O impasse
Em tempo de Crise, ouvem-se, frequentemente por aí, dois discursos, aparentemente opostos. (1) Os políticos metem asco, governam-se e não governam; aquando das eleições, prometem mundos e fundos, depois conluiem-se para tomar conta das cadeiras do poder e distribuir benesses, esquecendo o país real, esquecendo os eleitores: são sempre os mesmos… (2) O povo tem o que merece, pois gastou acima das suas posses; o povo é egoísta, alimenta os interesses do sistema capitalista, adora o consumo e, por isso, é cúmplice com a estratégia do marketing e com os interesses financeiros dos ‘mercados’ – mesmo não tendo, contraem créditos...
Noutros momentos, ouvem-se comentários do género: (1) a crise vai ser boa porque vai obrigar o povo a mudar a sua mentalidade e os seus comportamentos; (2) a crise vai ser boa porque vai obrigar o povo a re-erguer-se como Nação, enfrentando os desafios que tem pela frente – isso o fará crescer e desenvolver-se; (3) já nada vale a pena, porque o povo é selvagem, incapaz de se unir e ser solidário; (4) já nada vale a pena porque os políticos (estes e os que vierem depois destes) são todos “farinha do mesmo saco”…
O que é que o Evangelho tem a dizer a isto?
Em primeiro lugar, importa verificar que só muito raramente é que os adversários de Jesus são nomeados pelo seu nome próprio. Isto quer dizer o seguinte: Jesus denuncia o sistema opressor e nunca condena o povo. Jesus aproxima-se do povo para entender melhor as suas queixas. Jesus coloca-se na senda dos profetas de Israel: veio para salvar as pessoas, denunciar o sistema gerador de pecado e anunciar uma saída colectiva para a crise do seu tempo – o Reino de Deus para todos, bons e maus! Se lermos o pequeno livro do profeta Amós, verificamos aquilo que Jesus também fazia: para problemas nacionais leituras globais e globalizadoras! Tal como os profetas de Isarel, Jesus não cai em julgamentos não-estruturais. O uso do plural, aquando de acusações, é a demonstração disso mesmo: «Mas vós fizestes dela um covil de ladrões. Os sacerdotes e os doutores da Lei ouviram isto e procuravam maneira de o matar» [Marcos 11:17-18]. «Em verdade vos digo: Sempre que fizestes isto a um destes meus irmãos mais pequeninos, a mim mesmo o fizestes.» [Mateus 25:40].
Leituras insulares não contêm saídas!
Para os profetas como Amós, o pecado é estrutural. Reparemos nas expressões empregues: ‘vós’, ‘os desvalidos’, ‘o reino que peca’, ‘a casa de Israel’ - «Vós que esmagais o pobre e fazeis perecer os desvalidos da terra» (Am 8:4). «Os olhos do Senhor Deus estão abertos sobre o reino que peca» (Am 9:8). «Vou sacudir a casa de Israel» (Am 9:9). O Mal é histórico e estrutural. As responsabilidades são nacionais. E quando há que sonhar com uma saída esperançosa para a crise nacional, damo-nos conta que as saídas são globais e colectivas: ‘os montes’, ‘as colinas’, ‘o meu povo’, ‘as cidades desvastadas’, ‘a sua terra’, ‘lhes dei’. Digamos: ou tudo, ou nada.
«Naquele dia, levantarei a cabana arruinada de David. (…) «Eis que vêm dias - oráculo do Senhor - em que o lavrador seguirá de perto o ceifeiro e o que pisa os cachos, seguirá o semeador. Os montes destilarão mosto; todas as colinas se derreterão. Restaurarei o meu povo de Israel. Hão-de reconstruir e habitar as cidades devastadas. Plantarão vinhas e beberão do seu vinho, cultivarão pomares e comerão dos seus frutos. Hei-de plantá-los na sua terra, e nunca mais serão arrancados da terra que lhes dei!» - diz o Senhor, teu Deus.» (Am 9:11.13-15)
Digamos, ou nos salvamos todos como Povo, ou nos perdemos todos e será o fim do Povo - ou todos, ou ninguém. Não há espaço para ‘salvações individuais’, nem à custa de ladainhas ou peregrinações individuais, até porque o próprio Santuário (do Monte Carmelo) virá abaixo: «Vi o Senhor de pé, sobre o altar. Ele disse-me: “Bate no capitel e tremerão os umbrais. Fá-los cair sobre a cabeça de todos; os que restarem hei-de matá-los à espada. Ninguém poderá fugir, nem um só deles escapará. Ainda que desçam à morada dos mortos, a minha mão os tirará de lá; ainda que subam aos céus, de lá os farei descer; se se esconderem no cimo do Carmelo, Eu os irei buscar e de lá os tirarei”» (Am 9:1-3).
Só há pecado histórico: deste deriva o pecado pessoal (e não o contrário). O pecado individual é a recusa em aceitar que ‘só há pecado histórico’.
A dimensão ‘oikos’ pertence ao universo ‘pecado’!
Donde é muito difícil aceitar que se apele apenas à dimensão individual ou à escala cordial do pecado. Apelos à conversão do coração devem deixar bem clara a dimensão ‘Povo’ dessa mesma conversão – ninguém se salva sozinho. É por isso que, a Missa, é «uma multidão de gente a caminho, respondendo a uma voz que convoca a uma assembleia», e não mero exercício pessoal.
