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Jesus,
uma Palavra livre
A liberdade, em Jesus, não se mostra, no seu ensinamento e no modo da sua existência, inferior às suas relações sociais. Os seus ouvintes ficaram impressionados com a sua maneira de ensinar: ensinava com autoridade (Mc 1:22), e não como os escribas e os fariseus. Estes eram ‘comentadores’. Jesus era um criador. A ideia que os escribas e os fariseus faziam da Lei e da religião judaicas não lhes permitia outra atitude. Por isso, o debate entre eles e Jesus concentrava-se na maneira como ele se refere à Lei. Múltiplos episódios dos evangelhos são consagrados a controvérsias sobre pontos de observância ritual. Julgando-o superficialmente, a importância que lhes é dada pelos evangelistas parece-nos facilmente exagerada. Na realidade, esses episódios fornecem debates concretos para manifestarem como, em Jesus, ensino e atitude estão ligados. A sua palavra comenta o seu comportamento. Às acusações dos fariseus (contra os discípulos) de não respeitarem a tradição dos «antigos» (Mc 7:2-3), Jesus responde contestando a origem divina de tais observâncias, pois elas são humanas e devem ser julgadas humanamente. Atribuem-lhes um valor desmedido, a ponto de lhes sacrificarem o mandamento de Deus que é o de não prejudicar os outros (Mc 7:9-14). A transgressão do Sábado desencadeia oposições violentas: Jesus indica o sentido do próprio comportamento ou do dos discípulos. Ou então recorda a liberdade tomada por uma das maiores figuras de religião judaica, David (Mt 12:1-8); ou ainda lembra o que é evidente para quem quer que não seja fanático: «O Sábado foi feito para o Homem». Em Israel, os Mestres são culpados de inverterem a ordem, sob o pretexto de honrarem a Deus: esquecem-se que, aos olhos de Deus, conta somente a misericórdia, não o sacrifício (Mt 12:7). Jesus, com bom senso, denuncia a mesquinhez legal quando o censuram por ter curado no dia de Sábado, o que é proibido pela Lei: «Qual dentre vós, se tiver uma ovelha e ela cair numa cova, num Sábado, não irá buscá-la e tirá-la de lá?» (Mt 12:11)
A liberdade de Jesus, relativamente à Lei, confere-lhe a faculdade de julgar. A Lei deve ser apreciada, na prática concreta, sob a dupla exigência do amor de Deus e do próximo (Mt 7:12; 22:37-40; Mc 12:28-34). Se Jesus não receia transgredir a Lei, a ponto de escandalizar os mestres em religião, é porque a sua liberdade é uma forma de amor ao próximo (Mt 7:12).
«O Sermão da Montanha», quer dizer, os capítulos 5, 6 e 7 de Mateus, que reúne numa única exposição palavras dispersas de Jesus, tem origem nessa atitude de liberdade. Jesus não se apoia em qualquer tradição: «Ouvistes o que foi dito…» (Mt 5:43). «Eu porém digo-vos» (MT 5:44). Jesus explica, num estilo paradoxal, a determinante do seu próprio comportamento, cuja regra é não ter outra senão a sua atitude para com Deus e o seu amor efectivo pelo próximo. Jesus não promulga uma nova Lei, não faz uma teoria da Lei; adopta uma atitude que contesta radicalmente a função que faziam desempenhar a essa Lei. Esta opção espanta, escandaliza. É tão nova que o povo fica impressionado com a autoridade com a qual ele a faz sua. O povo e os fariseus ficaram excitados com essa liberdade, procuraram determinar-lhe a origem. Não é a do pecador, senão a Lei teria razão contra ele. A liberdade de Jesus é de outra ordem. Os fariseus, os escribas, os saduceus têm medo: consideram perigoso o comportamento de Jesus. Apertam Jesus com perguntas, estendem-lhe armadilhas. Esperam chegar a definir-lhe o comportamento segundo as categorias recebidas.
Jesus confunde-os, abre-lhes uma brecha no sistema religioso.
A liberdade de Jesus impõe-se a tal ponto que não podem esquivar-se à questão que ela suscita. Irrita-os, constrange-os a tomarem partido, obriga-os a serem eles mesmos. Chegam aos julgamentos extremos - acusam, aquele que tem autoridade sobre os possessos, de agir por magia.
Christian Duquoc, op
‘Jesus, Homem livre – esboço duma cristologia’
Edições Paulistas, 1975, Colecção ‘Fé e mundo moderno’.