teologia para leigos

24 de agosto de 2012

EUROPA - UMA GRANDE ILUSÃO?

«Vocês fingem… nós fingiremos…»



«Quando as pessoas se referem a futuros membros para a adesão, dizem muito simplesmente, e sem corar, que um país a Eslovénia, a Polónia «vai aderir à Europa».

«Esta curiosa locução mostra bem até que ponto a Europa não é tanto um lugar, mas uma ideia (…). A emergência desta Europa hiper-real, mais europeia do que o próprio continente, uma projecção para dentro e para o futuro de todos os mais nobres valores da vetusta civilização, mas desprovida das suas qualidades mais negras, não se pode atribuir apenas ao aprisionamento da outra metade da Europa, a de Leste, sob regimes comunistas.

«Afinal de contas, não foram apenas as democracias populares que se mantiveram à parte desta nova «Europa», mas também a Suíça, a Noruega, e (até muito recentemente) a Áustria e a Suécia, exemplo de muitas das virtudes cívicas e sociais que os «europeus» têm tentado incorporar nas suas novas instituições.

«Se quisermos perceber as fontes e, como afirmarei, as limitações e quiçá os riscos desta «Europa» agora exibida perante nós como guia e promessa, teremos de retroceder até um momento no passado recente, quando as perspectivas de qualquer tipo na Europa se afiguravam especialmente sombrias.

«É um erro compreensível julgar, em retrospectiva, que a Europa Ocidental do pós-guerra foi reconstruída pelos idealistas de um continente unido.» [pp.15-16]

É com estas duras palavras que TONY JUDT [1948-2010], que foi professor de História nascido em Londres, e que leccionou em Cambridge, Oxford, Berkeley e na Universidade de Nova Iorque («Estudos Europeus»), abre o seu livro «UMA GRANDE ILUSÃO? – Um ensaio sobre a Europa» (Edições 70, Junho 2012, ISBN 978-972-44-1703-5, 14 euros). Capítulos: «Uma grande ilusão?»; «Abordagens de Leste»; «Adeus a tudo isto?»

O livro é uma assombrosa radicação no real da mais recente história política da Europa Ocidental e, sobretudo, da história económica: lê os acontecimentos políticos e sociais provendo-se dos dados económicos. Assim se percebe que a «construção europeia» é, de princípio ao fim, a expressão duma luta pela supremacia geo-económica e muito pouco a tentativa de originalmente erguer «uma comunidade internacional pacífica e próspera de interesses partilhados e partes que colaboram; uma "Europa do espírito", dos direitos humanos, da livre circulação de bens, ideias e pessoas, de uma cooperação e unidade cada vez maiores.» (p.16) Já quase no final das 148 páginas, o Autor diz:

«Tudo isto está agora a mudar. Tal como a obsessão com o «crescimento» deixou um vácuo moral no coração das nações modernas, também a qualidade abstracta e materialista da noção de Europa se revela insuficiente para legitimar as suas próprias instituições e manter a confiança popular. O mero objectivo da unificação não basta para inflamar a imaginação e a lealdade dos que, com a mudança, ficaram para trás, tanto mais que com essa unificação já não vem a promessa convincente de um bem-estar que se prolongaria indefinidamente. Desde 1989, tem havido um regresso à memória e com ela e dela beneficiando um renascimento das unidades nacionais que enformaram e moldaram essa memória e conferem significado ao passado colectivo. Este processo ameaça minar e substituir as imperfeições da Europa-sem-passado. Assim, durante muitos anos, em França ou na Alemanha, o discurso nacionalista foi desacreditado pela sua estreita associação com a memória e a linguagem do nazismo ou do regime de Pétain («Trabalho, Família, Pátria»)[1]. Esta autocensura quase que desapareceu, exceto entre a geração mais velha ou os intelectuais de esquerda, hoje praticamente ignorados. Após duas décadas em que a identificação com a Europa parecia estar a substituir a associação com a nação, as sondagens do «Eurobarómetro» dão a entender uma tendência inversa. Na Alemanha, Dinamarca, Espanha, Portugal e no Reino Unido, a maioria, ou quase, dos inquiridos em 1994 via-se, em anos vindouros, a identificar-se unicamente com a sua própria nação.

