nada sabes do que se passa…
Não sabes o que se passa.
Por isso presta contas de ti próprio ao outro de ti. Dispõe-te à humildade do vento e floresce no plano da tua vergonha - não há eficácia mais irada que a revelação de que nada tens para confessar.
Sê tu no desenho da tua intensa condição casmurra, mas não estrutures a surpresa, pois o oculto, oculto é e revela.
A tua glória de dentro é apenas um gume entranhado e manchado de sangue doutros. O teu azul de dentro é a fluorescência de tiras de papel amarrotadas ao acaso. A tua insistência de dentro é uma oração vaidosa, que já não incendeia ninguém.
Não sabes o que se passa.
Monta a tua bicicleta e desaparece do trilho que te trilha nesse escondimento de ausência.
Um dia regressarás como um sinal de trânsito ao virar de todas as esquinas e chamar-te-ão santo.
Todo o movimento é ao acaso enquanto a si se abandona, a ilusão dum progresso sem mapa.
A tristeza expõe os santos numa profundidade de margem tocante, onde tudo parece naufragar em terra. Porém, parados no tempo, os santos são vultos que se derretem se os tocamos - de poros, são feitos. Neles, o assombro vai e vem sem deixar marca. Vivem na fronteira do limbo e luzem. Anulam-se e são a máxima atenção ao lugar. Servos do seco, são.
E nada sabes do que se passa...
«Que sobre-humana face
vem dos caules da ausência
abrir na noite o sonho
da sua própria essência?
Há noite? Há vida? Há vozes?
Que espanto nos consome,
de repente, mirando-nos?
(Alma, como é teu nome?)
[in, ‘CANÇÕES’, Cecília Meireles]