teologia para leigos

26 de maio de 2011

«O REINO DE DEUS» - O QUE É? Bíblia e Doc's

Para entrarmos no «mundo da Bíblia» não faltam manuais ilustrados e belos mapas históricos ou cronológicos. Deixo aqui algumas sugestões:

O POVO DE DEUS NA HISTÓRIA – de 2000  AC a 150 DC, (desdobrável) de J. Machado Lopes,  Suplemento do “Atlas Bíblico”, Difusora Bíblica 2010, Fátima
ATLAS BÍBLICO, Ed Verbo Divino [Navarra], San Pablo [Madrid] (tradução castelhana de original em inglês), 32pp,  ISBN 978-84-7151-350-2
Abc dos MAPAS BÍBLICOS, Ed. Paulus, 63pp, ISBN 978-972-30-1288-0
Abc para conhecer O MUNDO DE JESUS, Ed. Paulus, 63pp, 978-972-30-1370-2
O MUNDO JUDAICO EM QUE JESUS VIVEU – cultura judaica do Novo Testamento, João Duarte Lourenço ofm, Universidade Católica Editora, Lisboa, 2005, 180pp,  ISBN 972-54-0115-8
CURSO DE INICIAÇÃO À LEITURA DA BÍBLIA (em português), La Casa de la Biblia [Madrid],  Gráfica de Coimbra, 319 pp,  ISBN 972-603-107-9
HISTORIA DE ISRAEL Y DE JUDÁ – desde los orígenes hasta el siglo II d.C., (em castelhano) François Castel, Ed. Verbo Divino, Navarra 2005, 245pp,  ISBN 84-7151-373-0
COMPREENDER A BÍBLIA, Mike Beaumont, Paulinas 2008, 125 pp, ISBN 978-972-751-916-3
NAS PEGADAS DE JESUS – um guia ilustrado dos lugares da terra santa, Peter Walker, Paulinas, 2008, 215pp, ISBN 978-972-751-935-4


Para entrarmos no «mundo em que Jesus viveu» são fundamentais alguns conhecimentos de sociologia e de estratificação sociológica que nos expliquem, entre outros, por exemplo, os aspectos da divisão do poder no tempo de Jesus. É importante saber quem era a classe dirigente (o poder romano), quem fazia parte da classe governante (a corte, o sumo sacerdote, os sacerdotes dirigentes, a nobreza laica, as autoridades menores), quem eram os subalternos (os escribas, os militares, os publicanos e os cobradores de impostos, os administradores), quem fazia parte da classe sacerdotal (os simples-sacerdotes, os levitas), como era a vida do campesinato, como era a vida dos artesãos, o que eram as classes impuras (impuros de origem, impuros de profissão, impuros de doença), quem compunha a classe dos desprezíveis (pequenos delinquentes, criminosos, mendigos, sub-empregados itinerantes ou sem trabalho fixo), etc.. Não falta bibliografia sobre este assunto.

É num certo contexto social que Jesus surge e é nele que tenta dar uma resposta às expectativas dos seus contemporâneos. Essas expectativas eram de natureza político-social, de natureza religiosa, de carácter existencial, de natureza apocalíptica e de uma outra que a expressão ‘o Reinado de Deus’ resume [Is 52:7; Sof 3:14-16, cf. v15b] e que é alimentada desde muito antes de Jesus. Face a estes 5 aspectos essenciais da expectativa judaica, Jesus responde com a expressão: o Reino de Deus, o qual se torna o núcleo central do seu anúncio.

