórios das empresas alemãs têm apenas entre 1% e 6% de estrangeiros dos quais uma boa metade são suíços ou austríacos.[4] […]





O imperativo de mobilidade e de «abertura ao mundo», tantas vezes brandido pelos círculos patronais, aplica-se aos seus assalariados, não a eles próprios. […]

A única virtude do slogan «elites cosmopolitas, povo local»[5] consiste em lisonjear os ouvidos dos homens de negócios.


Michael Hartmann
Sociólogo, Universidade de Darmstadt, Alemanha

Le Monde Diplomatique – edição portuguesa, Agosto de 2012




[1] Cf. Leslie Sklair, «The Transnational Capitalist Class», Blackwell, Oxford, 2001.
[2] «La surclasse», Le Monde, 7 de Março de 1996. Esse conceito limitou-se a adoptar o de  overclass, desenvolvido no ano anterior, mas de forma crítica, pelo autor americano Michel Lind.
[3] «UK’s Cameron: Britain Will “Roll Out Red Carpet” for French Business if Govt Taxes Them More», The Washington Post, 19 de Junho de 2012.
[4] Markus Pohlman, «Global ökonomische Eliten? Eine Globalisierungsthese auf dem Prüfstand der Empirie», Kölner Zeitschrift für Soziologie und Sozial-psychologie, nº 61, Colónia, 2009.
[5] Manuel Castells, The Rise of the Network Society. The Information Age: Economy, Society, and Culture, Wiley-Blackwell, Cambridge, 2009 [1996].