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Jesus, um Profeta
Não é de todo inútil tentar remontar para lá da experiência pascal, para trás, até à primeira ideia que se fez de Jesus. As opiniões emitidas a respeito dele explicam os conflitos que suscitou e tornam inteligível a cisão que se produziu com os chefes religiosos. Elas permitem também, com muita prudência, conhecer a maneira como Jesus aceita ou recusa as opiniões dos seus contemporâneos sobre a sua identidade e a sua função. Afastam também certos erros: assim, a opinião dos contemporâneos de Jesus evita acentuar o facto de ele ter sido um Mestre ou um teólogo de profissão, um Rabi, na terminologia da época. É verdade que certos indícios apontam nesse sentido: por exemplo, Jesus ensina num círculo de discípulos, interpreta a Lei, discute decisões jurídicas, prega no serviço sinagogal. Também é certo que, para lá do facto de Jesus nunca ter percorrido os degraus que o levariam a vir a ser um Rabi, os seus contemporâneos também nunca o tomaram como tal. Se por vezes o tratam assim, é apenas por uma questão de respeito, tal como hoje também se diz «Senhor». Os seus contemporâneos nunca tomaram Jesus como pertencente à casta dos letrados, em matéria de interpretação da Escritura. Encararam-no como um homem «carismático», ou seja, um profeta. São numerosos os textos que testemunham essa convicção popular (Mc 6:15; 8:28; Mt 21:11; 21:46; Lc 7:16; Jo 4:19; 6:14; 7:40; 7:52; 9:17).
Os fariseus, embora com reticências, adoptam este ponto de vista (Lc 7:39; Mc 8:11): se lhe exigem um sinal é porque o reconhecem como ‘profeta’; sendo assim, ele deve, em troca, fornecer uma legitimação da autenticidade da sua «vocação» de profeta. Quanto aos discípulos, a convicção de dois deles, referida por Lucas na sua narrativa da aparição de Emaús, parece ter sido a opinião corrente: «O que diz respeito a Jesus de Nazaré – dizem eles ao companheiro de caminho –, que foi um profeta poderoso em obras e palavras, diante de Deus e de todo o povo…» (Lc 24:19). Porém, seria como falso profeta que Jesus seria preso e condenado. [J. Jeremias, ‘Théologie du Nouveau Testament’, tomo I, Cerf 1973, p.101]
Essa qualidade de profeta, porém, não representa tudo o que os contemporâneos de Jesus imaginavam da sua identidade. Testemunha-o um texto evangélico. Marcos relata que, aquando duma viagem, Jesus interroga os discípulos: «Quem dizem os homens que eu sou?» E eles respondem: «João Baptista; e outros, Elias; mas outros, um dos profetas» (Mc 8:27-28). Os contemporâneos de Jesus, portanto, estavam divididos sobre a identidade dele. Se concordavam ao lhe reconhecerem a qualidade profeta, não sabiam a que origem atribuir a sua atitude, a qual o separava tão estranhamente de todos os mestres religiosos em Israel. As respostas, recolhidas pela tradição e retomadas pelos evangelistas, testemunham que, se Jesus era profeta, não se inseria na linhagem clássica dos profetas. Se tomarmos em consideração a questão que os fariseus, segundo o evangelho de João, puseram a João Baptista - «És tu o Profeta?» (Jo 1:21) -, parece que os contemporâneos de Jesus pensaram no Profeta cuja palavra, apelando para a conversão, precederia o juízo final. Isso explica a divergência das respostas referidas pelos discípulos.
Com efeito, esse Profeta, em virtude dos textos do Antigo Testamento, identificavam-no, quer com Elias, quer com outro profeta antigo que voltara à terra. Um texto de Malaquias (3:23) justificava esta interpretação: «Eis que vou enviar Elias, o Profeta, antes de chegar o meu Dia, grande e temível» (quer dizer, o Dia do juízo final).
Encontra-se um pensamento análogo num poema de Ben Sirá (Sir 48 todo, em especial v.10-11). Devia ser, portanto, uma crença bastante espalhada em Israel que Elias voltaria para exortar à penitência antes do tempo do julgamento. Sem dúvida Jesus faz alusão a essa crença ao designar assim João Baptista: «E, quer acrediteis ou não, ele é o Elias que estava para vir.» (Mt 11:14) Devemos interpretar este texto com precaução, pois não foi escrito por Mateus sem intenção polémica relativamente aos discípulos do Baptista, aos quais a jovem Igreja teve de dar explicações cabais. Mas noutros círculos de judeus pensava-se no regresso de um outro profeta, em especial em Moisés, tendo como base um texto do Deuteronómio (18:15) que cita Moisés referindo o futuro da profecia em Israel: «Yahvé teu Deus suscitará para ti, entre os teus irmãos, um profeta como eu, que escutareis».