Qual é, então, a resposta de Jesus e em que é que a ‘resposta de Jesus’ é diferente das respostas dos que o antecederam? [seguiremos traduzindo, textualmente, José Luis SICRE, «El Quadrante, Parte II – LA APUESTA,  el mundo de Jesús», Ed. Verbo Divino 2005, Navarra, 6ª ed., pp.306-316; existe versão em português do Brasil, na Editora Paulinas]





José Luis Sicre







1.Jesus antecipa o Reino de Deus: as obras

No evangelho de Mateus há um episódio programático que nos ajuda a introduzir o tema [Mt 11:2-6; leia, SFF].
A crise de João é compreensível.
Arriscando a própria vida, ele havia anunciado com entusiasmo, que o castigo de Deus estava iminente, que o machado já estava pronto para cortar as árvores. João coloca a sua esperança em que Jesus cumpra esta missão. Mas Jesus não actua deste modo. É então que surge a pergunta: É este aquele que há-de vir? Ter-me-ei equivocado? Jesus compreende a dúvida de João (e a possível tentação de muitos outros) e, por isso, conclui a sua resposta proclamando: «ditoso aquele que não encontra em mim ocasião de escândalo» (v.6). A possibilidade de escândalo não o faz, contudo, retroceder. A sua actividade, a de Messias, consistirá em arrancar o ser humano das mãos da doença e da morte, e em anunciar aos pobres a boa notícia. E que relação tem isto com o Reinado de Deus?

As curas são a antecipação do Reinado de Deus, porque pressupõem uma vitória sobre Satanás (símbolo do poder do Mal) e porque reflectem o bem-estar desse mundo futuro. (…) Vários séculos antes, para descrever a salvação definitiva, dizia-se que «então se abrirão os olhos do cego, os ouvidos do surdo ficarão a ouvir, o coxo saltará como um veado,e a língua do mudo dará gritos de alegria.» [Is 35:5-6]. Na boca do profeta, eram belas imagens, mas não se esperava pelo seu cumprimento literal. Os evangelistas citam expressamente estas palavras e outras semelhantes (Is 29:18) para deixar claro que as curas de Jesus convertem a poesia em realidade. Assim, Jesus responde à «nostalgia do passado» e antecipa esse momento no qual Deus «enxugará as lágrimas dos olhos, e já não haverá morte, nem luto, nem pranto, nem dor, pois as primeiras coisas passaram» [Ap 21:4].

Juntamente com as curas, Jesus considera missão sua anunciar a boa nova aos pobres. Já sabemos em que consiste a boa notícia – a chegada do Reino de Deus. Mas, quem são os pobres, e que significa para eles a chegada do Reino? O texto de Mateus, que descreve os primeiros passos de Jesus, nos ajudará a compreender quem são os pobres. Depois do seu baptismo, «tendo ouvido dizer que João fora preso, Jesus retirou-se para a Galileia. Depois, abandonando Nazaré, foi habitar em Cafarnaúm, cidade situada à beira-mar, na região de Zabulão e Neftali, para que se cumprisse o que o profeta Isaías anunciara:Terra de Zabulão e Neftali, caminho do mar, região de além do Jordão, Galileia dos gentios. O povo que jazia nas trevas viu uma grande luz; e aos que jaziam na sombria região da morte surgiu uma luz’.» [Mt 4:12-16, citando Isaías 8:23.9:1]

Expressa-se, aqui, a nível geográfico, o que será a atitude de Jesus durante a sua vida. Não se dirige às regiões influentes, onde reside o governo do país, onde floresce a cultura e onde se encontram os centros do poder religioso, político e económico. Jesus escolhe a Galileia dos pagãos, terra mal vista, terra ignorante da Lei, mãe de revoluções.

É aí que começa a proclamar a boa nova, dizendo que o Reino pertence às pessoas mais estranhas e perigosas: aos pobres, aos que sofrem, aos não-violentos, aos que têm fome e sede de justiça, aos que prestam ajuda, dos limpos de coração, aos que trabalham pela paz e vivem perseguidos pela sua fidelidade. Através das bem-aventuranças, Jesus diz-lhes: quando Deus se manifestar como Rei, vós sereis seus súbditos, vós, os marginalizados, os esquecidos e incompreendidos. Mas Jesus não se fica por belas teorias. Jesus antecipa esta realidade acolhendo, desde já, os futuros membros do Reino: os pecadores e desacreditados, os cobradores de impostos e as prostitutas, gente simples e ignorante, inclusivamente os seres menos preparados, como é o caso das crianças. Estes são os pobres, as pessoas que a sociedade bem-pensante, de direita ou de esquerda, marginaliza e rejeita. Em cada relação pessoal, em cada gesto e palavra pessoais, Jesus torna patente, ao indivíduo, o acolhimento de Deus. É neste contexto que se inserem os escassos, mas significativos, episódios de ‘perdão de pecados’ [Filho Pródigo, Maria Magdalena, Zaqueu, Pedro e outros personagens].

