teologia para leigos

14 de julho de 2011

S.N.S. PARA TODOS: UMA UTOPIA?

SERVIÇO NACIONAL DE SAÚDE NA ERA NEOLIBERAL


A destruição programada do SNS


Os cidadãos com rendimentos mais elevados também devem ter acesso gratuito a todos os cuidados de saúde prestados pelo Serviço Nacional de Saúde (SNS). A concepção que esta afirmação encerra, e que está no centro da arquitectura do Estado social, não é uma herança de um qualquer tempo de vacas gordas em que se podia fazer tudo por todos − até pelos ricos, como se ouve agora −, nem exprime um pensamento utópico que ignora os condicionalismos dos recursos.

 Pelo contrário, assume que os recursos, além de serem limitados, são socialmente apropriados de forma assimétrica e em resultado de interesses divergentes e poderes desiguais. Procurando uma solução democrática de arbitragem e de escolha das finalidades a prosseguir, o Estado social procura encontrar as formas de redistribuição que melhor assegurem o bem-estar e a elevação geral do nível de vida dos cidadãos. Fazendo-o, o modelo em que ele assenta conseguiu resultados significativos ao nível da redistribuição de rendimentos, da diminuição das desigualdades e da racionalização dos recursos − muito mais do que os modelos assistencialista ou neoliberal, apesar dos erros, falhas e atrasos.






Em Portugal, o caso do SNS é exemplar, tanto pela melhoria dos indicadores de saúde por que é responsável nas últimas décadas, como pelos problemas persistentes que são visíveis no seu interior, mas exigem resolução concertada noutros âmbitos (caso dos determinantes sociais da saúde, que requerem alterações de políticas em sede de trabalho, salário, escolarização, habitação, ambiente…). Em vez de se pensar na melhoria do SNS, a actual crise está a ser usada como pretexto para introduzir no sistema mudanças há muito desejadas, algumas já parcialmente concretizadas (parcerias público-privadas…), por elites económicas que vêem na saúde, sector com «clientes» inesgotáveis e particularmente fragilizados, um negócio muito lucrativo e quase sem risco. Essas elites apenas precisam de um Estado facilitador, algo que se prepara, quer com as medidas do «Programa do Governo» [1] apresentado por Pedro Passos Coelho, que levam ainda mais longe o que estava previsto no «Memorando de Entendimento» [2] assinado com a troika, quer com a atribuição da pasta da Saúde ao ministro Paulo Macedo, ex-administrador da Médis e especialista na gestão de seguros de saúde.

Voltemos ao exemplo inicial, porque em situação de crise profunda há sempre quem use todos os artifícios ideológicos para desviar os legítimos desejos de justiça social para os sítios onde ela é ilusória (assim não ocorre onde deve) e, pior ainda, para onde as mudanças serão especialmente prejudiciais para os que embarcaram no logro.






A lógica que preside ao funcionamento do SNS diz que os cidadãos com rendimentos mais elevados, quando se vêem numa situação de doença ou de necessidade de vigilância do seu estado de saúde, já deverão ter pago impostos mais elevados do que aqueles que têm rendimentos mais baixos. À chegada ao centro de saúde ou ao hospital, todos os cidadãos, pobres e ricos, têm por isso o direito de encontrar um serviço e profissionais que apenas se concentram nas suas necessidades de saúde. Por razões morais, é certo, que se prendem com o dever de assistência médica, mas também porque o próprio serviço de saúde já foi montado com recursos que atenderam às diferentes possibilidades de contribuição fiscal de cada cidadão.

Sobre essa redistribuição de rendimentos alicerçam-se, tanto o princípio do acesso universal e gratuito aos serviços de saúde, como o modelo de financiamento do SNS que é capaz de lhe garantir sustentabilidade e qualidade. O princípio da universalidade e o modelo de financiamento são, assim, dois pilares inseparáveis: se um deles soçobrar, ambos colapsam − e com eles todo o sistema.


«Sinto muito, mas essa mordomia vai ter que acabar!!»



Aceitando a saúde dos cidadãos como uma das moedas de troca do pagamento de juros usurários aos especuladores financeiros, o Estado português aceitou um pacote de austeridade que inclui o corte de 550 milhões de euros no SNS. É nestas condições de sub-financiamento que os serviços de saúde vão ser confrontados com um enorme conjunto de alterações no seu funcionamento. Em primeiro lugar, com o previsível regresso dos utentes forçados pela crise a renunciar aos seguros de saúde para que foram aliciados por anos de desinvestimento no SNS e investimento mediático em todos os defeitos do sistema. Em segundo lugar, vai ocorrer uma revisão das taxas moderadoras, que segundo o «Programa do Governo» se destina a «garantir que apenas se isenta quem realmente necessita dessa isenção e actualizar o seu valor», taxas essas que, além de onerarem imenso os que ficarão no SNS, pois tenderão a aproximar-se dos custos reais dos serviços prestados, preparam a porta de saída (dos serviços e do financiamento) dos cidadãos com menores recursos.





Em terceiro lugar, prevê-se que este SNS pobre, que será de facto um pobre SNS, seja o palco onde se contratualizam com privados concessões na rede de cuidados primários (prioritariamente) e ainda mais convenções para a prestação de serviços, tudo em benefício de uma meramente ideológica maior eficiência dos privados, de uma suposta «livre escolha» e de uma responsabilização dos cidadãos pela sua própria saúde que já mostrou dar muito maus resultados e limitar-se a encobrir uma realidade de deterioração das condições substantivas que os cidadãos terão para fazer quaisquer escolhas livres ou assumir responsabilidades.



Funerária: 'temos vaga...'


Se a tudo isto somarmos, em quarto lugar, o anunciado «plano de prestações garantidas», que passará a definir, neste contexto austeritário, o que fica de fora dos cuidados e serviços de saúde prestados pelo SNS, não é difícil compreender que estamos perante uma verdadeira destruição programada do SNS. E nem será preciso mexer na Constituição da República.


'Novidades, pessoal: saiu o dinheiro para a saúde. Teremos camas no hospital...'



[Le Monde Diplomatique, ed. em português, nº 57, II série, Julho 2011, p.2]

Notas

[1] http://www.portugal.gov.pt/GC19/Governo/ProgramaGoverno.
[2] http://www.min-financas.pt/inf_economica/MoU_PT.pdf.