Crise do Crédito de Risco (dos subprimes),
um negócio criminoso?
Jean-François Gayraud |
O banco Goldman Sachs recebeu recentemente uma citação para comparecer perante o procurador de Nova Iorque devido ao papel ambíguo durante a crise dos subprimes. Será que se perfila, enfim, um inquérito penal?
Desde o início desta crise, a finança americana assemelha-se, com efeito, a uma gigantesca “cena de crimes". Contudo, as fraudes maciças que deram origem ao desencadear da maior crise financeira desde há um século aguardam ainda os seus procuradores, os seus polícias e os seus juízes. A explicação de um fenómeno macroeconómico pelo crime pode parecer irrisória, anedótica ou até mesmo ingénua. A opinião publicada - a das elites que têm acesso aos meios de comunicação social - apressa-se, como sempre, a diabolizar uma perspectiva tão incómoda, agitando cómodos espantalhos : a teoria da conspiração, a teoria de bodes expiatórios, o efeito de diversão, o populismo. Todos querem impôr uma amável visão das causas da crise através de explicações fatalistas (a teoria dos ciclos), mágicas (uma catástrofe) ou estimulantes (disfuncionamentos dos mercados).
No entanto, poucas crises financeiras na história comportaram uma dimensão criminosa tão evidente, uma tal massa crítica de fraudes. Estes especialistas da negação são frequentemente aqueles que, durante as décadas da euforia (1980-2000), estavam cegos pela anomia crescente dos mercados financeiros. Ontem foram incapazes de antecipar a crise, hoje apressam-se a dissimular os seus aspectos mais chocantes, o que significa, dos dois lados do Atlântico, a falência quase generalizada dos peritos universitários e mediáticos.
Ora esta cegueira só pode preocupar aqueles que ainda são dotados de memória histórica, mesmo por muito pouco que esta seja. Com efeito, nos anos 1980, a América já tinha sofrido uma primeira grande crise financeira de forte “odor criminoso” com a falência das caixas de poupança. Por falta de ter sabido tirar as verdadeiras lições desta primeira tragédia da desregulação dogmática dos bancos, a América condenava-se a uma recaída dolorosa. A cegueira generalizada e a desregulação depredadora encontra a sua origem na ideia de que os mercados são omniscientes e auto-reguladores. Por outras palavras, que a sua “mão invisível” é quase infalível. Inchado e arrogante com este pressuposto, o lobby financeiro de Wall Street pode-se ligar: - se estes os comprarem - aos eleitores sempre disponíveis se não mesmo convencidos; a míopes professores às vezes ávidos de colaborações remuneradas; a analistas simpatizantes, friendly; e a jornalistas enredados na complexidade da matéria e pela pertença da maior parte dos meios de comunicação social aos grandes grupos de capitalistas.
Nos factos, esta crise foi um teatro de fraudes, ao mesmo tempo, maciças (sistemáticas) e integradas nos mecanismos financeiros (sistémicos). Fraudes que puderam eclodir apenas pela graça de uma desregulação dogmática dos mercados financeiros, pensada e depois realizada desde os anos 1980, tanto pelos republicanos como pelos democratas. Sendo portadora de incitações e de oportunidades criminosas inéditas, a desregulação teve de facto este efeito criminoso; o que explica porque é que estes comportamentos ilícitos têm podido espontânea e mecanicamente eclodir ao longo da complexa e opaca cadeia financeira americana, à maneira dos enxames de abelhas e das matilhas.
Estas fraudes foram determinantes em três níveis: a montante, com os empréstimos ditos “depredadores” ou “mentirosos”, difundidos no interior da franja mais vulnerável da sociedade americana (pobres, minorias étnicas, pessoas idosas e deficientes). Estes empréstimos foram mesmo qualificados pelos profissionais da indústria financeira como sendo “empréstimos de neutrões”, subentendendo-se: estes empréstimos são armas que irão destruir as famílias e deixar as casas intactas. Tanto cinismo linguístico reduz a nada as tentativas de defesa a posteriori sobre o tema da ignorância ou da incompetência.
A jusante, as fraudes têm a ver com os produtos titularizados que foram vendidos pelos grandes bancos de investimento de Wall Street. Aí, estes bancos entregaram-se a múltiplos comportamentos enganosos: engano sobre o nível de risco, manipulação dos balanços, manipulação das cotações em baixa, etc.
No meio do processo, as três grandes agências de notação - das quais uma é francesa - agem em reguladores de facto, num pântano “de conflitos de interesses”, um eufemismo que hoje já não engana ninguém. Estas agências são juízes e partes interessadas dado que 'notam' produtos financeiros que elas mesmas contribuíram para estruturar. Ora esta crise vem “de cima”, os defraudadores pertencem geralmente às elites da sociedade americana. Estamos pois longe de uma criminalidade organizada clássica, estamos, aqui, perante uma criminalidade de “colarinhos brancos", integrados no sistema e dispondo de todos os instrumentos para poderem fazer desaparecer até mesmo a ideia dos seus crimes.
Esta crise financeira, largamente criminosa, coloca de novo à luz do dia o novo equilíbrio dos poderes nos Estados Unidos entre o poder político (Washington) e o poder financeiro (Wall Street): depois do “complexo militar-industrial” denunciado pelo presidente Eisenhower (1961), “um complexo politico-financeiro” ter-se-à ele imposto nos Estados Unidos?
Porque é que até agora, nenhum banqueiro foi condenado por crime, tendo sido negociadas, apenas, indemnizações civis? Além disso, o plano de salvamento federal realizou-se unicamente para benefício de Wall Street.
O que pensar, afinal, de um sistema que recompensa tão abertamente a predação? A impunidade continua a ser um potente estímulo para a recidiva, quer se seja ladrão de bancos ou banqueiro ladrão (“bankster”).
Exageros, dir-se-á ?
Os cépticos deveriam ler os dois relatórios do Congresso dos Estados Unidos que foram publicados desde o início de Janeiro de 2011:
&
As quase 1 300 páginas não deixam nenhuma dúvida: a fraude aí está, de maneira indiscutível, a ser o fio condutor desta crise.
Jean-François Gayraud, chargé de mission au Conseil supérieur de la formation et de la recherche stratégiques, commissaire divisionnaire [«La crise des subprimes, une affaire criminelle?», Le Monde, 13.06.11]
publicado por Luis Moreira
enviado por Júlio Marques Mota
04:VII:2011 em: