teologia para leigos

4 de maio de 2011

«JESUS, HOMEM LIVRE» 5/5


5/5




O comportamento de Jesus


Assim, a imagem que se impõe, da leitura dos evangelhos, é a de um homem livre; não a dum «aristocrata» ou dum super-homem, que só sentisse desprezo pelo povo. Pelo contrário, a autoridade de que Jesus dá provas no seu ensinamento, traduzida pela liberdade do seu comportamento social e da sua atitude religiosa, não gera de modo algum qualquer tipo de retraimento receoso perante ele.

As multidões cercam-no de todos os lados, os doentes imploram-no, os pecadores sentem-se perdoados e os excluídos da sociedade, compreendidos. Nem a autoridade, nem a liberdade de Jesus o separam dos pobres e dos humildes; por isso, seria compreendê-las mal, imaginar Jesus altivo e longínquo. A sua proximidade com o povo testemunha, pelo contrário, que essa liberdade foi simples, como a de uma criança.

Jesus, com efeito, não tinha nada de um asceta com uma especial inclinação para a ‘perfeição’.

16«Com quem poderei comparar esta geração? É semelhante a crianças sentadas na praça, que se interpelam umas às outras, 17dizendo:


‘Tocámos flauta para vós
e não dançastes;
entoámos lamentações
e não batestes no peito!’


 18Na verdade, veio João, que não come nem bebe, e dizem dele: ‘Está possesso!’
 19Veio o Filho do Homem, que come e bebe, e dizem: ‘Aí está um glutão e bebedor de vinho, amigo de cobradores de impostos e pecadores!’» [Mt 11:16-19]

Jesus não seguiu o caminho de João Baptista. Não se retirou para o deserto, para viver no jejum e na ascese. Ficou no meio do povo, frequentando fosse quem fosse, tanto os profissionais da religião, em cuja casa não recusava jantar, como os cobradores de impostos, odiados pelos seus roubos, ou as pessoas de vida duvidosa. Não desdenhava participar em casamentos, beber vinho. Anunciar o reino de Deus e ter um modo de existência comparável ao das pessoas vulgares, isso era escandaloso. Jesus ensinou o caminho de Deus com liberdade e isso é que suscitou oposição. Censuraram-lhe viver segundo usos e costumes que levavam a pensar que se tratava, muito claramente, de um pecador. Se o fosse, do mal, o menos, mas que ele não o compreendesse, que desempenhasse o papel de profeta e que vivesse numa liberdade que nenhum homem temente a Deus ousaria outorgar-se a si mesmo, isso ameaçava o equilíbrio social e religioso do judaísmo do primeiro século. A autoridade e a liberdade de Jesus explicam os conflitos provocados pela sua palavra, os quais, por fim, hão-de levar à sua condenação.

Os evangelhos não são mudos acerca da personalidade histórica de Jesus. As palavras autênticas que mencionam, as cenas que descrevem, as controvérsias de que dão testemunho, as oposições e conflitos que dão a entender, a frescura dos encontros que assinalam impõem uma imagem dele; e a palavra que a multidão utiliza para traduzir a sua impressão - «autoridade» - resume perfeitamente aquilo que, para nós,  resulta dum estudo mais atento das relações sociais de Jesus e da sua atitude religiosa. Troquei esse termo («autoridade») por um outro mais conforme com  a nossa cultura contemporânea – liberdade. Porém, a essa noção abstracta (liberdade), seria preferível uma outra mais concreta - «homem livre».

Atingimos, assim, um dado certo da personalidade histórica de Jesus, o qual é confirmado tanto pelo comportamento dos adversários, como pela adesão dos discípulos ou pela admiração do povo. Esse dado é da maior importância para o labor teológico. E isto por duas razões: por um lado, dispensa-nos de recorrer a um vocabulário religioso, e, por outro, tem uma significação contemporânea.

1.Não obriga a recorrer a um vocabulário religioso para discernir em Jesus uma realidade de que temos uma intuição comum e que, no entanto, nos parece misteriosa. Jesus está presente, todo inteiro, nessa liberdade, e essa liberdade suscita uma questão sobre a sua origem. Jesus dá-se inteiramente e, ao mesmo tempo, vela-se inteiramente. O espanto, de que falam muitas vezes os evangelistas, traduz bem essa experiência d’uma presença sem dissimulação, sem pensamento reservado, em tudo igual à presença duma criança, e, ao mesmo tempo, d’uma incapacidade simultânea de se lhe descobrir a origem e o alcance. É a sua própria evidência que a torna misteriosa. O vocabulário religioso que será utilizado em seguida pelos contemporâneos ou pela comunidade primitiva, para exprimirem a si mesmos essa experiência, tem valor, se for relacionado com o que pretende interpretar: Jesus impondo-se como homem livre.

2.Aquele dado comporta igualmente uma significação contemporânea. O anúncio de Jesus nas Igrejas organizou-se em redor dum certo número de termos retirados do Antigo Testamento. A partir do conjunto de termos disponíveis, esse vocabulário raramente se relaciona com a experiência original [de Jesus] que tinha por fim interpretar. A sua utilização oculta a experiência inicial [de Jesus] e retira-lhe poder libertador. Além disso, a insistência no «amor», como específico único de Jesus, contribuiu para fazer desaparecer, na pregação vulgar, a imagem transmitida pelas primeiras testemunhas. O que as impressionou foi a sua liberdade e a sua «autoridade»; portanto, é na sua esteira que deve ser interpretada a sua atitude plena de bondade e de amor para com pobres e pecadores. Nos testemunhos dos evangelhos, a personalidade de Jesus nunca se mostra enfezada. A bondade, a compreensão, o amor de que falam inscrevem-se no interior duma experiência fundamental que explica os implacáveis conflitos suscitados pela sua personalidade.

Os cristãos esquecem, com demasiada facilidade, essa liberdade e essa «autoridade» de Jesus. Estas qualidades traçam, dele, um retrato que condiz mal com as requeridas pelas necessidades duma Igreja ou duma organização. Explicam, no entanto, que os seus contemporâneos o tenham qualificado como «profeta».

Christian Duquoc, op
‘Jesus, Homem livre – esboço duma cristologia’
Edições Paulistas, 1975, Colecção ‘Fé e mundo moderno’.