teologia para leigos

27 de julho de 2011

OS CATÓLICOS PORTUGUESES E A EXPLICAÇÃO DA CRISE


«como lês [Lucas 10:26]





Na semana passada, duas figuras relevantes do mundo católico português deram voz a perspectivas diametralmente opostas sobre a crise. No Prós e Contras, João César das Neves assume a narrativa da remissão dos pecados pela travessia do fogo da austeridade, segundo a qual os países que caíram na malandragem devem penar e purificar-se: «quem tem dívidas tem que as pagar, tem que apertar o cinto». Isto é, as disfuncionalidades da governação económica da UE não contam, a crise e os movimentos especulativos do capital financeiro não interessam, o impacto diferencial da abertura dos mercados europeus aos bens transaccionáveis é despiciente, a iniquidade na distribuição dos sacrifícios não é relevante e o ciclo vicioso da austeridade é uma minudência.


J. César das Neves e a sua «teologia económica da culpa» justiceira...



É tudo muito simples: trata-se de culpa colectiva indiferenciada e de expiação necessária. A vida quotidiana, sobretudo dos mais afectados pela injustiça da austeridade, não é um dado do problema. Para César das Neves, a economia de mercado constitui uma espécie de força da natureza (com leis que funcionam tanto melhor quanto menos o Estado e as políticas públicas nela se intrometerem), a que todos se devem adaptar e submeter, sem desculpas nem justificações.

À escala comunitária, o professor da Universidade Católica advoga que os países em risco de incumprimento (como Portugal e a Grécia) devem resolver sozinhos os seus problemas (invocando para este efeito o exemplo da Califórnia, cuja situação de falência teria supostamente que ser ultrapassada sem ajudas federais de nenhuma espécie).

À escala nacional, César das Neves recorre ao mantra do Estado preguiçoso e gastador, sentenciando que «temos um sistema de saúde pior que os outros e que gasta mais que os outros per capita» (não cuidando contudo de explicar como diabo teremos conseguido - entre outros méritos - que a taxa de mortalidade infantil passasse de 77,5‰ em 1960 para 2,4‰ em 2010, uma das mais baixas do mundo). (*)



D. Januário Torgal Ferreira e a justiça cristã da compaixão

 
Perante a frieza estratosférica do raciocínio de César das Neves, vale a pena ouvir a entrevista de Januário Torgal Ferreira à RTPN. Quando a jornalista Sandra Felgueiras lhe pergunta se o país está a viver um clima de medo e de fome, a resposta é lapidar: «claro que está... e de fome em muitíssimas situações», acrescentando a importância de serem criadas «soluções que não podem ser de forma alguma de caridade, neste sentido de assistencialismo». Sobre o impacto desigual da austeridade, o Bispo das Forças Armadas não hesita: «eu não vou aqui silenciar o que penso, nunca... (...) eu não posso compreender como é que instâncias altamente rentáveis e, neste país, com dinheiro, que não haja um sentido de justiça».


 Post por Nuno Serra
(*) No próprio programa Prós e Contras, Ricardo Paes Mamede e João Ferreira do Amaral encarregaram-se de repor a verdade relativamente ao exemplo da Califórnia, lembrando os dispositivos federais de apoio social e os investimentos militares. No Jugular, Mariana Vieira da Silva demonstra a circunstância de Portugal se encontrar, na realidade, abaixo da média da OCDE em despesas de saúde per capita.

25:VII:201
blog «Ladrões de Bicicletas»