«Porquê? Em primeiro lugar, «Europa» é um conceito demasiado grande e nebuloso para em torno dele se forjar uma comunidade humana que seja convincente. E também não é psicologicamente realista propor, em termos como os que favorece Jürgen Habermas, uma dualidade local e supranacional de comunidades em torno das quais se formariam lealdades, à cautela desprovidas da ênfase perigosa na «identidade» que está associada à unidade nacional histórica. Não resulta. É também um eco da falácia redutivista, da curiosa crença oitocentista de que tantos os economistas clássicos como os marxistas partilhavam, de que as instituições e as afinidades políticas e sociais resultem, natural e necessariamente, das económicas. Não há dúvida de que a produção, o comércio e a finança estão hoje organizados globalmente, e que os organismos continentais e inter-regionais são o futuro provável da vida económica europeia. Mas não temos razão para crer que possa ou deva acontecer o mesmo com outros aspectos da existência humana. As redes de comércio cada vez mais harmonizadas e os laços comerciais por todo o império nada fizeram para manter unidos os componentes centrífugos da Áustria-Hungria em finais do século XIX.

«Nas últimas duas gerações, os europeus ocidentais perderam ou abandonaram muitas das tradicionais instituições integradoras da vida pública moderna. Quando comparado com há meio século, o papel da família, da Igreja ou do exército é hoje ínfimo na maioria dos países ocidentais. Os partidos políticos e os sindicatos já não desempenham a função pedagógica e organizativa que tiveram na Europa durante mais de um século. Ao mesmo tempo, as pressões económicas estão a tentar os governos a reduzir os benefícios da segurança social adquiridos, e estão a desaparecer os componentes essenciais daquilo que os Franceses chamam solidarité. Pode muito acontecer que a nação com a comunhão de memória que a representa e o Estado que a simboliza, com o seu enquadramento familiar e ajustado seja a única fonte colectiva e de identificação comunal que reste, e também a mais adaptável. Dado o colapso impressionante dos grandes objectivos universais e abstractos da utopia socialista, e da promessa insustentável de uma união continental cada vez maior e mais próspera, talvez as virtudes de uma unidade social baseada na proximidade geográfica e radicadas no passado, em vez de no futuro, tenham sido mitigadas. Seja como for, uma maior atenção às virtudes da nação e ao seu Estado, por parte dos políticos respeitáveis (e, por contraste, menos atenção às maravilhas da «Europa»), podem ajudar a recuperá-las dos braços dos seus pretendentes mais extremistas.

«De uma forma ou de outra, é muito provável que o Estado venha a ser necessário no futuro. Nos próximos anos, o Estado-nação convencional será muito solicitado para ajudar a preservar a estrutura social, seja pela coerção ou pela intervenção redistributiva, por muito impopular que isto seja nas «super-regiões» privilegiadas. Não foi só nos antigos Estados comunistas que as virtudes auto-reguladoras do mercado sem limitações parecem ter sido demasiado embelezadas. O tão vilipendiado «Estado intervencionista» pode ter sido deitado prematuramente para o caixote do lixo da história; talvez seja melhor não dividir, descentralizar ou reduzir muito, ou demasiado cedo, as suas capacidades. Os anos após a II Guerra Mundial assistiram à restauração impressionante das funções social e económica dos Estados-nação na Europa Ocidental, e este processo foi auxiliado pela «europeização» dos problemas; se a Europa se quiser manter à tona[2], os anos pós-1989 irão requerer a reabilitação da credibilidade política e cultural do Estado-nação.

«Afinal, não é como se o Estado-nação fosse uma forma política antiga que já tivesse perdido o seu fulgor. Na verdade, é a mais moderna das instituições políticas. Até as instituições políticas de países há muito constituídos, como a França, a Grã-Bretanha ou os Países Baixos, adquiriram a sua formação moderna e forma política durante o século XIX. E o Estado-nação está especialmente bem adaptado à necessidade moderna de responsabilidade cívica e participação política ativa e eficaz. As regiões subnacionais ou «microestados» inevitavelmente olham para lá das suas fronteiras à procura de aliados e ajuda que lhes permitam atingir objectivos para os quais não têm recursos internos. Ou então ficam vulneráveis a ser absorvidos por um país vizinho maior, mais agressivo e expansionista. As unidades transnacionais sobredimensionadas sofrem de um «défice democrático» perene precisamente a acusação a que está agora exposta a União Europeia e à qual ficará especialmente susceptível. Estas podem funcionar bem ou não   a administrar as coisas, mas quando toca a governar pessoas são demasiado grandes, demasiado distantes, e, por isso, desagregam-se inevitavelmente nas partes que as constituem. É bom assegurar que essas partes não estejam já irremediavelmente enfraquecidas.




