teologia para leigos

13 de maio de 2011

QUE TIPO DE IGREJA QUEREMOS? 4/7

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2.c) Igreja como sacramentum salutis: a modernização da Igreja

Os últimos 50 anos marcaram as sociedades latino-americanas com a aparição de uma burguesia industrial dinâmica, nacionalista e modernizadora. A tarefa urgente consistia em superar o atraso técnico em que nos encontrávamos mediante uma rápida modernização em toda a estrutura produtiva. O espantalho que precisava ser exorcizado era o subdesenvolvimento. Para isso convocam-se todas as forças em nome do progresso e do desenvolvimento em todas as frentes. Conjuntamente a este processo, criaram-se formas mais adequadas de participação social: democracias com base populista e organização sindical.

A Igreja participou activamente deste programa desenvolvimentista. Ocorreu uma inusitada abertura da Igreja ao mundo. Os problemas principais já não tinham a ver com ‘doutrina’ (combate à penetração protestante e combate ao secularismo do Estado) ou sequer litúrgico-disciplinares, mas com problemas ligados à sociedade: justiça, participação, desenvolvimento integral para todos. A Igreja descobriu que pode ser acelerador e não freio deste processo. Importava, então, valorizar a ciência, a relativa autonomia das realidades terrestres e desenvolver uma ética do progresso e do compromisso com a transformação social. A Igreja participou nos últimos 50 anos em todos os grandes debates em torno da educação, do desenvolvimento económico, em torno da formação dos sindicatos e da reforma agrária. O secular emergia como valor teológico.

O Vaticano II elaborou a teologia adequada a tais práticas da Igreja, por um lado legitimando-as, por outro iluminando-as criticamente. Primeiramente, fica claro que devemos pensar a realidade em termos de mysterium salutis e de universalidade do oferecimento da salvação. A Igreja é apresentada como sacramento da salvação universal. Importa compreender, fundamentalmente, que a salvação é universal e pervade toda a história. A Igreja é o momento de densificação e celebração desta salvação universal. A Igreja torna-se, por sua vez, universal na medida em que sinaliza para todos os homens o amor salvífico do Pai pelo seu Filho na força do Espírito. Porque é assim, as realidades, chamadas terrestres e seculares, são portadoras possíveis da graça e da salvação. Merecem ser procuradas em si mesmas (por elas mesmas) e não somente na medida em que forem inseridas dentro do projecto da Igreja. Esta perspectiva conferia carácter teológico ao compromisso dos cristãos em luta pela construção de um mundo mais justo e fraterno.

A Igreja, no âmbito desta teologia, articulou-se com os estratos modernos da sociedade, particularmente com os empenhados numa transformação do mundo. A Igreja não se aproximou, necessariamente, do Estado, mas de grupos portadores da ciência, da técnica e do poder político na sociedade civil. A própria Igreja modernizou as suas estruturas, secularizou-se em muitos dos seus símbolos, simplificou a liturgia e tornou-a adequada ao espírito do tempo. O discurso da Igreja tornou-se mais profético, no sentido de denunciar os abusos do sistema capitalista e a marginalização do povo. A este nível, a Igreja não apresentava uma perspectiva alternativa, mas reformista, apenas aquilo que era suportável pelos grupos modernos da sociedade. Não pedia, fundamentalmente, outro tipo de sociedade, mas mais participação dentro do sistema liberal moderno de capitalismo avançado e tecnológico.

Em termos de articulação Reino-mundo-Igreja, a reflexão teológica foi muito atenta: ‘Reino’ constitui o grande arco-íris sob o qual estão mundo e Igreja; ‘mundo’ é o lugar da acção de Deus que aí constrói, já e agora, seu Reino, de um modo aberto para a escatologia que ainda não se realizou em plenitude. ‘Igreja’ será vista como um sacramento, vale dizer, sinal e instrumento, oficial e público, mediante o qual Cristo e o seu Espírito actuam e aceleram a concretização do Reino na história do mundo e, de forma explícita e densa, no espaço da Igreja. ‘Mundo’, aqui entende-se, preferencialmente, como modernidade, produto da grande empresa cientificó-técnica. Face a este «mundo» a Igreja buscou uma aproximação, uma reconciliação e ofereceu a sua colaboração diaconal.

Que futuro está destinado a este modelo de Igreja?

Devemos reconhecer que este modelo de Igreja, numericamente, é o mais vigente em toda a América Latina. Praticamente, a grande maioria assimilou o Vaticano II e fez a viragem que se exigia em termos de mentalidade teológica (teoria) e de presença no mundo (prática). A Igreja libertou-se de uma carga tradicional que a tornava pouco simpática ao homem moderno e conseguiu elaborar uma nova codificação da fé que respondesse ao espírito crítico do homem urbano, assimilado dentro do processo produtivo capitalista. Os intelectuais, anteriormente na sua grande maioria anti-clericais, agora passam a ter na Igreja uma aliada. A Igreja confia muito mais nos centros de poder decisório que procuram engajar-se em tarefas eclesiais e imbuí-las do espírito novo nascido do Vaticano II.

Os vários movimentos, tais como Cursilhos de Cristandade, Movimento Familiar Cristão, Movimento Carismático e outros deste género têm como destinatário primeiro os grupos bem situados na sociedade e não o povo proletarizado e pobre.

O futuro deste tipo de presença de Igreja, a partir da sua coligação com os estratos modernos da sociedade, depende do destino da própria sociedade moderna. A Igreja tentará evangelizá-los a partir dos valores e da óptica própria da modernidade. A relação para com os pobres definir-se-á a partir da óptica dos ricos acerca dos pobres: os ricos serão convocados a ajudarem a causa dos pobres, mas sem precisar, necessariamente, de mudar de lugar social e de prática burguesa.

Leonardo Boff
Igreja – Carisma e Poder
Ed. Vozes, 1981