«a saúde na crise: o que está em jogo», por João Arriscado Nunes, CES e FEC de Coimbra
Saúde – bem inegociável ou rentável?
«Se pago impostos, não é também para provir à assistência médica de que venha a necessitar?»
«Se pago impostos e ‘Taxas Moderadoras’ não estou a pagar duas vezes impostos?»
«Os impostos que pagamos, são para quê?»
O jornal Le Monde Diplomatique, em português, edita este mês um artigo do Prof. João Arriscado Nunes, sociólogo do CES-Faculdade de Economia de Coimbra, que tem o dom de nos colocar diante dos argumentos com que dois modelos de prestação de cuidados de saúde se digladiam na hora que passa.
Facilmente percebemos que, por trás deles, estão dois modelos de vida em sociedade que disputam o uso a dar ao dinheiro dos impostos: em suma, ao nosso ‘dinheiro social’.
Há duas fases da nossa vida em que precisamos mais intensamente de cuidados de saúde: desde o dia em que começamos a existir (?) grosso modo até aos 20-25 anos e, depois, dos 60 anos até à morte. São, precisamente, os dois períodos da nossa vida em que produzimos pouca ou nenhuma riqueza! Ou seja, são duas fases em que precisamos uns dos outros como nunca… O Estado Social nasce desta e doutras evidências como esta… O Sistema Nacional de Saúde também.
Eis, segundo o Prof. João Arriscado Nunes, os argumentos que se usam para defender os modelos em jogo.
A-«O assalto aos sistemas públicos de saúde é justificado através de três tipos principais de argumentos:
1. A protecção da saúde não é um bem público e, por isso, os cuidados de saúde devem ser considerados como bens a que se deve aceder segundo o princípio do utilizador-pagador, sendo o acesso gratuito reservado aos que não podem pagar.
2. A prestação de cuidados de saúde deve ser avaliada em termos de custo-benefício, sendo a promoção da sua racionalização e eficiência uma necessidade urgente, a que só é possível responder através da imposição ao sector público da disciplina do mercado.
3. A sustentabilidade (financeira) dos sistemas de saúde depende de o Estado social se tornar «inteligentemente selectivo» - abandonando-se, de facto, o princípio do acesso universal aos cuidados de saúde, financiado pelas contribuições e impostos dos cidadãos e garantido através de uma lógica solidária e de redistribuição, em favor de uma lógica de assistência. Os remédios propostos passam, invariavelmente, pela privatização (sempre anunciada como parcial e selectiva) da prestação de cuidados, mesmo quando financiados pelo Estado, de uma ampliação da oferta privada e do estímulo à concorrência. Por sua vez, a ideia de que o acesso aos cuidados de saúde deve ser pago em função da condição económica dos utentes, e que assim seria possível orientar mais recursos públicos para os utentes com menores rendimentos, é apresentada, frequentemente, como uma medida justificada por uma preocupação de equidade e de justiça social. A ela está associada a preocupação com a criação de mecanismos de «moderação» (como as taxas moderadoras) do acesso a serviços públicos, a fim de desincentivar os «abusos» ou usos indevidos ou injustificados destes.»
B-«Os críticos das receitas neoliberais consideram que estas resultam no desmantelamento ou, pelo menos, na acentuada degradação dos sistemas públicos de saúde, aquilo que no Brasil se designa de sucateamento: uma redução dos recursos públicos alocados a esses sistemas, que comprometem tanto a sua capacidade de garantir acesso aos seus utentes e de lhes prestar certos tipos de cuidados diferenciados envolvendo recursos mais onerosos, como a própria qualidade dos serviços prestados.
«A fuga das pessoas com mais recursos para o sector privado, por sua vez, assume muitas vezes a forma de financiamento público da prestação privada de cuidados. Desse modo, a menor qualidade e eficiência dos serviços públicos torna-se uma profecia auto cumprida e uma «evidência» que legitima o discurso privatizador. O sistema de saúde público tende, assim, a tornar-se um sistema orientado para a assistência aos mais pobres e cada vez mais pobre em recursos.»
«Este processo é inseparável da promoção da concepção da própria saúde como um mercado em expansão e como um sector da economia altamente lucrativo. A argumentação a favor da coordenação ou regulação da saúde pelo mercado, porém, tropeça em duas questões que são raramente colocadas de maneira clara e inequívoca nos muitos relatórios e publicações que pretendem demonstrar a superioridade do mercado sobre a redistribuição pelo Estado.»
«A primeira dessas questões é a ausência de discussão sobre os modos e critérios de avaliação da eficácia dos sistemas de saúde ou dos serviços de saúde. (…) evita-se tratar o problema da missão e dos objectivos dos sistemas de saúde (…).»
«Esta questão, por sua vez, leva-nos a uma outra, que tem a ver com as opções no plano político e ético que permitem definir o que significa justiça, equidade e direito quando falamos de saúde. Os sistemas públicos de saúde assentam, em geral, no princípio da igualdade de todos os cidadãos no acesso a cuidados de saúde e na ideia de que esse princípio exige que o acesso aos cuidados e a sua qualidade sejam os mesmos para todos, independentemente de diferenças de classe, rendimento, sexo, raça, etnia ou orientação sexual.»
«O financiamento do sistema assenta, por sua vez, no princípio da redistribuição dos recursos públicos, resultantes de impostos e de outras contribuições obtidos através de sistemas fiscais caracterizados pela progressividade.»
Para quem está no ‘sistema’ (de saúde público), é evidente a desorganização total do Estado para com os organismos que tutela: veja-se o comportamento das ‘ERS’s’ [ERS - Entidade Reguladora da Saúde] em matéria de verdadeira fiscalização; veja-se a facilidade como se empresarializam os ‘objectivos’ dos hospitais públicos; o modo como se contratualizam funcionários e serviços ao exterior; a absoluta falácia em matéria de taxas moderadoras que nunca moderaram nada, só sugando ainda mais o utente; o modo como se fazem pagar os administradores hospitalares; a vergonhosa subvalorização dos cuidados de saúde primários e da educação para a saúde com escandalosas promoções financeiras e mediáticas das chamadas «tecnologias de ponta» (implantes, transplantes, etc. num país em que a taxa de problemas dentários e obesidade é uma vergonha nacional), etc.
Contudo, estes factos não podem justificar que, os mesmos abusos ou excessos em matéria de exames e meios auxiliares de diagnóstico, como diz o prof. João Arriscado Nunes, sejam no sector privado considerados «aumento do volume de negócios»… Não é, por exemplo, admissível que um doente internado num hospital (privado ou público) seja colocado a ‘fazer quilómetros’ de ambulância entre mais do que um hospital, só para rentabilizar equipamentos…
A Saúde tem que ser bem gerida, mas não pode ser considerada um bem transaccionável, nem um terreno onde se deva procurar, em primeiro lugar, o lucro. Antes pelo contrário…
Quem lucra, ou quer lucrar, com a Saúde?
Pb\