«A fraqueza mais grave do Estado-nação é a sua qualidade implicitamente exclusiva: a França para os franceses, etc. Historicamente, este defeito característico tem sido a fonte do seu declínio. Os Estados multinacionais (Jugoslávia, Bélgica) desagregam-se; os Estados homogéneos de uma única nação (Polónia, Portugal) são produto incomum (por vezes trágico) da história e não podem ser inventados; as minorias «sem Estado» são geralmente fracas ou perseguidas, e procuram o seu próprio território, e isso terá de ser à custa do de outrem. Se a «Europa» fosse realmente uma solução para este dilema se se conseguisse a livre circulação de povos, a abolição de fronteiras e a mistura entre nações valeria certamente qualquer custo em termos de excesso institucional e desigualdade económica. Se a «Europa» significar uma solução verdadeira e definitivamente cosmopolita para o provincianismo paroquial e as culturas perigosamente exclusivistas dos Estados-nação, então seria um objectivo desejável, apesar de todas as suas imperfeições. Infelizmente, não é o caso. Longe de se abrir, desde 1989 que a «Europa» se tem vindo a fechar sobre si mesma, de modo gradual, ainda que furtivo.» (…)

«Esta longa história de expansão e contração ajuda a explicar porque motivo o atual dilema da Europa Ocidental dificilmente parece novo, e talvez até seja algo previsível. Em meados do século XVIII, já Herder alertava para o estrondo «dos povos selvagens da Europa de Leste», anunciando assim dois séculos de medo alemão de imersão demográfica.[3] A prevista «invasão» do Sul da Europa por refugiados e gente desesperada que procura emprego, vindos do Norte de África, do Médio Oriente e dos Balcãs, há décadas que tem sido tema recorrente de textos conservadores e nacionalistas em Espanha, França e Itália. O que talvez seja novo é que europeus do Sul e do Norte juntaram não só os seus recursos, mas também os medos. A França e os seus amigos mediterrânicos concordaram em ser compreensivos face aos receios da Alemanha relativamente ao futuro da Europa Central, e a Alemanha consentiu no aumento da ajudada da Europa ao «Sul», para incentivar e ajudar os países não-europeus da orla mediterrânica a manterem os seus problemas em casa.

«Com ou sem aviso a Europa mimada, amnésica, dos anos 1949-1989 continua em grande parte a ignorar os sinais da crise iminente. Pôde continuar a fazer todo o tipo de promessas, porque corria muito poucos riscos de que acreditassem no que afirmava. Foi a rápida sequência de acontecimentos em 1989 que fez o processo posterior de compressão parecer algo duvidoso, com a compulsão de continuar a ter grandes perspectivas de futuros alargamentos a esbarrar na noção premente de dificuldades iminentes e a necessidade de retirar para a «fortaleza Europa».[4]




«Seja o que for que isto signifique, indica claramente que a ideia de «Europa» teve o seu tempo na sua forma mais forte. O seu lugar no nosso atual dilema político é comparável, em traços largos, aos dos órgãos rudimentares sobre os quais Charles Darwin escreveu em A Origem das Espécies, afirmando que «podem ser comparados com as letras numa palavra: ainda constam da escrita mas tornaram-se inúteis na pronúncia, sendo todavia úteis como pista quando se procura a derivação». [pp.117-122.125-127]

Pb\


Nota: «Vocês fingem… nós fingiremos…» é uma expressão que vem na página 90 e pretende resumir o estado de espírito com que franceses e alemães reconstruíram as suas vidas após a queda do muro de Berlim em 1989. «A essência do condomínio franco-germânico em torno do qual se construiu a Europa consistia num acordo de conveniência mútua: que os Alemães teriam os meios económicos e os Franceses a iniciativa política.» (…) «A premissa tácita das relações da França com a Alemanha Ocidental era esta: vocês fingem não ser poderosos e nós fingiremos não reparar que o são.»




[1] Faz recordar o slogan «Deus, Pátria e Autoridade» da ditadura portuguesa. Salazar: «Não se discute Deus, não se discute a Pátria, não discute a Autoridade». [Nota do editor]
[2] Para o argumento de que a Comunidade Europeia foi criada, em termos funcionais, para salvar as economias nacionais dos seus membros, ver ALAN MILWARD, «The European Rescue of the Nation-State» (Berkeley e Los Angeles, 1992).
[3] Ver Larry Wolf, Inventing Eastern Europe: The Map of Civilization on the Mind of Enlightenment (Stanford, 1994), p. 365ss. Wolf também cita a obra de William Sloane (The Balcans: A Laboratory of History, 1914), que avisava que viria «a ser imposto à Europa Ocidental» um tipo de união mais estreita para se proteger de uma invasão hostil de uma civilização inferior composta por eslavos, católicos gregos e governo oriental».
[4] «Quanto mais a nossa península retrocede para o centro da política e do mercado, mais terreno um novo tipo de eurocentrismo irá ganhando. Uma expressão da autoria de Joseph Goebbels reapareceu no debate público: ‘Fortaleza Europa’. Em tempos foi usada na sua acção militar; regressou como conceito económico e demográfico. Uma Europa em renovação faria bem em lembrar-se de uma Europa em ruínas, da qual está separada por apenas algumas décadas» (H.-M. Enzensberger).