teologia para leigos

1 de julho de 2011

JESUS DIANTE DA CATÁSTROFE DO SEU TEMPO 2/2


Jesus
judeu de um ‘Deus maior’


Igreja da Stª Trindade - Fátima [porta principal]



2.  O Deus maior


Na hora de terminar, vou fazê-lo pedindo emprestadas as palavras, não de um exegeta, nem de um historiador, mas de um autor espiritual contemporâneo. Uma vez mais me convenço que aquelas pessoas que assimilaram espiritualmente a mensagem de Jesus e que se deixaram modelar por ele são as que possuem uma maior agudeza visual para descobrir os simplicíssimos traços do seu perfil mais característico.

Num pequeno livrinho, Éloi Leclerc descreve a itinerância de Jesus como o traço definidor da sua personalidade, aquele que (…) nos traz a resposta mais relevante às grandes questões do cristianismo de hoje [E. Leclerc, El Dios Mayor, Santander, Sal Terrae 1997].

Nesta obra, Leclerc apresenta Jesus profundamente enraizado na sua cultura e religião judaicas, precisamente, naquilo que foi o húmus nutritivo no qual nasceu, cresceu e fielmente permaneceu durante toda a sua vida. Nada nasce do zero! Os desenraizados não podem crescer! A abertura faz-se sempre a partir de um ponto de partida. Jesus amava profundamente o seu povo e, com ele, partilhava o seu amor ao Deus único, a sua paixão pelo Reino, o seu zelo pela Lei. A sua vida de oração alimentava-se do Saltério. Por isso se manteve fiel à tradição de Israel no que isso tinha de mais particular. O segredo da sua itinerância residia na sua intimidade com o Pai, um Deus que se revela como mistério de «relação».

«Indo aos homens, nesse mesmíssimo movimento ia até ao mais íntimo de si mesmo e também até ao último, ao definitivo: sumia-se na proximidade do Pai que, de luz, preenchia o centro da sua vida. Quanto mais se abeirava dos distantes, tanto mais comungava da proximidade do Pai». [ibidem, p. 70]

Ir aos outros era penetrar no mais profundo do Pai, um Deus sempre maior, maior que a Lei, maior que Israel, maior que o coração do homem, um Deus sem arribas, que não tem outro rosto se não o do «outro».

Jesus nunca se considerou um dissidente, um herege, mas o herdeiro das grandes figuras de Israel e do seu património e esperanças. «A sua consciência filial, a sua experiência única da paternidade de Deus, assim como a sua missão, longe de o afastar do judaísmo situam-no bem no coração da história do seu povo». [ibidem, p.79]

Jesus, fiel à sua missão, desenvolveu-a no sei do judaísmo e sentiu-se chamado pelo povo judeu, em especial pelas ovelhas desgarradas [Mt 15:24]. Mas, ao dirigir-se a esses israelitas marginalizados, aos pequeninos e humilhados, Jesus entrou por uma via não mapeada que lhe deu a conhecer um ‘Deus maior’ que refulge na pessoa do «outro», e que não se deixa enclausurar por culturas, tradições e leis.

Leclerc descreve-nos esse Jesus itinerante como alguém sempre em movimento, sem covis, nem ninhos. Alguém que está de passagem e, ao passar, não se detém, nem se deixa deter [Jo 20:17], porque permanece em viagem «para a outra margem» [Mc 4:35; 5:21; 8:13].

«E todo o bem que fazia era assim que o fazia, “ao passar”. Claro que, ao curar enfermos ou a alimentar a multidão faminta, estava presente, estava muito próximo aos homens e às suas necessidades materiais imediatas. Mas nunca se deixava aprisionar dentro das expectativas do povo. Partia das suas necessidades materiais para os levar mais longe, para suscitar neles outro tipo de fome. As suas acções humanitárias não eram só milagres de bondade e compaixão – eram também sinais». [ibidem, p.68]

Leclerc faz-nos compreender que alguém que esteja sempre de passagem é incómodo e acaba por tornar-se suspeito; pode chegar a ser considerado trânsfuga e traidor. Jesus tinha ido longe de mais, havia saltado fora das marcas e dos trilhos. Empreendera um êxodo segundo um percurso que conduzia àqueles que a sociedade rechaçara [Lc 9:30-31 – A Transfiguração, em que Jesus surge conversando com Moisés e Elias, profetas esquecidos pelo poder religioso]. Nunca os responsáveis oficiais do judaísmo poderiam compreender tal excesso. Viam-no como uma ameaça à sua identidade, às suas tradições, à sua autoridade. «Para eles, a Lei convertera-se numas palas de segurança, convertera-se na sua última e absoluta salvaguarda. A Lei era fronteira que dividia a humanidade em dois campos: os bons e os maus, os eleitos e os excluídos.». [ibidem, p.53]

Mas, quanto mais Jesus se vê excluído e réprobo, é quando mais se volta para Israel, a fim de encontrar aí as forças que lhe fazem falta para continuar o caminho por essa terra de ninguém.

«Quando, por um excesso de abertura, o seu caminho se desvaneceu ou desapareceu e o silêncio do abandono e da morte o envolveu por todos os lados, foram a fé e a esperança do seu povo que continuou a sustentá-lo. As suas raízes, as quais nunca renegara, protegeram-no da sua «itinerância» vadia e também do desespero. Mas nem sempre Deus nos espera ali onde estão as nossas raízes. Quanto mais nos arriscamos indo aos outros, tanto mais nos devemos aferrar às nossas raízes. No momento em que ele foi rejeitado por todos e até o próprio Pai se retirou de «por perto», Jesus encontrou o seu último apoio e a sua última esperança na fé e na esperança de Israel [Sl 22]». [ibidem, p.126]

Contudo, a distância que Jesus teve que manter face à religião institucional de Israel não procede de uma atitude negativa. «Jesus, de facto, não se apresenta como um reformador, como um contestatário, mas como o mensageiro de uma Boa Notícia. Mais do que denúncia, anúncio (…) A força silenciosa do mundo novo que chega, antes de ser uma crítica e uma contestação, é vida que transborda, se derrama e expande» (…) «Ver no evangelho um protesto é apoucá-lo, é fazer dele uma ideia muito pobre». [ibidem, p.50]

Jesus não é um contestatário rebelde. Não pretende dar lições a ninguém!

Jesus apercebeu-se como crescia, ao seu redor, a contestação a si próprio. Mas nem por isso se considerou fora da instituição. O seu distanciamento era da ordem do excesso e da abertura. O seu anúncio da Boa Nova tornou-se festa e libertação, e não apenas protesto contra a ordem estabelecida. É por isso que o seu distanciamento é profundamente criativo.

Jesus pretende ser o propulsor de uma abertura dentro do Judaísmo. Ele está convencido que há que introduzir, no sistema, uma brecha, que mais não é do que «a ferida do outro», a ferida do que é diferente. Para Jesus, a maneira de nos salvarmos não é dobrar-nos sobre nós próprios e sobre a nossa identidade, mas abrir-nos e tornarmo-nos portadores da nova proximidade de Deus.

«As raízes, por muito necessárias que sejam, não são suficientes. São mães que ‘dão à luz’, mas que também podem oprimir e asfixiar. O que elas contêm de verdade só matura quando o ser humano aceita a ferida da relação com o outro e se expõe à corrente da história, a qual, na sua diversidade, é a notícia dum Deus “maior”». [ibidem, p. 126]


JM Moreno
UP Comillas