2.Jesus explica o Reino: as palavras

Com as curas e o acolhimento, Jesus não se limita a antecipar o Reino. O Reino é um mistério complexo que pode provocar escândalo, estranheza e más interpretações. O caso João Baptista deixa isto muito claro. Mas até isso Jesus quer aclarar, esclarecer. Não o faz de modo sistemático, como se faz nos tratados de teologia. As suas parábolas, tal como outras respostas e intervenções, ajudam-nos a esboçar o seu pensamento.

Antes de mais nada, Jesus sublinha a importância do Reino. Compara-o a um tesouro escondido, a uma pérola de grande valor, a um banquete magnífico, a uma colheita abundante, a uma semente que frutifica. O Reino deve entusiasmar tanto os discípulos que, na oração mais breve, uma das primeiras petições deverá ser: «venha a nós o teu reino», sinal de profunda estima por ele e marca da ânsia com que o esperam.

Mas, na mente de Jesus, este Reino, tão valioso, implica também grandes riscos, e Jesus a ninguém quer enganar. Pelo contrário, Jesus parece interessado em acentuar os obstáculos para que o indivíduo faça os seus cálculos antes de construir a torre ou antes de declarar a guerra. Nesta atitude de Jesus, três aspectos me parecem de especial interesse.

(1)O realismo. Conta Lucas que um personagem, entusiasmado com o diálogo que travava com Jesus sobre este tema, exclamou: «Ditoso o que comer no banquete do Reino de Deus!» [Lc 14:15] É a visão utópica do Reino que vê tudo cor-de-rosa. Um pregador bem intencionado poderia aproveitar o momento para exaltar as maravilhas do Reino, entusiasmando ainda mais os comensais. Jesus não o faz, bem pelo contrário: aproveita para lhe despejar um balde de água fria em cima, adoptando um realismo cruel. Conta, então, a parábola dos convidados para um grande banquete [Lc 14:16-24], na qual admite que o Reino é um banquete maravilhoso, mas na qual não ilude quanto aos que serão os verdadeiros convidados: ainda que sejam muitos, todos começam por se escusarem; e, no fim, ninguém entrará na sala do banquete. Será necessário ir buscar os pobres, os estropiados, os cegos e os coxos, e gente dispersa por caminhos e sendeiros. A exclamação: «Ditoso o que comer no banquete do Reino de Deus!» adquire, agora, um sentido novo. Permanece válida, mas envolta numa certeza trágica fundada no mais cruel dos realismos.(…)

Nas pessoas entusiastas e generosas, as dificuldades do Reino podem criar um entusiasmo ainda maior. Jesus, porém, vai mais além e fala do (2)carácter desconcertante do Reino. Um exemplo concreto nos é dado no desconcerto que supõe situar o serviço acima do poder. [cf. ‘filhos de Zebedeu’] Jesus desconcerta falando do serviço como valor supremo. Jesus tabém desconcerta com as suas ideias de recompensa e de generosidade. A parábola dos trabalhadores que vão à vinha [Mt 20:1-15] (…) espelha a injustiça da generosidade, tal como acontece com a parábola do filho pródigo [Lc 15:11-32] (…). Esta injustiça da generosidade é característica essencial do reino: faz com que os últimos sejam os primeiros, com que os cobradores de impostos e as prostitutas precedam os demais. Aquele que se considera bom, puro, trabalhador deverá sentir-se irritado, mas o que se sabe débil, incapaz, egoísta, pecador pode alegrar-se com que a entrada no Reino se reja por um critério tão desconcertante como o do perdão e a generosidade. A este carácter desconcertante do Reino, pertence também: a conduta moral dos seus membros, uma nova interpretação da Lei, o repúdio pelas ‘tradições’, a abertura radical aos pagãos. (…)

