teologia para leigos

16 de novembro de 2010

TOLENTINO - O MONGE PASTELEIRO

Um pequeno conforto
A história é esta: uma mulher vai a uma pastelaria de um centro comercial encomendar um bolo para o aniversário do filho. Como qualquer um de nós faria, deixa lá o seu nome e um contacto telefónico. Só que, exatamente na manhã do aniversário, o miúdo é atingido por um automóvel, entra em coma e morre. O pasteleiro não faz ideia do que se passa. Sabe apenas que aquela mulher encomendou um bolo que não veio buscar. Começa a persegui-la nos dias seguintes com chamadas anónimas. A mulher, por um acaso, descobre que é ele o autor dos telefonemas e, em pleno trauma pela morte do filho, decide ir com o marido ao Centro Comercial dar-lhe uma lição. No primeiro momento do encontro só se vê, de facto, o confronto da ira dela com o ressentimento  do pasteleiro. Mas quando Ann diz o que ele não sabe, a fúria descongestiona-se dando lugar a outra coisa.
«-Deixem dizer-lhes a pena que sinto - disse o pasteleiro, pondo os cotovelos em cima da mesa. - Só Deus sabe quanto lamento. Oiçam lá, eu sou apenas um pasteleiro. Não pretendo ser outra coisa… Isso não vai justificar aquilo que fiz, eu sei. Mas sinto profundamente… Têm de compreender que tudo se resume ao facto de eu já não saber como atuar. Por favor, deixem-me perguntar-lhes se posso encontrar perdão nos vossos corações?».
Fazia calor na pequena pastelaria. Ann e o marido tiraram os casacos. O pasteleiro colocou umas chávenas sobre a mesa. Eles sentaram-se. E, muito embora estivessem cansados e angustiados, começaram a ouvir o que aquele homem tinha para dizer.
«-Provavelmente, precisam de comer alguma coisa - disse o pasteleiro. - Espero que comam uns pãezinhos quentes, feitos por mim. Têm de comer e enfrentar a situação. Comer dá um certo conforto, numa ocasião como esta - disse ele».
Continuavam a escutá-lo. Comiam agora devagar um pão escuro e perfumado que o homem lhes abriu, sentiam com surpresa o seu gosto retemperador e delicado. Pela madrugada dentro, deixaram-se ali a conversar. As luzes fluorescentes do estabelecimento foram substituídas pela luz da manhã, que começou a escorrer pelas janelas.
Gosto muito deste conto de Raymond Carver e já o tenho repetido. O que aprecio nele é sobretudo mostrar como as cenas da vida quotidiana, mesmo as mais dramáticas, nos podem abrir aos grandes espaços da experiência interior. As palavras criam um clima de acolhimento e escuta. O alimento consola, enxuga as lágrimas. Dentro das personagens acontece uma espécie de ressurreição. De facto, quando a gente aceita que mesmo sobre aquilo que nos parece imperdoável há mais do que um ponto de vista, ou quando compreendemos que, em grande parte das situações, mais do que premeditação o que existe é ignorância, então estamos prontos para encontrar perdão nos nossos corações.
Torna-se finalmente claro que o conforto que falta à nossa vida é bem mais pequeno do que supomos. Basta-nos o conforto de atravessar ao lado de outros a nossa noite e assistir aí, esperançados, à chegada da manhã.

José Tolentino Mendonça
In DNotícias.pt
14.11.2010