teologia para leigos

2 de julho de 2011

AUTORIDADE E IGREJA - QUEM É QUEM

Edificação da Igreja:
pedra fundamental e pedras de tropeço



Igreja da Stª Trindade - Fátima


O texto de Mateus 16,18 - "Tu és Pedro e sobre esta pedra edificarei a minha igreja” - foi tirado de seu contexto para justificar uma teologia ainda não existente à época de Jesus. Não só o termo igreja foi erroneamente interpretado, como também o jogo de palavras petros e petra não costuma ser correctamente considerado. Busquemos ler o texto no seu contexto para que também não sejamos "pedra de tropeço" (Mt 16,23)


1. Sobre o sentido da palavra "Igreja" 


O termo igreja vem do grego ekklesía que, literalmente, significa assembléia. É derivado da junção entre a preposição ek (de, fora de) e o verbo kaléo (chamar, convocar). Já na tradução grega do Antigo Testamento (a chamada versão dos LXX), é usado para traduzir o hebraico kahal. Lemos, por exemplo, no Salmo 22,26: "De ti vem o meu louvor na grande assembléia; cumprirei os meus votos na presença dos que o temem". O sentido original do termo, entretanto, não é estritamente religioso e, sim, político. A ekklesía era a assembléia dos cidadãos, reunida para definir os rumos da pólis, da cidade grega. Logo, ao participar da ekklesía, os cidadãos estavam fazendo política (cuidando da pólis). Antigos escritores gregos como Heródoto, Xenofontes e o próprio Platão fazem uso do termo, bastante comum em Atenas, onde os líderes políticos (cidadãos) se reuniam em ekklesía diversas vezes ao ano.
É muito interessante que a comunidade cristã tenha escolhido esse termo para falar do projeto do Reino: foi para viver uma nova ekklesía que Jesus chamou seus discípulos e suas discípulas. De alguma forma, nem a sinagoga judaica nem a ekklesía grega eram suficientes para expressar a novidade proposta pelo movimento de Jesus. Um conteúdo novo, no entanto, deveria ser acrescentado ao termo ekklesía, que, por ser bastante conhecido no mundo político. 


2. Minha igreja é a única fundada por Jesus Cristo?


Quando restringimos o uso do termo igreja a uma instituição religiosa, por mais que isso soe comum aos nossos ouvidos, estamos empobrecendo o seu sentido. Pior ainda quando queremos aplicá-lo somente a uma das ramificações do Cristianismo, seja ela qual for. Infelizmente, é bastante comum nos dias de hoje nos depararmos com as mais variadas confissões cristãs, afirmando serem cada uma delas igreja verdadeira. Por mais que nos esforcemos por entender a conjuntura e a carga histórica por trás dessas afirmações, não deixa de ser ruim para o reconhecimento da riqueza da pluralidade na construção da unidade. Também continua sendo desagradável escutarmos frases como "minha igreja é a única fundada por Jesus Cristo". Além de ser empecilho para o diálogo, a afirmação é, acima de tudo, um erro histórico, até porque, mesmo após a morte de Jesus, os primeiros grupos de seguidores e seguidoras continuaram frequentando o Templo [de Jerusálem], sede da religião judaica (Lc 24,53; At 2,46; 3,1). Ou seja, se Jesus tivesse fundado uma outra instituição religiosa, porquê seus seguidores teriam continuado a frequentar o Templo judaico?
O surgimento de uma religião diferente, ainda que herdeira do Judaísmo, ocorreu de forma gradativa a partir dos anos 40 (At 11,25-26), consolidando-se com a ruptura entre o Judaísmo farisaico e o judeu-cristianismo, depois dos anos 80, quando o templo de Jerusalém já havia sido destruído. Bem sabemos que a Igreja, enquanto projeto de vida e proposta de vivência fraterna, foi fundada por Jesus, sob a ação do Espírito Santo (At 2,1-12). Mas apenas podemos falar em nascimento de igrejas, enquanto instituições separadas do Judaísmo a partir da primeira geração de discípulas e discípulos de Jesus. Por mais que tenham sido utilizadas no decorrer da história, não se justificam teologias que afirmam que apenas uma igreja é verdadeira. O projeto tinha elementos comuns, como a fé no Crucificado/Ressuscitado (1Cor 15,38) e o serviço aos pobres (Gl 2,10), mas as experiências de Cristianismo foram plurais desde o início. 


Como entender, então, a frase "Tu és Pedro e sobre esta pedra edificarei a minha igreja" (Mt 16,18)? Trata-se, infelizmente, de um verso bíblico muito utilizado fora de seu contexto. É preciso observar o jogo de palavras em torno do termo pedra e o papel que a autoridade recebe para depois nos perguntarmos sobre o que poderia significar a edificação da igreja.