Indo mais além, Jesus não se contenta em inculcar realismo ou provocar desconcerto. A mensagem do Reino permite-lhe, também, (3)destruir falsas esperanças. É instrutivo e quase cruel comparar as esperanças formuladas pelos personagens que Lucas nos apresenta durante a infância de Jesus [Lc 1-2] com o que Jesus afirmará mais tarde. Por exemplo, a profetisa Ana esperava que Jesus viesse libertar Jerusalém, e até fala do menino a quem atribuía esta missão [Lc 2:38]. Anos mais tarde, quando Jesus alcança a cidade, não vem para a libertar, mas para a condenar: «Virão dias para ti, em que os teus inimigos te hão-de cercar de trincheiras, te sitiarão e te apertarão de todos os lados;hão-de esmagar-te contra o solo, assim como aos teus filhos que estiverem dentro de ti, e não deixarão em ti pedra sobre pedra, por não teres reconhecido a oportunidade que Deus te deu.» [Lc 19:41-44; ver 21:20-24; 23:28-31]. [o mesmo acontece com a esperança de Zacarias: cf. Lc 1:71 com Lc 6:27-28] Com esta exigência, Jesus anula séculos de promessas, anula anúncios de libertação, de bem-estar político e religioso. Que não haja ilusões: apenas fica de pé o compromisso de responder ao mal com o bem! Também no campo soció-económico, Jesus destrói as esperanças que alguns poderiam ter a respeito dele. Quem interprete as palavras do Magnificat «aos famintos encherá de bens e aos ricos os despedirá de mãos vazias» [Lc 1:53] como o anúncio de uma revolução iminente e como sinal de maior justiça neste mundo, sentir-se-ão desenganados ao escutar a Jesus. Ele não ilude: o rico continuará engordando e disfrutando, ao passo que o pobre Lázaro morrerá de fome [Lc 16:19-31]. Os papéis invertem-se, mas não neste mundo, somente na outra vida (cf. v.22-23): só quando os protagonistas morrem é que a revolução acontece.

Se Jesus vai deitando abaixo estas esperanças é porque ele mesmo não tem ilusões a respeito da sua pessoa e do seu destino. Ainda que dele se tenha dito que «será grande, se chamará Filho do Altíssimo e o Senhor Deus lhe dará o trono de David, seu antepassado, reinará para sempre na casa de Jacob e o seu reino não terá fim» [Lc 1:32-33], Jesus sabe que o seu trono será uma cruz, a sua coroa será de espinhos e os seus súbditos serão uns covardes e traidores. Aquilo que fora anunciado pelos profetas converte-se num pesadelo absurdo. As palavras de Jesus vão preparando este desenlace, anunciando a sua tortura e morte, e vão advertindo os seus discípulos de que o seu destino não será melhor do que o do seu mestre.


3.Jesus e o mistério do Reino: a sua pessoa

Com as suas acções e as suas palavras, Jesus antecipa o Reino e explica-o, mas o assombro que isso provoca nos seus contemporâneos conduz-nos à pergunta capital: «Quem é este?» [Mc 1:27] «Quem é este, a quem até o vento e o mar obedecem?» [Mc 4:41] Ou seja, a pergunta acerca de Jesus acaba por ser mais importante do que a pergunta acerca do Reino.

Nada disto nos deve estranhar, pois Jesus, com a sua pessoa, desvela a glória do Reino, sobretudo em momentos chave como o da tempestade acalmada [Mt 8:23-27 par.], como na Transfiguração [Mt 17:1-19 par.], aquando da entrada em Jerusalém [Mt 21:1-17 par.], aquando da ressurreição e proclamação da sua vitória [Mt 28:18].(…)

Recordemos o significado da Transfiguração.

