teologia para leigos

10 de maio de 2011

«JESUS, HOMEM LIVRE» 1/5

1/5




Jesus
e o seu ambiente social

Para com a sua família, a liberdade de Jesus é grande.
A sua família toma atitudes para o desviar da sua vida de peregrinação (Mc 3:21; 3:31; Mt 12:46-50). Os familiares julgam que ele perdeu o juízo. Jesus não está acorrentado pela escravidão familiar: para Jesus, a sua mãe, os seus irmãos, são aqueles que escutam a palavra de Deus. O profeta não deixa que os seus lhe ditem o comportamento. Os habitantes de Nazaré sabem-no e rejeitam-no (Mc 6:1-6; Lc 4:16-24; Mt 13:53-58). Por isso, Jesus exige dos discípulos liberdade relativamente à família (Lc 14:26-28). Jesus não é o homem [exclusivo], nem duma família, nem duma aldeia, nem de nenhuma tribo. Jesus transgride os imperativos familiares e tribais.

Esses imperativos, porém, eram menores se comparados com a pressão social exercida pelas castas religiosas dominantes: escribas, fariseus e saduceus. Jesus foi duro para com eles. Devemos desconfiar, sem dúvida, do género literário polemizante, devido à oposição entre o cristianismo nascente e a religião judaica. Esta oposição é, porém, originária: deriva da atitude de Jesus para com os guardiões oficiais da Lei e da religião.

Jesus não receia frequentá-los (Lc 11:37ss); mas considera nula a autoridade deles. Os fariseus não lho perdoarão e isto por razões que estão longe de ser mesquinhas. Os textos podem induzir em erro sobre as razões da liberdade de Jesus para com os intérpretes oficiais da Lei. Os fariseus são descritos de tal maneira que o leitor contemporâneo é tentado a julgá-los imorais, vilmente interessados e hipócritas. As necessidades da polémica fizeram desempenhar, ao fariseu, o papel do ‘adversário de má fé’. Será, contudo, desonesto julgar as coisas assim: Jesus, por exemplo, considera irrepreensível o fariseu Nicodemos. Fariseus, escribas e saduceus são atacados como classes dominantes, detendo indevidamente o poder de interpretar a Lei. Jesus condena-lhes a função social – é o poder deles que Jesus quer despedaçar e, nisto, dá testemunho da sua liberdade. A sua revolta contra os doutores da Lei é uma revolta pelos pequenos. Os doutores impõem-lhes um jugo insuportável. Eles ignoram que Deus torna livre o ser humano. Impõem a Deus as conveniências e as regras deles. Jesus volta a dar a Deus a sua liberdade, transgredindo o poder dos escribas e dos fariseus, recusando o ‘bom’ fundamento da «autoridade» deles.

Jesus não é um sectário, não se encerra na grandeza da ascese, não se separa da população. Pelo contrário, sente-se à vontade com os mal-pensantes. Estes, pelo menos, não impõem o seu caminho a Deus. Deixam tudo livre. Mas essas pessoas de má reputação não têm lugar numa sociedade regulada pela casta dos «perfeitos» ou pela dos sacerdotes. São párias, embora não sejam todos pobres, longe disso.

Quem são eles?

Primeiro, os publicanos, gente de fama duvidosa, cobradores de impostos, ladrões notórios. São odiados. Depois, as prostitutas: o fariseu Simão duvida de que Jesus seja um profeta, senão não deixaria que uma delas lhe beijasse os pés (Lc 7:36ss). Finalmente, o povo: Jesus aproxima-se dele, sabe-lhe das misérias, conhece-lhe os sofrimentos, acede-lhe às súplicas, quando realiza os milagres, referidos pelos evangelistas, a favor do povo. Esse pequeno povo é ignorado pelos letrados que o desprezam, porque nada sabe da Lei (cf. Jo 9:34). Jesus, porém, é livre relativamente aos preconceitos sociais. Ousa pretender que os publicanos e as prostitutas precederão, no Reino dos Céus, os orgulhosos guardiões da Lei.

Jesus não se manifesta menos livre na escolha dos amigos. Os evangelistas não escondem que ele tinha amigos. A multidão parece admirada por ver como era dedicado a Lazáro. Os evangelistas mencionam amizades femininas: Marta, Maria e, talvez, Madalena. A atitude de Jesus para com as mulheres não releva da menor misoginia. As suas palavras e o seu comportamento superam, a este respeito, os dos seus contemporâneos. A discussão sobre a «carta» de divórcio (o homem podia repudiar a mulher por motivos os mais ridículos, [p. ex., caso deixasse torrar o estrugido…]) mostra que Jesus se preocupava com a igualdade dos sexos, o que não estava nada de acordo com a opinião corrente. Neste caso ainda, Jesus dá testemunho da sua liberdade perante a pressão social e as normas de comportamento e de julgamento social.

Não é menos livre perante o poder político: este não lhe mete medo. Jesus fala francamente dos homens políticos. Assim, quando lhe contam que Herodes o quer mandar matar, Jesus faz troça dele: «Ide dizer a essa raposa…», isto é, na linguagem imaginosa da época: ‘a esse homem que não representa qualquer perigo e a quem não temo’. Jesus não faz cálculos políticos, nem entra em compromissos. Também não se deixa encerrar no jogo político dos resistentes ao poder do império romano: os zelotas (Mc 4:26-29; Mt 11:12). Parece, no entanto, ter sido convidado para pôr o seu ascendente sobre as multidões ao serviço da libertação nacional, da qual os zelotas eram o sustentáculo dessa luta activista. Jesus desiludiu essa esperança e, paradoxalmente, foi a queixa de conduzir uma revolta política que o levou à condenação à morte por parte dos romanos, como o atesta a irónica inscrição posta por eles na Cruz: «Jesus, rei dos judeus».

Essa liberdade impressiona os seus contemporâneos. O mais belo elogio de Jesus, que possuímos, é o dum Doutor da Lei, fariseu: «Mestre, sabemos que és franco e que ensinas o caminho de Deus com franqueza, sem te preocupares seja com quem for, pois não olhas à categoria das pessoas» (Mt 22:16). Que este elogio tenha sido inspirado pela velhacaria, pouco importa. Só podiam lisonjeá-lo publicamente se existisse acordo entre os seus contemporâneos sobre a sua personalidade: a dum homem livre.

Christian Duquoc, op
‘Jesus, Homem livre – esboço duma cristologia’
Edições Paulistas, 1975, Colecção ‘Fé e mundo moderno’.