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Jesus,
uma atitude libertadora
A autoridade de Jesus mostrava-se, para os intérpretes da Lei, inquietante e misteriosa, porque, à liberdade com a qual se referia à religião judaica, ele aliava um inexplicável poder original sobre as doenças e as possessões. Sem dúvida, o ministério de «taumaturgo» de Jesus (taumaturgo quer dizer curativo), foi sem dúvida ampliado pela tradição oral. É indubitável, no entanto, que o local de origem dessas narrativas, reproduzidas especialmente por Marcos, é galilaico. E. Trocmé julga que, antes de serem postas em escrita, essas narrativas foram compostas por contadores populares. A memória deles era, em geral, extraordinária; por isso, seria desonesto suspeitar-lhes a fidelidade. E aquele autor acrescenta, dirigindo-se àqueles que procuram separar o trigo do joio, o histórico da lenda: «É impossível, no entanto, afirmar com certeza que uma dada narrativa é fictícia ou que uma outra seria histórica». Importa-nos, neste caso, a imagem de Jesus que sobressai dessas narrativas populares: confirma a que se evidencia no testemunho dos discípulos ou na inquietação sentida por escribas e fariseus. E. Trocmé conclui:
«Seguindo um bom método, devemos perguntar o que significa a existência de tais narrativas para o conhecimento de Jesus histórico.»
«A primeira significação desse facto é que esse personagem despertou o interesse e a simpatia entre as pessoas mais simples das terras galileias. Não se falou o bastante da importância desse fenómeno, pouco habitual numa sociedade em que o particularismo religioso de todos os movimentos activos (fariseus, essénios e mesmo zelotas) parece ter tido, como consequência, um afastamento cada vez mais nítido da massa do povo. Jesus, tal como João Baptista e ainda mais do que ele, dirigiu-se à multidão e soube encontrar-lhe o caminho do coração. Se o conseguiu, foi seguramente pela sua pregação de uma graça de Deus destinada a todos, mas em primeiro lugar pela sua actividade curativa, a qual respondia a uma necessidade social bem conhecida das sociedades em que a medicina era apanágio de alguns privilegiados.»
«Há mais do que isso nas narrativas dos milagres. Estas apresentam Jesus como um personagem misterioso, capaz de comunicar com o mundo do além e de recorrer a um poder ultrapassando de longe o do homem mais dotado. Não é arbitrário, segundo julgamos, ver nisso o equivalente popular do reconhecimento, pelos discípulos, da autoridade muito especial que emanava da pessoa de Jesus. Numa linguagem bastante ingenuamente mitológica [‘mitológica’, ou seja, transpondo para Deus acções humanas demasiado imaginativas], é uma interessante confirmação da imagem de Jesus que sobressai dos ditos do Senhor. O próprio facto de pessoas, dispostas a empregar essa linguagem, terem falado do taumaturgo de Nazaré em termos que lembram os usados pelos discípulos, é indício de que a autoridade do Mestre ultrapassa as clássicas categorias do messianismo judaico e das ideologias helenistas.»
[E. Trocmé, Jésus de Nazareth vu par les témoins de sa vie, Delachaux et Niestlé, Neuchâtel, 1971, p.122-123]
A proximidade de Jesus relativamente ao povo galileu e a sua bondade para com os doentes, mesmo se foi ingenuamente interpretada, apontam para um juízo sobre a sua personalidade, idêntico ao que resulta do estudo das suas relações sociais ou das suas tomadas de posição perante a Lei e a religião. Curar é manifestar um poder, em primeiro lugar, não no sentido mágico da palavra: Jesus nunca tenta apoderar-se dum poder divino através de meios rituais ou gestos secretos. Através dum milagre, sublinha a vinda do «Reino de Deus», pois o Reino inaugura-se pelo recuo da doença e pela libertação face a poderes inquietantes e exteriores – os demónios. Seria vão precisar melhor qual a força pessoal que estava na origem desse dom. Essa «autoridade» concerne um domínio mais misterioso do que a doença ou a possessão: o pecado. Jesus anuncia o perdão. Ao paralítico que tem nele a fé suficiente para esperar a cura, Jesus, vendo essa fé, declara que os pecados lhe estão perdoados (Mc 2:5). À pecadora que foi beijar-lhe os pés em casa do fariseu Simão, Jesus diz-lhe que os seus pecados foram perdoados e dá uma explicação ao fariseu: «Se declaro que os pecados dela, tão numerosos, foram perdoados, é porque ela mostrou muito amor» (Lc 7:47).
Os fariseus escandalizam-se por Jesus perdoar os pecados: «Porque fala assim este homem? Blasfema. Quem pode perdoar pecados senão Deus?» (Mc 2:7) Jesus, no entanto, só reivindica, nesse perdão, a aplicação (ao caso particular do pecado) da sua relação com a Lei e com Deus. A fé do paralítico ou o amor da pecadora provam que estão próximos de Deus: entenderam o que significa o Reino de Deus. Jesus reconhece-o publicamente através da concessão do seu perdão, do perdoar. Jesus não se deixa encerrar na contagem das infracções legais. A sua liberdade face à Lei torna-o livre para poder dar esperança ao pecador.
[Jesus é, sobretudo, uma atitude livre e libertadora!]
Christian Duquoc, op
‘Jesus, Homem livre – esboço duma cristologia’
Edições Paulistas, 1975, Colecção ‘Fé e mundo moderno’.
[Nota pessoal: porque eles – o paralítico e a pecadora – acolhem Jesus (dizem-lhe ‘sim’), Jesus acolhe-os no seu Reino… No centro das narrativas acerca de curas e milagres não está o fantástico, mas o ‘acolhimento’. Podemos dizer que o fantástico, hoje, depois de Jesus, é sermos capazes de nos acolhermos uns aos outros! O ‘acolhimento’ é a marca de água do Reino; ele rebenta com os calculistas… os ponderados.]