Sete dias antes, Jesus afirmou: «Em verdade vos digo que alguns dos aqui presentes não experimentarão a morte sem terem visto o Reino de Deus chegar em todo o seu poder.» [Mc 9:1] (em todas as 3 versões – cf. também Lc 9:27 e Mt 16:28 – Jesus converte-se na revelação da glória do Reino) Esta chegada poderosa do reino tem lugar uma semana mais tarde, na Transfiguração. Porém, o que chega não é  nenhum benefício de ordem física, como por exemplo uma cura, nem de ordem espiritual, como o acolhimento afectuoso do pobre e do marginalizado. Muito menos uma iluminação intelectual sobre o valor ou as características do Reino. O que chega é uma experiência de ordem distinta, que faz transbordar e sobressaltar, que obriga ao silêncio e converte qualquer palavra em neciosidade. O que chega é algo que rompe com o quotidiano e revela um mundo novo. A Transfiguração antecipa a vinda de Jesus «por entre os anjos, com a glória do Pai» [Mt 16:27], antecipa o momento em que «vereis um dia o Filho do Homem sentado à direita do Todo-Poderoso e vindo sobre as nuvens do céu.» [Mt 26:64]

Dentro do Antigo Testamento há algo que ilumina este episódio: as afirmações de Ezequiel sobre a Glória de Deus [Ez 10-11] (10:18 e 11:22 são críticas a Ezequias: «Saiu da soleira do templo, a glória do Senhor, e colocou-se sobre os querubins»; «a glória do Senhor elevou-se do meio da cidade e fixou-se sobre a montanha») O seu desaparecimento (o afastamento por parte de Deus) é o pior castigo que pode sofrer o povo pelos seus pecados. E este afastamento progressivo desde o Santíssimo até ao umbral do templo, até à porta oriental e até ao Monte das Oliveiras até desaparecer por completo, encerra uma etapa da história com uma condenação e uma solidão a mais plena possível, na medida em que Deus abandonou o seu Povo. Posteriormente, Ezequiel descreverá a restauração [da aliança com Deus] com tons deslumbrantes: a vida renasce, as montanhas ressumam bênção cobertas de searas e rebanhos e o Povo retoma a sua independência: uma água pura o purifica e um espírito novo o inunda. Mas a maior promessa refere-se ao regresso da Glória de Deus, que, de novo, habita em Israel [Ez 43:1-9].

Dentro do Novo Testamento, a Transfiguração desempenha o mesmo papel. Todas as outras promessas e esperanças, por mais magníficas que tivessem sido, empalidecem ante a manifestação da glória de Deus e do seu Reino na figura de Jesus. O quarto evangelho, que não relata a Transfiguração no monte, enfoca de modo original o tema, relacionando a glória com a morte de Jesus: «Chegou a hora de se revelar a glória do Filho do Homem. Em verdade, em verdade vos digo: se o grão de trigo, lançado à terra, não morrer, fica ele só; mas, se morrer, dá abundante fruto. (…) «Agora a minha alma está perturbada. E que hei-de Eu dizer? Pai, salva-me desta hora? Mas precisamente para esta hora é que Eu vim! Pai, manifesta a tua glória!» [Jo 12:23-24.27-28a] É a expressão mais clara do mistério do Reino, do seu fascínio e do seu escândalo. «E Eu, quando for erguido da terra, atrairei todos a mim» [Jo 12:32]. E, para que não exista possibilidade alguma de equívoco, João acrescenta: «Dizia isto dando a entender de que espécie de morte havia de morrer» [Jo 12:33]. Jesus, transfigurado no monte ou exaltado na cruz, reflecte a glória do Reino e desvela o único caminho que leva até ele.


