teologia para leigos

1 de julho de 2011

JESUS DIANTE DA CATÁSTROFE DO SEU TEMPO 1/2

                            Jesus
judeu de um ‘Deus maior’



pedra de calçada - Berlim [memória das vítimas do holocausto]



1.  Jesus e o judaísmo

No Judaísmo, é claro que a redenção supõe uma transformação absoluta da realidade presente. A sua grande objecção em aceitar Jesus como Messias escatológico é que o mundo, com a chegada de Jesus, não mudara nada (…). Para os judeus, a chegada da era da redenção traria consigo o estabelecimento da justiça e o desaparecimento de todos os males. (…) A «salvação das almas» não chega para que se fale de um mundo redimido. O judaísmo não aceita confinar a redenção às almas ou aos indivíduos, vistos isoladamente. O Judaísmo exige uma mudança na dimensão social e cósmica que, obviamente, não aconteceu com a vinda de Jesus.

Um texto do judeu Gershon Sholem [Judaica I, Frankfurt 1963] explica, assim, esta resistência judaica ao tipo de redenção que muitos teólogos cristãos atribuem a Jesus:

«O conceito de redenção que caracteriza a atitude do messianismo é completamente distinto no judaísmo e no cristianismo. (…) O judaísmo sempre se ateve, segundo certas nuances no entanto, a uma noção de redenção que a concebe como um acontecimento que tem lugar no âmbito público, no meio da praça pública da história, e através da comunidade. Em resumo, é algo que surge diante de todos no mundo do visível, sendo impensável caso essa manifestação ou aparição no visível não ocorra.

«Por oposição, temos o cristianismo com uma concepção de redenção como um acontecimento que tem lugar no âmbito espiritual e no âmbito do invisível, que se desenvolve na alma, no mundo de cada indivíduo e que opera uma transformação secreta à qual não corresponde nada de semelhante no plano exterior, no mundo. A Igreja esteve convencida que assim superava uma noção de redenção exterior (‘exteriorista’) vinculada ao material, contrapondo-lhe uma noção nova de dignidade superior. A um judeu, esta concepção sempre lhe pareceu como o oposto a qualquer avanço ou progresso. Trasladar a promessa messiânica da Bíblia para o âmbito da interioridade… surge, ao pensamento judaico, como uma apropriação ilegítima de algo que, no melhor dos casos, é apenas o lado interior de um acontecimento que deve ter lugar no exterior, que deve manifestar-se».

É verdade que em certos meios cristãos, sobretudo, em meios protestantes, entendeu-se a salvação de forma intimista e individual: «Jesus, meu salvador pessoal». Mas o cristianismo é mais judeu do que Scholem possa imaginar. Para Lucas, o fruto da Páscoa é a criação de uma comunidade alternativa na qual se vivam novos valores. O ‘reino’, introduzido por Jesus, tem, já agora, uma dimensão comunitária, visível, na existência da Igreja.

É verdade que o cristianismo protela para uma segunda vinda do Messias aqueles efeitos que os judeus esperam logo na primeira e única chegada conjunta do Messias e da redenção, mas de modo nenhum renuncia a entender que a redenção só chegará ao seu cumprimento quando esteja plenamente estabelecido aquele Reino de Deus que os judeus esperam, e que nós, os cristãos, também esperamos conjuntamente com eles. A matriz judaica do cristianismo resistirá sempre a reduzir a redenção à salvação das almas sem visibilidade alguma intra-terrena e sem nenhum tipo de relevância e manifestação social.

Nós, os cristãos, também continuamos a esperar a chegada do Messias e da era nova da redenção que, todavia, não se manifestou em sua plenitude ainda. A nossa diferença principal, face aos judeus, é que quando chegar essa era nova de redenção nós, os cristãos, já conhecemos o nome e a identidade dessa pessoa que a irá consumar, porque ela já veio uma vez, ao nosso mundo, de forma escondida. Ressuscitado de entre os mortos, vive antecipadamente no eskaton, no qual, também nós, acreditamos vir a ser introduzidos, um dia.

Cristo ressuscitado penetrou já nesse eskaton e, a partir de fora do nosso espaço e tempo, envia o seu Espírito à comunidade redimida visível já neste mundo, para que se vá antecipando o reino e se torne expressão social da nova vida redimida.