3. Pedra fundamental ou pedra de tropeço?


Era comum, na sociedade judaica, as pessoas possuírem dois nomes, muitas vezes um hebraico e outro greco-romano. Além disso, mudar o nome de uma pessoa também significa dar-lhe uma nova função. Encontramos, por exemplo, Abrão - "pai das alturas", tendo seu nome mudado para Abraão - "pai de povos" (Gn 17,5); Sarai passa a ser Sara, uma outra forma de se dizer princesa (Gn 17,15). José (Deus acrescenta, ou Deus cumula de bens), é também chamado de Barnabé, "filho do consolo" (At 4,36). Saulo (Shaul, em hebraico) prefere ser chamado de Paulo, a variante greco-romana do mesmo nome (At 8,1.3; 9,4; 13,9; Rm 1,1). E assim por diante. No caso de Pedro, seu nome hebraico é Simão (na raiz, está o verbo shemá, escutar). De acordo com o relato do Evangelho segundo João, Jesus teria lhe acrescentado o nome de Cefas: "Tu és Simão, filho de João; chamar-te-ás Cefas" (Jo 1,42). Em aramaico, Cefas significa pedra. O termo se parece com grego é cefalé, cabeça (daí, por exemplo, cefaléia, em português).


No texto de Mateus 16, Simão é chamado de Petros. O grego petros, na maioria das vezes, significa pedra ou pedregulho, algo que se pode pegar e lançar. Ao passo que petra significa a "rocha onde se assenta o edifício”. O jogo de palavras é notável: "Tu és Pétros e sobre esta petra edificarei a minha igreja". Pedro é a pedrinha, o pedregulho. Mas quem ou o que é, então, a rocha, a pedra fundamental?


É bom recuperar aqui a teologia de Isaías: "Portanto, assim diz o Senhor YHWH: "Eis que eu coloco em Sião uma pedra, pedra já provada, pedra preciosa, angular, de alicerce, bem firmada; quem nela se apoia não será abalado" (Is 28,16). Com base nesta afirmação é que a Primeira Carta de Pedro não hesita em afirmar que Cristo é a pedra: "Desejai, como crianças recém-nascidas, o leite espiritual, não adulterado, para crescerdes sadios, já que provastes como o Senhor é bom. Ele é a pedra viva, rejeitada pelos homens, mas escolhida e estimada por Deus" (1Pd 2,2-4). "A pedra que os construtores rejeitaram tornou-se a pedra angular" (Sl 118,22), afirma ainda a Carta de Pedro (1Pd 2,7).
É evidente que a pedra é Jesus e seu projecto. É "o Cristo, o Filho do Deus vivo", fundamento a que Pedro havia se referido dois versículos antes (Mt 16,16). Pois, como Paulo, Pedro entendia que Jesus é o único fundamento da Igreja (1Cor 3,11). Mais adiante, no mesmo Evangelho segundo Mateus, o próprio Jesus faz uso do Salmo 118, quando debate com os chefes dos sacerdotes e os líderes do povo. Depois de contar a parábola dos vinhateiros homicidas, que matam o filho do proprietário da vinha, pergunta: "Nunca lestes nas Escrituras: A pedra que os construtores rejeitaram, tornou-se a pedra angular?" (Mt 21,42). Ou seja, o próprio Jesus, na descoberta da missão que o Pai lhe concedeu, tem consciência de que é ele a pedra principal.


E a nós, membros da comunidade, nos mais variados níveis de autoridade que exercemos, permanece o convite para sermos também pedras vivas desta construção colectiva. 


O livro de Isaías também já havia alertado: quem não se mantém fiel ao projeto de Deus, torna-se pedra de tropeço, pedra de escândalo (Is 8,14). Voltemos, então, ao texto de Mateus 16. Não podemos parar a leitura no versículo 20, tendo em vista que o jogo de palavras em torno da imagem da pedra continua nos versos 21-23. O texto vai dizer, a seguir, que a autoridade pode se tornar pedra de tropeço. Jesus faz uma crítica à figura de Pedro: por não pensar as coisas de Deus, mas as coisas dos homens, aquele que pouco antes havia sido chamado de bem-aventurado é, agora, pedra de tropeço (Mt 16,23). O texto grego usa a palavra skândalon, que literalmente significa obstáculo, armadilha, pedra de tropeço.


4. A liderança não deve assumir o lugar da pedra angular


Qual é, afinal, o papel da liderança na igreja? O que significa ligar e desligar? A propósito, é importante lembrar que a mesma autoridade que Pedro recebe em Mateus 16,19, toda a comunidade de discípulos e discípulas também recebe em Mateus 18,18. Qual é, portanto, a nossa missão? Qual é a missão da igreja? Com certeza, não é querer assumir o lugar da pedra fundamental. Não somos a pedra angular, como Pedro também não o foi. 


O autor da Carta aos Efésios também faz questão de explicitar: Cristo Jesus é a pedra angular (Ef 2,20). Cada vez que uma pessoa ou instituição se assume como a rocha, a pedra fundamental, o que ela se torna é pedra de tropeço (skândalon). Somos chamadas e chamados a sermos pedrinhas vivas, para em nossa humildade, colaborarmos na edificação da Igreja.


E se alguém quiser ser pedra de tropeço (skândalon) para quem é pequenino, melhor amarrar uma pedra bem grande no pescoço (a pedra do moinho) e se lançar ao mar (Mt 18,6). Em outras palavras, é melhor deixar a comunidade!


Edmilson Schinelo, 30 de Junho de 2011