Estas opiniões dos contemporâneos de Jesus evocam a atmosfera na qual ressoava a palavra dele. O povo judeu, privado de toda a independência política, organizado por uma Lei que o separava de todos os outros povos, com a memória repleta de profecias acerca do seu grandioso destino futuro, excitado, nas suas expectativas, pelo surgimento de leaders a acicatarem a lutar contra a opressão estrangeira (os «messias»), impressionado por múltiplas revelações (apocalipses) anunciando a iminência dos últimos tempos, desapontado porque há séculos nenhum profeta se fazia ouvir e porque a sua religião passara a estar sob o domínio dos «mestres» ou comentadores, esperava ansiosamente o Profeta que iniciaria os últimos tempos. Quando a voz de João ressoou no deserto, acreditaram que a história ia mudar de curso. Quando Jesus percorreu a Galileia, proclamando a iminência do Reino de Deus, pensaram que, finalmente, o Profeta esperado tinha surgido. Como se tratava de uma missão particularmente elevada, tinham imaginado que devia ser cumprida por algum grande profeta, vivendo de novo na terra para esse último afrontamento com as potências opostas a Deus. Isso explica a escolha dos nomes propostos pelos discípulos a Jesus.
Jesus parece não ter dado grande importância a essa divergência sobre a identidade do último profeta. Pelo contrário, aceitou o juízo segundo o qual era «profeta». Por várias vezes, afirma com efeito tomar assento entre profetas (Lc 13:33; Mt 23:31). Para o judaísmo do tempo de Jesus, era profeta aquele que fosse «possuidor» do Espírito. Jesus pretende sê-lo de facto: se expulsa os demónios, é pelo Espírito de Deus (Mt 12:28). Segundo Lucas (Lc 4:18-21), Jesus aplicou a si mesmo a profecia de Isaías (61:1) evocando a consagração do profeta e descrevendo a missão deste: «Anunciar a Boa-Nova aos pobres, proclamar a liberdade aos cativos, mandar em liberdade os oprimidos…». Jesus reivindica para si mesmo o poder profético. Que essa pretensão remonta propriamente a Jesus, antes de toda a reinterpretação da comunidade originada na experiência pascal, disso não há dúvida. Esse título foi abandonado em seguida, porque demasiado restritivo para designar Jesus, à luz da Ressurreição. Continua a ser, no entanto, um caminho indispensável para o nosso conhecimento de Jesus.
A palavra «profeta» já não tem, na linguagem vulgar, o sentido que evocava no tempo de Jesus. Designa, o mais das vezes, um homem que tem o dom de predizer o futuro, ou que, por vezes, possui uma estranha lucidez sobre os riscos do presente. Este último sentido tem tendência para se tornar preponderante. Certos acontecimentos contemporâneos – a morte de Gandhi, que lutava pela não-violência ou o assassinato de Luther King, que pregava a igualdade entre brancos e negros – foram qualificados de «proféticos». Este critério não está afastado do que podia sentir um contemporâneo de Jesus.
Jesus não é profeta por ter previsto o futuro, é profeta porque, numa fidelidade absoluta à sua missão e numa liberdade sem 'rabos de palha', anuncia a exigência radical de Deus, com plena lucidez sobre os riscos individuais e sociais.
A autoridade de Jesus, a sua liberdade a respeito de todas as pressões, a sua palavra destruidora de todas as falsas-razões, o seu sentido de Deus vivo e presente, correspondiam àquilo que segundo se julgava era agir e falar sob a influência do Espírito Santo. Se os contemporâneos tentaram identificar Jesus a um dos antigos profetas, isso deve-se à crise particularmente forte atravessada pelo judaísmo e, também, ao gosto do fim-do-mundo, a que os escritores apocalípticos os tinham sensibilizado. Que Jesus tenha sido julgado como o último Profeta, isso informa-nos sobre o ambiente cultural e religioso da sua época, mas orienta-nos também para uma intuição subjacente às questões que a acção e a palavra de Jesus puseram aos seus auditores: não seria ele mais do que o último Profeta, isto é, não seria ele Messias?
Christian Duquoc, op
‘Jesus, Homem livre – esboço duma cristologia’
Edições Paulistas, 1975, Colecção ‘Fé e mundo moderno’.