As raízes judaicas do cristianismo obrigá-lo-ão a conceber a salvação como uma história que tenda à sua consumação, incluindo, nela, a dimensão social do Povo de Deus portador da aliança, no qual se vá tornando efectivo o Reino de Deus. Essas raízes impedirão qualquer recaída num platonismo que conceba um mundo de almas individuais que tenham que ser resgatadas individualmente da corrupção, e que se recuse a admitir uma história de salvação que se realize de modo visível no mundo através da comunidade, dum povo, povo eleito como ponta de lança dessa transformação social que culminará na nova era.

A existência desta comunidade, que vive essa nova vida, é também a defesa do próprio projecto de Jesus no mundo. Jesus esperou, sem esmorecimento, que Deus viesse defender a sua causa e a sua inocência. Esta defesa ocorreu, não só na fé dos seus seguidores, que depois da sua morte continuaram a acreditar nele ainda mais intensamente, mas também no juízo de Deus sobre os que o condenaram. (…)

A profecia de Jesus [sobre a ruína de Jerusalém] foi tão só a crónica de uma morte anunciada. Os profetas são os que, como Jeremias, sabem ler o sentido da história e alertam quando ainda vamos a tempo. (…)

Jesus fracassou ao tentar convencer o seu povo a acolher este reinado, e esse fracasso trouxe efectivamente um «fim do mundo» [Jesus referiu-se ao desastre de Jerusalém usando, em parte, a linguagem apocalíptica do «fim do mundo»]. É evidente que não se trata de um «fim do mundo» cosmológico, mas apenas do fim do pequeno mundo social e cultural do ‘judaísmo do segundo Templo’. Foi precisamente o fim dramático do «seu» mundo, o que Jesus tentou evitar com a sua pregação. O ‘judaísmo do segundo Templo’ terminou dramaticamente ainda no decurso da geração dos que escutaram a profecia de Jesus. (…)

A partir da própria lógica judaica [tal como fizera antes, aquando da queda da Samaria (722 aC) e da de Jerusalém (587/6 aC)], não seria previsível que Deus enviasse também um Profeta com uma missão similar, precisamente antes da mais tremenda crise por que passou o povo judeu em toda a sua milenar história?

É verdade que o judaísmo ainda sobreviveu a esse fim do mundo do ano 70 dC, como também o havia feito diante da destruição levada a cabo pelos babilónios. Mas o mundo do Templo e seus sacrifícios acabou definitivamente e o judaísmo teve que mudar para sobreviver. O judaísmo rabínico é um judaísmo mutante que acertou com uma fórmula de sobrevivência. O judaísmo reviveu à destruição do segundo Templo tal como os ossos de Ezequiel, mas reviveu em dois moldes distintos: um, no movimento que tem origem na escola rabínica de Yavne, e outro no Israel restaurado na comunidade dos doze apóstolos. Este é o cisma primordial.

O Israel dos Doze Apóstolos abriu-se aos gentios numa comunidade messiânica escatológica; mas, para se converter na casa dos gentios, teve que pagar um altíssimo preço, o de apagar totalmente a sua identidade judaica, ao ponto de hoje ser totalmente irreconhecível como Israel.
O Israel do Rabinismo, por outro lado, optou por manter a todo o custo a sua identidade judaica, mas à custa de frustrar as suas expectativas proféticas de abertura aos gentios e, assim, procrastinar indefinidamente a missão que, em última análise, dava sentido à sua eleição.

Sem dúvida, é providência divina que estas duas maneiras de entender Israel tenham coexistido lado a lado durante vinte séculos. O maior erro que cometeram foi o de pensar que não tinham nada a aprender uma com a outra e que são auto-suficientes. O cristianismo, ao largo da história, tentou aniquilar violentamente o judaísmo, já que se tratava duma testemunha incómoda da fidelidade de Deus às promessas feitas a Israel, povo, étnica e culturalmente, perfeitamente identificável.

Só quando a Igreja e o Judaísmo se virem a si mesmos como as duas partes mutiladas dum projecto global de Deus, é que terá lugar essa «ressurreição dos mortos», à qual se refere Paulo (Rm 11:15).

Reconhecer a matriz judaica com alegria e reconhecimento, sem a querer mutilar ou escamotear, é tarefa da Igreja neste novo milénio. E a maneira mais eficaz de reconhecer esta matriz é fazer o reconhecimento do judaísmo de Jesus, a quem jamais chegaremos a compreender se afastarmos os parâmetros judaicos da sua cultura e do seu século.


JM Moreno
UP Comillas