Entusiasmo, desilusão e esperança

Que reacção provocou Jesus, ao oferecer esta resposta às esperanças dos seus contemporâneos?
Uma resposta unívoca, seria injusta. Ao nível pessoal ou existencial, muitos encontraram, nas suas palavras e atitudes, um motivo de esperança para os seus problemas. Para esses, como para o velho Simeão, o contacto com Jesus supôs plenitude, deu sentido à sua existência. Outros viram-se livres das suas enfermidades, das suas angústias e temores, descobriram uma nova relação com Deus. Mas as suas esperanças não se limitavam ao existencial ou ao religioso. Os aspectos políticos e socioeconómicos eram também essenciais. E, nesse sentido, a atitude de Jesus parecia irreconciliável com as esperanças depositadas nele. A questão era tão importante que Lucas nem hesitou em dedicar-lhe um dos últimos episódios do seu evangelho: o dos discípulos de Emaús. Com ele não responde apenas às inquietações dos seus contemporâneos, mas anima-nos também a nós, cristãos de hoje, para que façamos a experiência do entusiasmo, da desilusão e da esperança.

No início do relato, os discípulos abandonam Jerusalém, tristes e desalentados com o destino de Jesus: «O que se refere a Jesus de Nazaré, profeta poderoso em obras e palavras diante de Deus e de todo o povo; como os sumos sacerdotes e os nossos chefes o entregaram, para ser condenado à morte e crucificado. Nós esperávamos que fosse Ele o libertador de Israel» [Lc 24:19-21].

Na experiência destes homens houve uma etapa de entusiasmo, quando o viram como profeta poderoso em obras e palavras. Cada gesto pequeno, cada cura, cada pessoa acolhida, o fascínio sobre a multidão anunciavam o triunfo da causa e inundava de esperança. Mas, quando a vitória parecia iminente, a morte derruba a esperança de libertação de Israel. Então, o entusiasmo cede lugar à desilusão. As palavras e obras, a pessoa de Jesus, aparecem agora como inúteis, já não antecipam o Reino, nem reflectem a sua glória. É que o decisivo, agora, já não é a solução concreta dos problemas pessoais, grandes ou pequenos, mas uma resposta absoluta: a libertação de Israel. Se esta não se produzir, tudo o mais não passará de pequenos detalhes falhos de importância – sentiam os discípulos. O melhor é acabar com os sonhos e afastar-nos de Jerusalém, dar por encerrado o passado e o futuro e submergir-nos na amargura do presente.

Mas a experiência dos discípulos de Emaús termina na esperança, mediante o contacto com Cristo ressuscitado e mediante um novo conhecimento da Sagrada Escritura. Não renunciam à esperança política! Segundo Lucas, a última pergunta que os dsicípulos dirigem a Jesus, antes da ascensão, é: «Senhor, é agora que vais restaurar o reino de Israel?» [Act 1:6]. Mas, esta esperança, aprenderam a compaginá-la com o duro caminho percorrido ao lado de Jesus: «O Messias tinha que padecer tudo isto para entrar na sua glória» [Lc 24:26]. O que transforma os discípulos de Emaús, o que possibilita a sua esperança, não é a renúncia à vitória final, mas a aceitação do sofrimento presente.

Seria injusto criticar estes homens pela sua obsessão política ou pela sua incapacidade de entender os planos de Deus. Justo é identificarmo-nos com eles, com o seu entusiasmo incial, quando o evangelho nos surge, também a nós, como uma força transformadora do mundo e da sociedade. E, com a sua desilusão, quando as nossas lutas se tornam também inúteis, quando a salvação não nos chega a nós e o evangelho nos parece ridículo e alienante. Quando o desengano bate bem cá no fundo e nos perguntamos, tal como João Baptista, se devemos esperar outro, ou quando sentimos, como os discípulos de Emaús, a tentação de tudo abandonar, então, da desilusão poderá renascer a esperança. Mas sempre fará falta fazer a experiência de Cristo ressuscitado, que ilumine o escândalo da cruz e nos anime apartir do interior das nossas dificuldades. Então, sentir-nos-emos impulsionados a continuar a missão de Jesus, antecipando o Reino com as nossas obras, explicando-o com as nossas palavras, tornando-o visível nas nossas vidas.

José Luis Sicre, sj

[José Luis Sicre Díaz (b. 1940) is a Spanish catholic priest and scholar, at the Faculty of Theology of Granada, Spain]