Ficam, aqui, três regras, que podem re-situar-nos em matéria de leitura crítica dos envolvidos na crise. Uma nova Regra dos 3 P’s.
1. PREPARAÇÃO – Ir ao deserto, Marcos 1:13. Jesus foi 40 dias ao deserto, atravessou sua ‘prova de vida’ não se deixando levar pelo discurso reinante que se ofereça de bandeja ou pela via do facilitismo. ‘Deserto’, aqui, quer significar que, mesmo que seja custoso, temos que procurar ir às fontes; quanto às causas e soluções da crise, temos que ler as duas versões; procurar uma leitura sistémica para configurar uma opinião global sobre um mal global. Estudar, trabalhar, fazer os deveres de casa e ter uma opinião pessoal devidamente fundamentada. Expressões gerais não chegam. É preciso saber-se bem o que é verdadeiro e separá-lo daquilo que é ilusório, propaganda ou falácia. Jesus foi ao deserto fazer a revisão à situação toda, fez a análise completa. Nos relatos das tentações, estão lá as questões magnas estruturantes (e não as de pormenor, de consciência, de vizinhança de rua ou as místicas).
2. PROXIMIDADE – não discursar de longe, mas Ver e Ouvir (Marcos 1:10). Não leva a nada o discurso do dedo em riste, a análise classificativa, a pose de carimbador. Se, sinceramente, procuramos saídas temos que nos abeirar de todos: bater a todas as portas de todas as forças sociais e políticas, não para discursar, mas para ‘ver e ouvir’ a todos. Se não o fizermos, não só não teremos autoridade, como, sobretudo, perderemos muitas oportunidades para ajudar. Ficaremos com a nossa consciência tranquila e enterrada no sofá, e tudo continuará a ser a mesma coisa.
3. PACIÊNCIA – humildade, equidade; importa enfrentar os interesses da maldade sem se descompor, sem ódio ruminante, sem se deixar afectar na própria paz e liberdade interior. O mal existe, a realidade é dura. A sua dureza impõe-se como desafio, mas não como infecção. Ser justo no julgamento evitando ser justiceiro. Lucas 6:42: «Como podes dizer ao teu irmão: ‘Irmão, deixa-me tirar o argueiro da tua vista’, tu que não vês a trave que está na tua? Hipócrita, tira primeiro a trave da tua vista e, então, verás para tirar o argueiro da vista do teu irmão». Lucas 9:49-50: «João tomou a palavra e disse: «Mestre, vimos alguém expulsar demónios em teu nome e impedimo-lo, porque ele não te segue juntamente connosco.» Jesus disse-lhe: «Não o impeçais, pois quem não é contra vós é por vós.» Lucas 9:54: «Estes [os discípulos] puseram-se a caminho e entraram numa povoação de samaritanos, a fim de lhe prepararem hospedagem. Mas não o receberam, porque ia a caminho de Jerusalém. Vendo isto, os discípulos Tiago e João disseram: «Senhor, queres que digamos que desça fogo do céu e os consuma?» Mas Ele, voltando-se, repreendeu-os.» Esta última referência, o «fogo que desce dos céus» para arrasar quem não pertence à mesma igreja e fé, remete-nos para uma visão imediatista das soluções para a Crise. Trata-se de uma postura fácil, própria de desesperados (se não vai a bem, vai a mal), como eventualmente terá sido a postura de João Baptista: «O machado já está posto à raiz das árvores, e toda a árvore que não dá bom fruto é cortada e lançada no fogo» (Mateus 3:10). Esta versão do estilo do movimento Baptista nunca poderia ser sancionada por Jesus. O Espírito do Pai de Jesus não se reveste de «fogo», mas de mansidão, acolhimento, misericórdia, e também de equidade e justeza (aquela versão é exclusiva de Mateus e, claro, tinha que terminar com a expressão «fogo inextinguível»…; cf. v.12b).
Em jeito de conclusão, digamos.
Os discursos insulares, em que a delimitação analítica roça a culpabilização daquilo que se delimita, mais não faz do que alimentar discursos ameaçadores que apenas preparam o ambiente para a guerra de acusações mútuas.
Face à dificuldade do momento (a intoxicação dos discursos televisivos sobre a ‘pseudo-ajuda’ da EU/FMI, sobre as causas da gravíssima degradação social, das elevadíssimas taxas de juro, da ameaça de banca rota, da aparente ausência de saída face às medidas de austeridade selvagem que nos impuseram sem nos consultarem, etc) há que recusar todo o tipo de xenofobia. E a ignorância ou a incapacidade de «leitura da realidade» pode originar formas mentais de xenofobia: tendemos sempre por expulsar, menosprezar e odiar aquilo que não dominamos.
Saber explicar o que se passa sem o recurso ao jargão, ao slogan, à fala do carrejão ou ao estigma, dá-nos paz, arruma a casa (cá por dentro), pois nos liberta a nós próprios dos sentimentos acusatórios face a grupos específicos e apaga, em nós, a atitude de desespero. O desespero é fonte de voluntarismo (querer pela simples razão que se quer e já não se suporta mais…). O voluntarismo cega-nos e constitui-se em terreno para a auto-suficiência e outros sentimentos corrompidos que nele crescem. Os discursos generalistas não podem ser admitidos. Nenhuma destas atitudes é criadora de saídas não-emocionais, de saídas em que todos nos salvemos em conjunto. Nenhuma é útil.